sexta-feira, janeiro 06, 2006

Onda de Mudança



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Por Eric L. Geist, Vasily V. Titov e Costas E. Synolakis


Um ano depois da trágica devastação causada pelo tsunami no oceano Índico, os cientistas estão mais bem equipados para prever essas ondas monstruosas.

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No dia 26 de dezembro de 2004, uma série de ondas devastadoras atacou o litoral de diversas localidades no oceano Índico, causando o maior número de mortes já documentado após um tsunami. As águas dizimaram cidades e vilas inteiras, matando mais de 225 mil pessoas em poucas horas e deixando pelo menos 1 milhão de desabrigados.
A tragédia chamou a atenção para um fato importante: com a explosão demográfica nas regiões costeiras do mundo inteiro, os tsunamis representam um perigo maior do que nunca. Ao mesmo tempo, este episódio foi o mais bem documentado da história - abrindo uma oportunidade única para aprendermos como evitar catástrofes semelhantes no futuro. Vídeos gravados por turistas mostraram a água lamacenta engolindo hotéis, e satélites mediram o tamanho das ondas se propagando em alto-mar. Essas e outras informações mudaram de muitas maneiras o que os cientistas sabiam sobre o fenômeno.

O tsunami no Índico, por exemplo, que surgiu de um local antes considerado incapaz de gerar ondas gigantes, convenceu pesquisadores a aumentar sua lista de áreas com potencial perigoso. As observações também forneceram o primeiro teste completo para simulações de computador que prevêem onde um tsunami acontece e como se comporta quando chega à costa. Mais do que isso, o evento revelou que as complexidades sutis de um terremoto exercem influência de força impressionante sobre o tamanho e forma de um tsunami. Os modelos aprimorados que resultaram dessas descobertas devem ser aproveitados nos novos sistemas de monitoramento e alerta.

Antes da Grande Onda
Há tempo os pesquisadores sabem que os locais onde quase todos os terremotos geradores de tsunami surgem são zonas de subducção.

Marcadas por imensas fossas no fundo do mar, essas áreas se formam onde uma placa tectônica da crosta terrestre se projeta sobre outra.
Forças gravitacionais e o movimento de material viscoso no manto terrestre trabalham para mover as placas, mas o atrito na fina crosta as mantém juntas. Como resultado, uma incrível pressão se acumula na vasta interface entre as duas placas, conhecida como falha. Algumas vezes essa tensão é aliviada toda de uma vez, na forma de um grande terremoto. A placa inferior afunda mais e a parte superior se projeta violentamente para cima - e a água que recobre a placa segue o movimento. O tamanho do tsunami resultante depende de quanto as placas se movem.
No leste do oceano Índico, na costa oeste de Sumatra, Indonésia, a Placa Indiana escorrega para baixo da Placa da Eurásia ao longo da zona de subducção Sumatra-Andaman. As partes ao sul dessa zona de falha produziram grandes terremotos (de magnitude 9 na escala Richter) no passado, o mais recente deles em 1833. A descoberta foi feita por Kerry Sieh, do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), e colegas. Os especialistas estavam em alerta esperando choques lá.
Todos, porém, ficaram intrigados quando o evento gerador do tsunami de dezembro de 2004 surgiu na parte superior dessa região, a noroeste de Sumatra. Registros anteriores mostravam movimento ao longo da zona de subducção muito mais lento, por isso não estava claro se as forças poderiam se acumular a ponto de resultar em tremores tão violentos. A análise posterior, porém, revelou que o choque de magnitude 9 ergueu uma faixa de 1.200 km do leito oceânico em até 8 metros em alguns pontos, liberando uma área na zona de falha do tamanho da Califórnia e deslocando centenas de quilômetros cúbicos de água durante o processo. Como resultado, os pesquisadores agora consideram novas áreas de risco de tsunami perto do Alasca, de Porto Rico e de outras zonas de subducção similares.
O choque em Sumatra-Andaman começou por volta das 7h59 da manhã, hora local, e logo uma rede global de estações sísmicas descobriu sua origem, ou epicentro, e informou o Centro de Alerta de Tsunamis do Pacífico em Ewa Beach, no Havaí. Embora os geofísicos estivessem entre os primeiros a saber do terremoto, não tiveram como confirmar que um tsunami estava surgindo no oceano Índico antes de assistir à tragédia pelos telejornais. No Pacífico, onde ocorrem 85% dos tsunamis do mundo, sensores de pressão do fundo do mar chamados de tsunâmetros podem detectar uma ocorrência em alto-mar e alertar os cientistas do centro do Pacífico e os de um segundo centro na cidade de Palmer, no Alasca, antes que as ondas encontrem terra firme. Mas não havia tecnologia semelhante para o oceano Índico, nem linhas de comunicação para transmitir um alerta a pessoas nas praias. Embora as primeiras ondas tenham levado duas horas ou mais para chegar à Tailândia, ao Sri Lanka e a muitas das áreas mais danificadas, quase todos foram tomados de surpresa.

Em Alto-Mar
Esse dia de dezembro mudou para sempre a percepção do mundo sobre como funcionam os tsunamis, onde eles podem surgir e como há tantas comunidades completamente indefesas. Desde então, grupos internacionais tentam corrigir a situação e nesse meio tempo têm procurado compreender melhor como os tsunamis começam, se propagam e atingem a costa. Há 15 anos japoneses e americanos desenvolvem modelos de computador que simulam a propagação de tsunami pelo oceano. Antes de 2005, no entanto, os cientistas contavam com poucas observações para comparar com suas teorias. Todos os modelos de propagação de tsunami requerem duas variáveis iniciais: uma estimativa da localização e da área de solo marinho deformado - dado que os pesquisadores tiram da magnitude do terremoto e do local de seu epicentro - e uma medida de altura, ou amplitude, da água deslocada.
Esse último dado pode ser inferido adequadamente para previsões em tempo real só depois de serem feitas observações diretas das ondas de tsunami em alto-mar.
Mas em relação a tsunamis grandes anteriores, os cientistas contavam apenas com medidas que os mareógrafos tinham gravado perto da costa ou que observadores estimavam depois, a partir do dano da água na terra. O principal problema é que, perto da costa, o tamanho real do tsunami é mascarado por ondas adicionais geradas quando o tsunami rebate em paredes marinhas, envolve ilhas ou entra em uma baía. Tudo isso contribui para causar um sinal perturbado.
Por pura coincidência, um trio de satélites de monitoração da Terra deu aos modeladores a altura clara e não distorcida que eles precisavam sobre o tsunami do oceano Índico. Os satélites orbitavam sobre a região entre duas e nove horas depois do terremoto, captando as primeiras medidas de radar de um tsunami se propagando em alto-mar. Os dados provaram pela primeira vez que - como já se suspeitava - uma marola de água de apenas meio metro em alto-mar pode se transformar em gigantescas ondas que causam tanta destruição na terra. (Satélites de radar não seriam bons sistemas de alarme, no entanto, porque uma única órbita leva vários dias, e mais alguns seriam necessários para avaliar os dados.)
Com velocidade de cerca de 5,8 km/s, os satélites também forneceram o primeiro corte transversal de amplitudes do tsunami, ou seja, monitoraram continuamente as ondas ao longo de seu caminho em vez de fazer as medidas de um único ponto, como seria o caso dos mareógrafos. Revelou-se que a altura projetada e a medida de tsunamis são comparáveis , validando teorias gerais sobre como os tsunamis se movem em alto-mar - e confirmando que os paradigmas atuais de modelagem são uma ferramenta útil de segurança pública, mesmo para o maior tsunami de todos.

Alcance Global
A visão global do Tsunami corroborou ainda mais que os modelos são bons para previsão. Uma vez que um tsunami se desloca no oceano mais ou menos à velocidade de um jato (500 km/h a 1.000 km/h), a primeira onda levou menos de três horas para viajar do norte de Sumatra e das ilhas Andaman na direção leste para Mianmar, Tailândia e Malásia, na oeste para Sri Lanka, Índia e Maldivas. Em 11 horas, ela tinha chegado à costa sul-africana, a 8.000 km dali, o ponto mais longe onde se relatou uma morte associada ao tsunami. Mas as ondas não pararam por aí.
Mais ou menos na mesma hora em que a tragédia chegava ao noticiário, os cientistas começaram a receber dados de estações de mareografia ao redor do mundo. Em seu caminho a oeste, o tsunami dobrou a ponta sul da África e se separou em dois na viagem na direção norte do Atlântico; um dos lados se dirigiu ao Brasil, e o outro para a Nova Escócia, no Canadá. Em seu caminho leste, o tsunami acelerou através do vão entre a Austrália e a Antártida e foi até o norte do Pacífico, também no Canadá. Nunca desde a erupção do vulcão Krakatoa, em 1883, um tsunami viajou tão longe.
O caminho completo do tsunami foi medido pela simulação de computador Most (Método de Separação de Tsunami, sigla em inglês), da NOAA (Administração Nacional Oceânica Atmosférica dos EUA). O modelo verificou que a altura simulada das ondas estava de acordo com as medidas locais em várias estações e revelou pela primeira vez exatamente como um tsunami consegue viajar tão longe. Um mapa da altura simulada das ondas do fenômeno do oceano Índico revelou que elas alcançam seu pico nas cadeias mesooceânicas, que conectam uma bacia oceânica a outra. Essas formações parecem canalizar a energia das ondas para além do que normalmente viajariam. Conhecer esse efeito é útil para prevenção porque os modelos poderiam estimar melhor aonde a maior parte da energia das ondas deve ir com mais probabilidade.
Prever como um tsunami vai se comportar depois que alcança a terra é um desafio muito maior. Assim como ocorre com todas essas ondas gigantes, as de dezembro de 2004 gradualmente frearam à medida que entraram em águas mais rasas. Na hora em que chegaram à terra, a distância entre as cristas, que era de centenas de quilômetros em alto-mar, já tinha caído para 15 km ou 20 km. Mas com a água rápida ainda fazendo pressão por trás, os picos de onda ficavam maiores e maiores, chegando a mais de 30 metros na província de Aceh, em Sumatra, a primeira região atingida.
Movendo-se a cerca de 30 km/h ou 40 km/h, as ondas varreram tudo para o interior - mais de 4 km em partes da cidade de Banda Aceh . Seu recuo foi tão violento quanto a ida, levando para bem longe no mar qualquer coisa que tivessem arrastado no caminho de ida. Ao longo de costas inundadas, as ondas atacaram as praias por horas. Como havia um intervalo de cerca de meia hora entre uma onda e outra, muitas pessoas voltaram para as praias e acabaram atacadas pela próxima que avançava.
Considerando a grande quantidade de fatores envolvidos, como os modelos poderiam prever uma variação como essa? Até o começo da década de 1990, por causa de complexidades computacionais não resolvidas, mesmo os melhores simuladores concluíam seus cálculos na linha da água ou no início da praia. Os cientistas então usavam a última altura da onda para estimar quão longe para o interior um tsunami entraria. Mas os primeiros levantamentos cuidadosos sobre as ocorrências sugeriam que as estimativas estavam longe da verdade. Um tsunami que atingiu a Nicarágua em 1992 foi o primeiro a render extensas medidas de campo para comparação com predições modelares. Os níveis de alagamento em alguns lugares superavam em 10 vezes o que os modelos haviam previsto.
Americanos e japoneses iniciaram então uma certa competição para tentar descrever a inundação de maneira mais exata, calculando a evolução inteira do tsunami sobre terra firme. Por meio de uma combinação de experimentos laboratoriais de larga escala e medidas de campo de tsunamis subseqüentes, os pesquisadores refinaram o modelo japonês Tunami-N2 e o americano Most até que pudessem corresponder relativamente bem aos padrões de inundação da maior parte dos eventos passados. Revelou-se que os modelos eram mais compatíveis com a inundação do oceano Índico que o esperado, apesar da relativa falta de detalhes sobre a topografia costeira.
Estudiosos das conseqüências de tsunamis na Indonésia e em outros lugares logo perceberam que a previsão da profundidade das inundações não dava conta do impacto total do desastre. Em muitos locais na Tailândia, no Sri Lanka e nas Maldivas, a profundidade do tsunami em terra era de menos de 4,5 metros, mas a devastação era praticamente a mesma de Aceh, onde a água estava seis vezes mais funda. Outro fato inesperado ocorreu em Banda Aceh, onde as ondas destruíram bloco após bloco de estruturas de concreto reforçado, que atendiam a padrões de construção modernos de resistência a terremotos.
Para dar conta da magnitude da destruição, Ahmet C. Yalciner da Universidade Técnica do Oriente Médio em Ancara, Turquia, e um de nós (Synolakis) estamos desenvolvendo um novo sistema de medição de danos de inundação - padrão para o cálculo de estruturas - que também considera o poder das correntes, muito mais fortes no avanço de tsunamis do que no de marés normais e temporais.

Reação Surpreendente
O maior enigma científico envolvendo o tsunami do oceano Índico é provavelmente o próprio terremoto. Mesmo sua magnitude é discutida, com algumas estimativas chegando a 9,3 na escala Richter-. Embora o choque sísmico tenha sido o maior que instrumentos modernos já registraram, tem sido um desafio descrever como a falha Sumatra-Andaman produziu um tsunami tão grande.
Sob qualquer aspecto, esse terremoto foi incrivelmente complexo. Em geral, o deslizamento da falha será maior no local de seu início, perto da origem. Em alguns casos, no entanto, a quebra da falha começa com um pequeno escorregão, sugerindo que o terremoto será pequeno, então encontra uma parte fraca ou altamente tensionada da falha que se parte de modo violento, resultando em um terremoto muito maior e em um tsunami. É o que aconteceu em dezembro de 2004. Casos como esse são difíceis de analisar a tempo de emitir um alerta eficiente.
Os modelos de previsão da NOAA foram postos à prova nessa ocasião. Fazer o modelo funcionar apenas com dados sísmicos resultaria em erro: uma redução na altura do tsunami em alto mar por um fator de 10 ou mais. A primeira medição direta da amplitude do evento, que chegou aos cientistas de uma estação de mareografia nas ilhas Cocos cerca de quatro horas depois que o terremoto aconteceu, melhorou significativamente as predições do modelo. Mas ainda faltava algo.
Nos dias seguintes, análises das ondas sísmicas fortes do choque indicavam que a quebra de falha inicial se acelerava de Sumatra para o norte à velocidade de 2,5 km/s, como gelo se rachando em um lago congelado. Também foi descoberta a área onde a placa havia deslizado mais - portanto, a de maior geração de tsunami. O problema para os construtores de modelos foi que nenhuma dessas soluções sísmicas incluía movimento suficiente da falha para reproduzir a altura de onda ou o alagamento severo observado em Banda Aceh.
A pista crucial veio de estações sediadas em terra que usam GPS para rastrear movimentos subterrâneos bem menores do que os produzidos por ondas sísmicas. Essas medidas revelaram que a falha continuava a se deslocar, embora vagarosamente, depois que parou de emanar energia sísmica. Mesmo havendo um limite mínimo de velocidade com que uma falha pode se deslocar e ainda assim produzir um tsunami, é mais provável que esse fenômeno normalmente desprezado, chamado de after-slip, seja o responsável pelas surpreendentes alturas do tsunami. Se for assim, a incorporação de leituras contínuas de GPS pode ser um importante componente dos sistemas de alarme de tsunamis.

Tentativa e Erro
Os fatores específicos em qualquer terremoto são extremamente relevantes. A Terra, como se quisesse nos avisar disso, produziu outro grande tremor ao longo da mesma falha no dia 26 de março de 2005. A quebra inicial ocorreu a uma distância equivalente da costa de Sumatra e quase à mesma profundidade que o terremoto de dezembro, e ambos os choques estão entre os dez mais fortes registrados desde 1900. Ainda assim, os dois episódios produziram tsunamis radicalmente diferentes.
Vendo o terremoto de março aparecer nas telas de computador com intensidade de 8,7, os cientistas do Centro de Alerta de Tsunamis do Pacífico e de outros lugares esperavam pelo pior. Danos graves de tremores de terra ocorreram, mas sem relatos imediatos de outros relacionados ao tsunami. Quando uma equipe internacional visitou a região duas semanas depois, mediu a alturas da onda em até 4 metros - ainda potencialmente letais. Alguns indonésios disseram ter aprendido com a primeira experiência e correram para o interior quando a terra tremeu. Uma evacuação mais eficiente, no entanto, foi apenas uma das razões pelas quais o tsunami de março não causou mais mortes.
A análise posterior dos choques do terremoto de dezembro sugeriu a Andrew Newman, do Instituto de Tecnologia da Geórgia, e a Susan Bilek, do Instituto de Mineração e Tecnologia do Novo México, que a falha deslizou perto da trincheira profunda naquele momento, e portanto estava sob águas mais fundas do que a da parte principal da falha, que deslizou em março. O tsunami de dezembro teve, assim, mais oportunidade de ganhar altura durante sua viagem das águas profundas para o litoral. Além disso, em março o movimento da falha ocorreu abaixo das ilhas de Nias e Simuelue, de maneira diferente do tsunami de dezembro, limitando com isso a quantidade de água que a crosta que se erguia podia deslocar.
Uma pequena diferença na maneira com que as zonas de falha rompidas se orientaram significou que as ondas gigantes rumaram em duas direções diferentes. No terremoto de março, a maior parte das ondas viradas para leste se chocou contra a ilha de Sumatra, o que impediu que muito da energia das ondas seguisse até a Tailândia e a Malásia. As ondas viradas para oeste foram lançadas mais na direção sudoeste, poupando o Sri Lanka, a Índia e as Maldivas, todas áreas que haviam sofrido terrivelmente em dezembro. Esses exemplos ressaltam a importância crítica que mesmo pequenas variações na localização do terremoto podem ter.
Apesar de ainda restarem incertezas científicas que provavelmente sempre envolverão fenômenos tão complexos, a nova ciência dos tsunamis já está pronta para implementação. O maior desafio para salvar vidas agora, em ambos os casos, é aplicar as descobertas científicas em educação, planejamento e sistemas de alerta adequados.


http://www2.uol.com.br/sciam/conteudo/materia/materia_87.html

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