quarta-feira, setembro 07, 2011

Quem salvará o povo líbio dos seus salvadores ocidentais?


O físico belga Jean Bricmont é mais conhecido no Brasil pela autoria – com o matemático Alan Sokal – de Imposturas Intelectuais, o melhor livro até hoje escrito sobre a miséria dita “pós-modernista”, seu caráter reacionário, e, sobretudo, a sua abissal estupidez.

Bricmont é também autor de Impérialisme humanitaire. Droits de l’homme, droit d’ingérence, droit du plus fort? (Imperialismo humanitário. Direitos do homem, direito de ingerência, direito do mais forte?), título que dispensa maiores explicações sobre o seu conteúdo. O leitor poderá tomar conhecimento do resumo que Bricmont fez dessa obra em Le Grand Soir (www.legrandsoir.info). Por exemplo: “... Fallujah foi uma Guernica sem Picasso. Uma cidade de 300.000 almas, sem água, eletricidade e víveres, vazia dos seus habitantes, levados para campos de prisioneiros. Depois do bombardeio metódico, a tomada da cidade, quarteirão por quarteirão. Quando um hospital era ocupado, o New York Times justificava, dizendo que serviu como um centro de propaganda, inflando o número de vítimas. Exatamente, quantas são as vítimas da guerra no Iraque? Ninguém sabe, nem faz body count (dos iraquianos). Quando estimativas são publicadas, mesmo pelas revistas científicas mais renomadas, como a Lancet, elas são denunciadas como exageradas”.

Desde o começo da agressão à Líbia, Bricmont foi um dos intelectuais europeus que recusaram-se a trair a sua herança humanística. Não faremos comentários, por desnecessários, sobre o artigo que hoje reproduzimos, publicado em 18 de agosto último, escrito por Bricmont em parceria com a escritora norte-americana Diane Johnstone - autora de um livro fundamental sobre a agressão da Otan à Iugoslávia, Fools’ Crusade: Yugoslavia, Nato, and Western Delusions.

A tradução do artigo para o português é do site Resistir.info.

C.L.

JEAN BRICMONT E DIANA JOHNSTONE

Lição de democracia. Em Março, uma coligação de potências ocidentais e de autocracia árabes uniram-se para promover o que era apresentado como uma espécie de pequena operação militar para “proteger os civis líbios”.

A 17 de Março, o Conselho de Segurança da ONU adotou a resolução 1973 que dava a esta “coligação de voluntários” um tanto particular o sinal verde para começar a sua pequena grega, controlando primeiro o espaço aéreo líbio, o que permitiu a seguir bombardear o que a OTAN quis bombardear. Os dirigentes da coligação esperavam manifestamente que os cidadãos líbios reconhecidos aproveitariam a ocasião fornecida por esta “proteção” vigorosa para derrubar Muamar Kadafi o qual, pretendia-se, queria “matar o seu próprio povo”. Baseando-se na ideia de que a Líbia estava dividida de modo claro entre “o povo” de um lado e “o mau ditador” do outro, esperava-se que este derrube ocorresse em alguns dias. Aos olhos ocidentais, Kadafi era um ditador pior que Ben Ali na Tunísia ou Mubarak no Egito, que caíram sem intervenção da OTAN. Kadafi deveria portanto cair muito mais rapidamente.

Cinco meses mais tarde, tornou-se evidente que todas as suposições nas quais se fundamentava esta guerra eram mais ou menos falsas. As organizações de defesa dos direitos do homem não conseguiram encontrar provas dos ditos “crimes contra a humanidade” cometidos por Kadafi contra “o seu próprio povo”. O reconhecimento do Conselho Nacional de Transição (CNT) como “único representante legítimo do povo líbio” por parte dos governos ocidentais, que era no mínimo prematuro, tornou-se grotesco. A OTAN empenhou-se numa guerra civil, exacerbando-a, e sem fazê-la sair do impasse.

Mas por mais absurda e destituída de justificação que esta guerra possa ser, ela continua. E quem é que pode travá-la?
Um dos melhores livros para ler neste Verão foi a excelente nova obra de Adam Hochschild, “To End All Wars”, sobre a Primeira Guerra Mundial e os movimentos pacifistas daquela época. Há muitas lições de atualidade que se podem encontrar neste livro, mas a mais pertinente é sem dúvida o fato de que uma vez começada uma guerra é muito difícil pará-la.

Os homens que começaram a primeira guerra mundial também pensavam que ela seria curta. Mas mesmo quando milhões de pessoas foram lançadas na tormenta assassina e quando o caráter absurdo do empreendimento tornou-se claro como água límpida, a guerra continuou durante quatro anos trágicos. A própria guerra engendra o ódio e uma vontade de retaliação. Quando uma grande potência começa uma guerra, ela “deve” ganhá-la, qualquer que seja o custo – para ela própria e sobretudo para os outros.


PILHAGEM

Até o presente, para os agressores da OTAN o custo da guerra contra a Líbia é puramente financeiro e isso é compensado pela esperança de uma pilhagem do país, quando ele for “libertado” e de que ele pagará para reembolsar aqueles que o bombardearam. Não é senão o povo líbio que perde vidas, bem como a sua infraestrutura.

Durante a primeira guerra mundial existia um corajoso movimento de oposição à guerra que enfrentou a histeria e o chauvinismo deste período e que advogava em favor da paz. Seus membros arriscavam-se a ataques físicos, assim como à prisão. O modo como Hochchild conta a luta pela paz destes homens e destas mulheres na Grã-Bretanha deveria servir de inspiração – mas para quem? Os riscos implicados pela oposição à guerra na Líbia são mínimos em comparação com os que existiam quando da guerra de 1914-1918. Mas no momento, uma oposição ativa é apenas visível.

Isto é particularmente verdadeiro na França, país cujo presidente, Nicolas Sarkozy, teve a iniciativa de começar esta guerra.

Acumulam-se os testemunhos das mortes de civis líbios, inclusive crianças, provocadas pelos bombardeamentos da OTAN (ver, por exemplo, o vídeo http://www.youtube.com/watch?v=vtS2qJeeXUA). Estes bombardeamentos visam a infraestrutura civil, a fim de privar a maioria da população que vive na parte do país leal a Kadafi dos bens de primeira necessidade, da alimentação e da água, a fim de pressionar o povo a derrubar Kadafi. A guerra para “proteger os civis” já se tornou uma guerra para aterrorizá-los e atormentá-los de modo a que o CNT apoiado pela OTAN possa tomar o poder.

Esta pequena guerra na Líbia mostra que a OTAN é ao mesmo tempo criminosa e incompetente.

Mas ela mostra igualmente que as organizações de esquerda nos países da OTAN são totalmente inúteis.

Provavelmente jamais houve uma guerra à qual fosse mais fácil opor-se. Mas a esquerda na Europa não se opõe.

Há três meses, quando a histeria midiática a propósito da Líbia foi lançada pela televisão do Qatar, Al-Jazeera, a esquerda não hesitou em tomar posição. Algumas dezenas de organizações de esquerda francesas e norte-africanas assinaram um apelo por “uma marcha de solidariedade com o povo líbio” em Paris, a 26 de Março (http://menilmontant.typepad.fr/7avous/2011/03/solidarite-ave...). Mostrando a sua total ausência de coerência, estas organizações exigiram, simultaneamente, por um lado “o reconhecimento do CNT, único representante legítimo do povo líbio” e, por outro, “a proteção dos residentes estrangeiros e dos migrantes” que, na realidade, deviam precisamente ser protegidos dos rebeldes representados por este conselho. Apoiando implicitamente operações militares de ajuda ao CNT, estes grupos apelavam também à “vigilância” a propósito da “duplicidade dos governos ocidentais e da Liga Árabe”, bem como a uma “escalada” possível das operações militares.

As organizações que assinavam este apelo incluíam grupos de oposições no exílio da Líbia, Síria, Tunísia, Marrocos e Argélia, assim como os Verdes franceses, o NPA, o Partido Comunista Francês, o Partido de Esquerda, o movimento antirracista MRAP, o partido dos Indígenas da República e o ATTAC. Estes grupos representavam praticamente tudo o que há de organizado à esquerda do Partido Socialista – que, pelo seu lado, (com exceção de Emmanueli) apoiava a guerra sem sequer fazer apelo à “vigilância”.

Agora que aumenta o número de vítimas civis dos bombardeamentos da NATO, não há nenhuma manifestação da vigilância prometida “a propósito da escalada da guerra” que saísse do quadro das resoluções do Conselho de Segurança da ONU.

Os militantes que, em Março, insistiam em dizer que “devemos fazer alguma coisa” para travar um massacre hipotético hoje nada fazem para travar um massacre que não é hipotético mas sim muito real e visível, e perpetrado exatamente porque aqueles “fizeram alguma coisa”.

O erro fundamental daqueles que, à esquerda, dizem “nós devemos fazer alguma coisa” reside na ambiguidade da palavra “nós”. Se eles querem dizer “nós” literalmente, então a única coisa que poderiam fazer seria por de pé espécies de brigadas internacionais para combater com os rebeldes. Mas naturalmente, apesar das grandes declarações segundo as quais “nós” devemos fazer “tudo” para apoiar o “povo líbio”, esta possibilidade nunca foi seriamente considerada.

Portanto o “nós” significa na prática as potências ocidentais, a OTAN e, sobretudo, os Estados Unidos, pois só eles possuem as “capacidades únicas” necessárias para travar uma tal guerra.

As pessoas que gritam “devemos fazer alguma coisa” geralmente misturam duas espécies de exigências: uma que podem esperar de modo realista ser aceite pelas potências ocidentais – apoio aos rebeldes, reconhecimento do CNT como único representante legítimo do povo líbio – e outra que não podem absolutamente esperar de modo realista que seja aceite pelas grandes potências e que são elas próprias totalmente incapazes de executar: limitar os bombardeamentos a alvos militares e à proteção dos civis, assim como permanecer escrupulosamente no quadro das resoluções da ONU.


CHEQUE EM BRANCO

Estes dois tipos de exigências contradizem-se uma à outra. Numa guerra civil, nenhuma das duas partes está preocupada principalmente com as sutilezas das resoluções da ONU ou com a proteção dos civis. Cada parte quer muito simplesmente ganhar e a vontade de retaliação leva muitas vezes a atrocidades. Se “apoia” os rebeldes, dá-se-lhes na prática um cheque em branco para fazer o que eles considerarem necessário a fim de ganhar a guerra.

Mas dá-se igualmente um cheque em branco aos aliados ocidentais e à OTAN, que talvez estejam menos ávidos de sangue que os rebeldes mas que têm à sua disposição meios de destruição muito maiores. E a OTAN é uma imensa burocracia – um dos fins essenciais da mesma é sobreviver. Ela deve absolutamente ganhar, senão terá um problema de “credibilidade”, assim como os políticos que apoiaram esta guerra. E este problema poderia levar a uma perda de financiamento e de recursos. Uma vez que a guerra começou não há simplesmente nenhuma força no Ocidente, na ausência de movimentos antiguerra determinados, que possa obrigar a OTAN a limitar-se ao que é autorizado pelas resoluções da ONU. Em consequência, a segunda espécie de exigências da esquerda cai na orelha de um surdo. Estas exigências servem simplesmente para provar que a esquerda pró intervenção tem intenções puras.

Ao “apoiar” os rebeldes, esta esquerda matou de fato o movimento anti-guerra. Com efeito, não tem sentido apoiar numa guerra civil um campo que quer desesperadamente ser ajudado por intervenções externas e, ao mesmo tempo, opor-se a tais intervenções. À direita pró intervenção é bem mais coerente.

O que a esquerda e a direita pró intervenção têm em comum é a convicção de que “nós” (isto é, “o ocidente democrático civilizado”) temos o direito e a capacidade de impor nossa vontade a outros países. Certos movimentos franceses (como o MRAP) que vivem literalmente da exploração da culpabilidade a propósito do racismo e do colonialismo, parecem ter esquecido que muitas das conquistas coloniais foram feitas contra sátrapas, príncipes indianos e reis africanos que eram denunciados como autocratas (o que de fato eram) e não parecem dar-se conta de que há alguma coisa de um tanto incongruente, para organizações francesas, em decidir quem são os “representantes legítimos” do povo líbio.

Apesar dos esforços de alguns indivíduos isolados, nenhum movimento popular na Europa é capaz de travar ou mesmo enfraquecer o ataque da OTAN. A única esperança poderia ser um colapso dos rebeldes, ou uma oposição nos Estados Unidos, ou uma decisão da parte das oligarquias dominantes de limitar as despesas. Enquanto isso, a esquerda europeia perdeu uma ocasião de renascer opondo-se a uma das guerras manifestamente mais injustificáveis da história. A Europa inteira sofrerá com esta derrota moral.



Jornal Hora do Povo:

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Hino da Independência do Brasil

quinta-feira, setembro 01, 2011

A paranoia do superávit primário


A paranoia do superávit primário
O texto que publicamos hoje foi extraído de “A Armadilha da Dívida”, de Reinaldo Gonçalves e Valter Pomar, livro publicado em 2002 pela Fundação Perseu Abramo – e que pode ser encontrado na excelente Biblioteca Digital da instituição.
O tema desse trecho do livro é a economia no governo tucano de Fernando Henrique. No entanto, há nele coisas muito atuais, em especial a descrição que lhe dá título, “A paranoia do superávit primário”.
É verdade que, ao contrário das paranoias descritas nos livros de psiquiatria e nos tratados de psicopatologia, os acometidos desta não parecem demonstrar a terrível angústia dos verdadeiros paranoicos. Pelo contrário, demonstram – veja só o leitor – êxtase quase orgiástico e até senso estético diante de um grande “superávit primário”. Não sabemos que beleza existe em tirar dinheiro da Educação, Saúde, em suma, de todos os setores que atendem à população, para remetê-los a bancos e demais especuladores, via juros. Mas que eles são possuídos de mais prazer diante de um opulento “superávit primário” do que os admiradores de Vermeer de Delft ao olhar um dos quadros do mestre holandês, lá isso é.
Mas tal incompreensão de nossa parte poderia ser o sinal de que se trata de uma verdadeira paranoia – afinal, o grande tratadista da psicopatologia, Karl Jaspers, em 1911, definiu como uma das características do delírio psicótico a “incompreensibilidade”, ou seja, a impossibilidade de remeter esse delírio a laços lógicos que o tornassem um desenvolvimento do pensamento normal.
No entanto, leitor, Jaspers não conheceu os atuais corifeus do “superávit primário”, que consideram que uma economia é tanto mais saudável quanto mais recursos públicos são desviados para os bancos e quanto mais sacrifício a população é submetida para que esse desvio do seu próprio dinheiro seja efetuado.
Se os conhecesse, certamente não os classificaria entre os psicóticos, que são gente que merece respeito.
Até hoje não houve um desses sequazes do “superávit primário” que fizesse a sua pregação desinteressadamente. Pelo contrário, todos acabam do outro lado do “superávit primário” - isto é, nos bancos, como diretores, executivos, consultores ou qualquer outra boca em que possam embolsar a sua parte do superávit. Existem até mesmo os que não esperam sair do governo para entrar nas recompensas desse infausto e difícil ofício cívico. Ora, por que não poderiam antecipar as prebendas? Perto deles, Joaquim Silvério era um sujeito modesto.
Porém, perguntará o leitor ainda não acostumado com a economia moderna: para que serve o “superávit primário”? Ora, leitor, exatamente para isso: passar dinheiro aos bancos e sustentar parasitas. Como se sabe, são atividades econômicas imprescindíveis para o país – assim como os piolhos são imprescindíveis ao couro cabeludo, para não falar de pelos mais deselegantes.
Esta introdução não está muito séria para um texto inegavelmente sério. Mas, leitor, às vezes há certos temas que não são sérios, mesmo quando os autores o são. Leia, então, o texto – didático, correto e, sobretudo, compreensível. Quase diríamos, se não fosse o sofrimento causado a milhões, provavelmente bilhões de pessoas, que o neoliberalismo é o maior barato. Infelizmente, tem gente que o leva a sério - e não estamos falando dos dois autores que apresentamos hoje aos leitores.
C.L.
REINALDO GONÇALVES E VALTER POMAR
O governo FHC é responsável pelo mais grave ciclo de endividamento (interno e externo) da história da economia brasileira, ao mesmo tempo em que reduziu as taxas de crescimento e investimento.
Na verdade, a política econômica do governo federal premiou – por exemplo, por meio dos juros altos – aqueles capitalistas que aplicaram seus recursos na área financeira.
O extraordinário aumento da dívida interna a partir de 1995 implicou a absorção de recursos na área financeira que, de outra forma, poderiam ter tido aplicação na esfera produtiva.
É claro que, em qualquer época, os capitalistas sempre aplicam parte de seus recursos nos mercados financeiros. Uma característica da época atual, de hegemonia das políticas econômicas chamadas de neoliberais, é exatamente o predomínio da financeirização. O governo FHC “apenas” levou essas tendências ao paroxismo.
Durante o governo FHC, a economia brasileira teve taxas de juros absurdamente elevadas, das maiores do mundo.
Com taxas de juro real que excederam 12% ao ano, não é de estranhar que o Brasil tenha tido taxas de investimento medíocres (inferiores a 20%) a partir de 1995.
Empresas não-financeiras deixam de fazer investimentos produtivos para comprar títulos públicos. E assalariados cuja renda permite alguma sobra no final do mês deixam de fazer gastos de consumo para fazer aplicações financeiras lastreadas em títulos públicos.
Para financiar o pagamento destes títulos, o governo implantou um tremendo arrocho fiscal. O aumento da carga tributária bruta, que cresceu de 28,4% em 1995 para 31,7% em 1999, reduziu a renda pessoal disponível na economia.
A combinação, desde 1995, desse tipo de política monetária e fiscal resultou naquela taxa média anual de crescimento real de 2,4% no período 1995-2001, medíocre segundo qualquer padrão de referência, seja o desempenho histórico da economia brasileira, seja o desempenho da economia mundial.
No que diz respeito ao desempenho da economia mundial, vale destacar que ela cresceu a uma taxa média anual de 3,6% no período 1995-2001, enquanto a “locomotiva” norte-americana cresceu 3,7% anualmente (FMI, 2000).
Na prática, portanto, o governo FHC adotou políticas que reduziram o crescimento econômico no Brasil, embora certamente tenham ajudado no crescimento econômico verificado nos países capitalistas centrais. Agora que mesmo aqueles países estão num momento de desaceleração econômica, o Brasil se vê no pior dos mundos.
Para realizar esta “façanha”, o governo, a mídia e os grandes empresários lançaram mão de vários mecanismos econômicos, políticos e ideológicos.
Um dos mecanismos ideológicos foi a criação de uma “paranoia”: a dos superávits primários. O entendimento deste e de outros conceitos é importante para se compreender os principais problemas de finanças públicas no Brasil.
Imaginemos um governo cujas dívidas sejam unicamente as relativas ao ano corrente. Este governo tem que arrecadar um volume de impostos necessário para pagar suas despesas correntes. Se as receitas forem inferiores às despesas, o governo terá um déficit. Se as receitas forem superiores às despesas, o governo terá um superávit.
Agora imaginemos que este governo tenha, além das despesas correntes, dívidas herdadas de anos anteriores. Ele terá que gerar um superávit equivalente às dívidas. Senão, incorrerá num déficit operacional e, caso não queira dar um calote nos seus credores, terá que lançar mão de suas reservas, vender patrimônio, pedir novos empréstimos e “rolar” as dívidas (ou seja, trocar dívida velha por dívida nova).
Há duas maneiras de criar um superávit (que chamamos de superávit primário): aumentando as receitas e reduzindo as despesas correntes (despesas não-financeiras).
Nisso consiste a “paranoia do superávit primário”: fazer de tudo para aumentar as receitas fiscais e para reduzir os gastos públicos, com o objetivo de sobrar dinheiro para pagar a dívida pública.
No governo FHC, a necessidade de financiamento do setor público está toda focada no pagamento das dívidas financeiras, mais exatamente dos juros dessas dívidas. Em 1998, por exemplo, houve um equilíbrio (primário) nas contas públicas: as despesas não-financeiras foram equivalentes às receitas. Ocorre que o pagamento de juros representou 7,5% do PIB e, como resultado, o déficit operacional foi de, exatamente, 7,5% do PIB. Em dólares correntes, o pagamento de juros foi equivalente a 60 bilhões ou cerca da metade do total do investimento produtivo realizado no país naquele ano. Resultado: centenas de milhares de postos de trabalho deixaram de ser criados.
A paranoia do superávit primário tem resultados que lembram a parábola da galinha dos ovos de ouro. Para gerar superávits, o governo corta despesas e amplia receitas; mas o governo corta despesas exatamente de quem ele cobra mais. As vítimas dos cortes, do arrocho e do crescimento medíocre são os assalariados e os setores médios, os mesmos que têm sua renda supertributada pelo governo, para gerar o superávit primário. Chegará o dia em que, como na Argentina de 2001, o governo não terá mais como ampliar receitas nem como reduzir despesas. Nesse dia, a galinha dos ovos de ouro estará morta.
Em resumo: a dívida criada pelo governo FHC é a principal herança que ele deixa para as próximas gerações de brasileiros. Por essa razão, diz-se que FHC comprometeu o futuro no Brasil. O descontrole das contas públicas é parte essencial da política de FHC, responsável por uma das maiores transferências de riqueza e de renda ocorridas na história do Brasil.

PARA INGLÊS VER
No Brasil de FHC, servir as dívidas financeiras tornou-se uma prioridade acima de todas as outras.
A dívida implica o pagamento de juros elevados, a deterioração das contas públicas, o aumento da carga tributária, a redução dos investimentos, o baixo nível de atividade econômica.
Isto reduz o potencial de crescimento econômico e também a capacidade do Estado de combater a pobreza e a desigualdade social, provoca a degradação dos serviços públicos, agravando problemas sociais como o desemprego e a violência.
Em decorrência, parcelas crescentes da população se decepcionam com a democracia, com os partidos, com os políticos, com os processos eleitorais. Um dos resultados disso é o comprometimento das instituições públicas e a tensão política que atravessa o Brasil e todos os países em que o neoliberalismo deitou raízes.
Os analistas conservadores em geral restringem o problema do endividamento interno a duas questões: custo e prazo. Em outras palavras: devemos administrar a dívida (ampliando os prazos de pagamento e reduzindo os juros), sem questionar as causas e consequências do endividamento.
Do ponto de vista dos que querem não apenas administrar o presente mas enfrentar o passado/presente para criar outro futuro, é preciso compreender as causas e consequências das dívidas e do endividamento.
O fenômeno do endividamento público só é compreensível visto do ângulo crítico da economia política, sob a ótica “externa” (relação entre diferentes Estados-nação) e sob a ótica “interna” (da luta de classes).
É impossível, por exemplo, entender o endividamento sem tomar em conta as relações entre as classes sociais (trabalhadores, capitalistas, pequenos proprietários), os movimentos e características do capital (“produtivo”, “especulativo”), a dimensão “doméstica” e a dimensão externa da dívida (as pressões do FMI para taxas de juros elevadas, a emissão de títulos públicos com correção cambial etc).
Após a Segunda Guerra Mundial, a maior parte dos governos não era adepta da “paranoia do superávit primário”, nem fazia da busca do superávit fiscal o leitmotiv de sua ação.
Naquele momento, ao contrário, os governos encaravam a expansão dos gastos públicos e os déficits fiscais como instrumentos necessários para estabilizar as economias capitalistas e, também, para promover o desenvolvimento econômico.
Após a crise dos anos 70 e a introdução das políticas neoliberais, importantes governos continuaram a utilizar os gastos públicos como instrumento de política econômica, mesmo quando diziam o contrário.
Um exemplo paradoxal é o da economia norte-americana. Tanto a política desenvolvida pelo governo Reagan (1981-1989) como a fórmula encontrada pelo governo George W. Bush, iniciado em 2001, para tirar os Estados Unidos da trajetória recessiva iniciada no final de 2000 tiveram por base a expansão dos gastos públicos.
Outro exemplo a destacar é o da Alemanha, país reconhecidamente rigoroso quanto ao equilíbrio das contas públicas. A trajetória recessiva da economia mundial em 2001 provocou um relaxamento do controle orçamentário, de tal forma que o déficit público originalmente previsto, de 1% do PIB em 2001, foi ampliado para pelo menos 2,5% (The Economist, edição brasileira encartada no jornal Valor, 9 de outubro, p. 12).
Esses exemplos mostram que um déficit público orientado para combater a exclusão ou para permitir a realização da capacidade produtiva (e, portanto, sua expansão) é visto como algo positivo até mesmo por governos que, na casa dos outros, estimulam a paranoia do superávit primário.
Mostram, também, que mesmo governos controlados pelo capital financeiro percebem que um superávit fiscal orientado para o pagamento de juros pode significar um freio ao desenvolvimento.
Portanto, a “paranoia” do superávit primário imposta pelo FMI e realizada pelo governo FHC não é equívoco, ingenuidade, ignorância ou esquizofrenia do presidente da República, mas sim uma política determinada e deliberada de concentração e transferência de riquezas.

AMPLIANDO A DEPENDÊNCIA
Nos anos 90, o país também recebeu investimentos estrangeiros de monta. Mas, na ocasião, aqueles investimentos não vieram participar de um ciclo de crescimento; em compensação resultaram num aprofundamento sem igual da dependência externa do Brasil.
Dois indicadores deixam isso claro: o saldo em conta corrente e o passivo externo. O saldo em conta corrente contabiliza as relações do Brasil com os demais países do mundo: se o saldo é negativo, isso significa que o país está enviando mais recursos para o exterior do que recebendo.
O passivo externo, por sua vez, é a soma de nossa dívida externa com o investimento estrangeiro no Brasil (no mercado financeiro, acionário ou sob a forma de investimento direto): o valor resultante indica a presença do capital estrangeiro na economia brasileira. Se abatermos desse número nossas reservas em moeda estrangeira mais os haveres externos dos bancos brasileiros, obteremos um indicador chamado “passivo externo líquido”. Em outras palavras: o saldo em conta corrente é uma medida de “fluxo”, enquanto o passivo externo é uma medida de “estoque”.
Em 1991, o saldo de transações correntes entre o Brasil e o mundo era negativo em 1,4 bilhão de dólares. Já em 2000, nosso saldo negativo foi de 24,6 bilhões de dólares. Em apenas uma década, multiplicamos por 17 nosso déficit em transações correntes. Em percentuais, a relação entre o déficit no balanço de pagamentos (saldo de transações correntes) e o PIB aumentou de menos de 1% para um déficit de 4,4% em 2000.
Em 1994, nosso passivo externo líquido era de 185 bilhões de dólares. Em 2000, ele cresceu para 355 bilhões de dólares. Isso indica um aumento da vulnerabilidade externa da economia brasileira. Ou seja, hoje somos mais suscetíveis, ou menos resistentes, a pressões, fatores desestabilizadores e choques externos.
Uma análise qualitativa da presença do capital estrangeiro na economia brasileira confirma que o modelo econômico iniciado no governo Collor e ampliado e aprofundado no governo FHC implicou sérios desequilíbrios nas esferas comercial, financeira, produtiva e tecnológica.

EUA reconhece 70 anos depois ter utilizado 1.300 guatemaltecos como cobaias humanas - Jornal Hora do Povo



A comissão para Estudos dos Assuntos da Bioética dos Estados Unidos confirmou que médicos do serviço de saúde pública estadunidense a serviço de monopólios farmacêuticos fizeram experimentos com vírus da sífilis e gonorréia em mais de mil pessoas na Guatemala nos anos 1940, provocando a morte de 83 guatemaltecos à época.
O experimento, que contaminou 1,3 mil pessoas na Cidade da Guatemala, de acordo com a comissão, permaneceu em segredo por mais de seis décadas. Os EUA admitiram os testes em outubro de 2010, quando a secretária de Estado, Hillary Clinton, e a secretária da Saúde, Kathleen Sebelius, denunciadas por familiares das vítimas, publicaram uma declaração conjunta desculpando-se pela pesquisa.
O grupo de investigação disse que os médicos americanos infectaram prisioneiros, pacientes psiquiátricos, prostitutas e órfãos em sessões que testavam a abrangência da penicilina. Um relatório deverá ser divulgado no próximo mês com conclusões sobre o caso, recomendações e análise histórica para evitar que a situação se repita.
De acordo com a presidente da comissão, Amy Gut-mann os funcionários “não pediram o consentimento das pessoas e as enganaram, não dando tratamento com penicilina às que estavam infectadas com sífilis e gonorréia”.
No começo deste ano, vários cidadãos guatemaltecos infectados à época e parentes das vítimas anunciaram que estavam abrindo processo contra o governo americano.
No total, um grupo de 5,5 mil pessoas participou dos estudos, sem saber dos riscos que corriam, segundo declarações de um dos investigadores, Stephen Hauser. Na relação dos infectados, apenas 700 receberam tratamento médico. Ao fim, 83 morreram.
A sífilis pode causar cegueira, distúrbios mentais e até a morte, caso os doentes não recebam o devido tratamento.
A história dos experimentos americanos na Guatemala veio à tona no ano passado, fruto de uma pesquisa histórica da professora Susan Reverby, do Wellesley College, de Massachusetts.
O presidente Barack Obama reconheceu o crime na segunda-feira (29), após a conclusão da Comissão, e pediu desculpas às vítimas, em ligação telefônica para o presidente da Guatemala Álvaro Colom.

Jornal Hora do Povo:

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