sexta-feira, julho 28, 2006

Plano de desenvolvimento da Amazônia vai além das medidas repressivas, diz coordenador

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Diminuir o ritmo de desmatamento da floresta amazônica e criar alternativas competitivas e rentáveis para os produtores estão entre as metas de um plano de desenvolvimento sustentável do agronegócio na região, em elaboração pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

“Os problemas relacionados à Amazônia não podem ser resolvidos apenas com medidas repressivas. Se não houver alternativas para as pessoas poderem garantir o seu emprego, não teremos sucesso durante muito tempo”, afirmou o coordenador do plano, Carlos Schlottfeldt.

O plano foi dividido em três programas. O primeiro trata da capacitação de produtores e profissionais com o objetivo de garantir o desenvolvimento sustentável da atividade. O segundo fomenta medidas que agregam valor aos produtos regionais, como o fortalecimento da marca Amazônia do Brasil. “Essas ações podem abrir o mercado para os produtos regionais”, explica Schlottfeldt.

O terceiro apóia o sistema de produção e viabiliza certos insumos e incentivos para a produção sustentável. “Outras atividades poderão ser desenvolvidas além do cultivo da soja e da criação de gado, a exemplo das culturas perenes, como o dendê, que tem um mercado potencial imenso e altamente competitivo. É nesse aspecto que entra o Estado, com mudas e knowhow, entre outras coisas”, diz o coordenador.

Mas na opinião do diretor da Campanha do Greenpeace para a Amazônia, Paulo Adário, o pequeno produtor que deseja plantar soja, por exemplo, encontra muitas dificuldades. Os processos de adaptação do solo envolvem a aplicação de herbicidas e o uso de aparelhos como a colheitadeira. Segundo Adário, a utilização de maquinário impede que o pequeno produtor sobreviva de forma adequada do plantio de soja.

O projeto está inserido no chamado Plano Amazônia Sustentável, proposto pelo Ministério da Integração, do Meio Ambiente e da Casa Civil, que foi pensado para conter a aceleração do desmatamento na região. “Isso é extremamente importante e o modelo de desenvolvimento da Amazônia vai depender muito disso”, concluiu Schlottfeldt. (Monique Maia/ Agência Brasil)

quinta-feira, julho 27, 2006

Syngenta desacata Lei brasileira e não paga multa que deve ao Ibama

Syngenta desacata Lei brasileira e não paga multa que deve ao Ibama

A Syngenta, multinacional que integra o cartel que monopoliza o mercado mundial de sementes transgênicas, ainda não pagou a multa de R$ 1 milhão que recebeu do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) paranaense, em março deste ano.

A multinacional fatura anualmente cerca de R$ 18,5 bilhões no mundo todo, segundo seu balanço de 2005. À custa do achaque aos produtores brasileiros, a empresa garante 10% do seu faturamento anual, ou seja, cerca de R$ 1,824 bilhão.

A multa foi aplicada pelo plantio ilegal das suas sementes geneticamente modificadas em área de segurança ambiental no Paraná, na zona de amortecimento do Parque Nacional do Iguaçu, uma das mais belas expressões da natureza no mundo que reúne uma conjunção de lençóis freáticos que, caso contaminados, podem trazer sérios prejuízos ao povo e ao país.

De acordo com o Ibama, a fazenda de 123 hectares plantados com milho geneticamente modificado para resistir aos seus próprios venenos herbicidas, está a 6 quilômetros do parque, enquanto a lei determina distância mínima de 10 quilômetros, exatamente pelo perigo de contaminação da flora nativa e das águas.

O “desconhecimento” da lei é uma prática corrente entre as meia dúzia de empresas que monopolizam o setor de transgênicos no mundo. Multas por fraude, corrupção de parlamentares e contrabando de sementes são poucos exemplos dos crimes cometidos por tais empresas. A lista vai longe, desde a extinção de espécies crioulas pela contaminação de seus transgeres até perseguição de cientistas que pesquisam os efeitos nocivos dos seus venenos ao meio ambiente e à saúde humana.

No final de março, a revista Nature publicou denúncia de que a Syngenta comercializa nos EUA, já há quatro anos, uma variedade de milho transgênico proibida no país. O milho Bt10 possui, além das características de resistência a doenças e a herbicidas, um gene marcador chamado “amp”, que confere resistência aos antibióticos penicilina e ampicilina. A preocupação dos cientistas que identificaram a prática ilegal, é pela possibilidade de transferência da resistência para microorganismos que vivem no rúmen, intestino ou no meio ambiente agrícola.

“Isso mostra o total descontrole que essas empresas têm em relação aos mutantes que produzem. O pólen dessa planta já foi espalhado no meio ambiente, permanecendo como uma ‘poluição genética’ no meio ambiente”, alertou a revista.

MARIANA MOUR

O lugar e o cotidiano - Introdução do livro "A Natureza do Espaço"

Milton Santos

Nas atuais condições de globalização, a metáfora proposta por Pascal (1) parece ter ganho realidade: o universo visto como uma esfera infinita, cujo centro está em toda parte... O mesmo se poderia dizer daquela frase de Tolstoi, tantas vezes repetida, segundo a qual, para ser universal, basta falar de sua aldeia...

Como nos lembra Michel Serres, "[...] nossa relação com mundo mudou. Antes, ela era local-local; agora é local-global[...]". Recorda esse filósofo, utilizando um argumento aproximativamente geográfico, que "hoje, temos uma nova relação com o mundo, porque o vemos por inteiro. Através dos satélites, temos imagens da Terra absolutamente inteira". (2)

Na verdade, a globalização faz também redescobrir a corporeidade. O mundo da fluidez, a vertigem da velocidade, a freqüência dos deslocamentos e a banalidade do movimento e das alusões a lugares e a coisas distantes, revelam, por contraste, no ser humano, o corpo como uma certeza materialmente sensível, diante de um universo difícil de apreender. Talvez, por isso mesmo, possamos repetir com edgar Morin (1990, p.44) que "hoje cada um de nós é como um ponto singular de um holograma que, em certa medida, contém o todo planetário que o contém".

Os lugares, desse ponto de vista, podem ser vistos como um intermédio entre o Mundo e o Indivíduo, lembra-nos Z. Mlinar (1990, p.57), para quem a lógica do desenvolvimento dos sistemas sociais se manifesta pela unidade das tendências opostas à individualidade e à globalidade. Essa é uma realidade tensa, um dinamismo que se está recriando a cada momento, uma relação permanente instável, e onde globalização e localização, globalização e fragmentação são termos de uma dialélica que se refaz com freqüência. As próprias necessidades do novo regime de acumulação levam a uma maior dissociação dos respectivos processos e subprocessos, essa multiplicidade de ações fazendo do espaço um campo de forças multicomplexo, graças à individualização e especialização minuciosa dos elementos do espaço: homens, empresas, instituições, meio ambiente construído, ao mesmo tempo em que se aprofunda a relação de cada qual com o sistema do mundo.

Cada lugar é, à sua maneira, o mundo. Ou, como afirma M.A. de Souza (1995, p.65), "todos os lugares são virtualmente mundiais". Mas, também, cada lugar, irrecusavelmente imerso numa comunhão com o mundo, torna-se exponencialmente diferente dos demais. A uma maior globalidade, corresponde uma maior individualidade. É a esse fenômeno que G.Benko (1990, p.65) denomina "glocalidade", chamando a atenção para as dificuldades do seu tratamento teórico. Para apreender essa nova realidade do lugar, não basta adotar um tratamento localista, já que o mundo se encontra em toda parte. Também devemos evitar o "risco de nos perder em uma simplificação cega", a partir de uma noção de particularidade que apenas leve em conta "os fenômenos gerais dominados pelas forças sociais globais" Georges Benko (1990, p.65). A história concreta do nosso tempo repõe a questão do lugar numa posição central, conforme, aliás, assinalado por diversos geógrafos. A.Fischer (1994, p.73), por exemplo, refere-se à "redescoberta da dimensão local".

Impõe-se, ao mesmo tempo, a necessidade de, revisitando o lugar no mundo atual, encontrar os seus novos significados. Uma possibilidade nos é dada através da consideração do cotidiano (A. Buttimer, 1976; A. Garcia,1992, A Damiani, 1994). Esta categoria da existência presta-se a um tratamento geográfico do mundo vivido que leve em conta as variáveis de que nos estamos ocupando neste livro: os objetos, as ações, a técnica, o tempo.

Atividade racional, atividade simbólica e espaço

É largamente conhecida a tipologia da ação social proposta por Weber, segundo a qual se podem distinguir uma atividade racional visando a um fim prático e uma atividade comunicacional, mediada por símbolos. J. Habermas (1968, 1973, 1981, 1987) e outros autores retomaram essa quetão, em extensão e em profundidade, para realçar o papel da interação na produção dos sistemas sociais. Partindo do fenômeno técnico, G.Simondon (1958) já havia proposto distinguir entre, de um lado, uma ação humana sobre o meio e, de outro, uma ação simbólica sobre o ser humano. Sem o escrever explicitamente, B. Stiegler (1994, p.25) aproxima essas duas propostas, quando reinterpreta Gehlen e Habermas, ao realçar a oposição entre uma interação mediada pelas técnicas e sua racionalidade e uma interação mediada pelos símbolos e pela ação comunicacional.

Uma dada situação não pode ser plenamente apreendida se, a pretexto de contemplarmos sua objetividade, deixamos de considerar as relações intersubjetivas que a caracterizam. G. Berger (1964, p.173) já nos lembrava de que "o caráter humano do tempo da ação é "intersubjetivo". E Bakhtin (1986, 1993, p.54), mais perto de nós, afirma que a arquitetura concreta do mundo atual dos atos realizados tem três momentos básicos: o Eu-para-mim mesmo; o outro-para-mim; o Eu-para-o outro (basic moments: I-for-myself, the other-for-me, and I-for-the-other). É desse modo que se constroem e refazem os valores, através de um processo incessante de interação.

A.D. Rodrigues (1994, p.75) nos convida a estabelecer uma clara distinção entre informação e comunicação. Ele nos lembra de que "podemos nos comunicar com o mundo que nos rodeia, com os outros, e até mesmo conosco, sem procedermos à transmissão de quaisquer informações, tal como podemos transmitir informações sem criarmos ou alimentarmos quaisquer laços sociais". Para este autor, "na experiência comunicacional inter vêm processos de interlocução e de interação que criam, alimentam e restabelecem os laços sociais e a sociabilidade entre os indivíduos e grupos sociais que partilham os mesmos quadros de experiência e identificam as mesmas ressonâncias históricas de um passado comum".

"Comunicar", lembra-nos H.Laborit (1987, p.38) "etimologicamente significa pôr em comum". Esse processo, no qual entram em jogo diversas interpretações do existente, isto é, das situações objetivas, resulta de uma verdadeira negociação social, de que participam preocupações pragmáticas e valores simbólicos, "pontos de vista mais ou menos compartidos", em proporções variáveis, diz S. van der Leecew (1994, p.34). Nessa construção, pois, além do próprio sujeito, entram as coisas e os outros homens. Segundo ainda G. Berger (1943, 1964, p.15) "a idéia dos outros implica a idéia de um mundo".

A seguir Tran-Duc-Thao (1951, 1971, p.260), os "esboços simbólicos", providos pelo movimento de cooperação, prolongam a atividade própria do sujeito e abarcam a totalidade da tarefa comum, levando cada sujeito a tomar consciência de que a universalidade é o verdadeiro sentido de sua existência singular.

"A práxis se revela também como totalidade" diz H. Lefebvre (1958, p.238), e por isso "a análise da vida cotidiana envolve concepções e apreciações na escala da experiência social em geral" (H. Lefebvre, 1971, p.28), o que inclui, paralelamente "uma apropriação profunda e uma compreensão imediata" (J.-P. Sartre, 1960, p. 207).

O mundo ganha sentido por ser esse objeto "comum", alcançado através das relações de reciprocidade que, ao mesmo tempo, produzem a alteridade e a comunicação. É desse modo, ensina G. Berger (1964, p.15), que o mundo constitui "o meio de nos unir, sem nos confundir". Essa transindividualidade, definida por Simondon (1958, p.248), é constituída pelas relações inter-humanas que incluem o uso das técnicas e dos objetos técnicos. A territorialidade é, igualmente, transindividualidade, e a compartimentação da interação humana no espaço (Sanguin, 1977, p.53; C. Raffestin, 1980, p.146; Soja, 1971) é tanto um aspecto da territorialidade como da transindividualidade.

A relação do sujeito com o prático-inerte inclui a relação com o espaço. O prático-inerte é uma expressão introduzida por Sartre, para significar as cristalizações da experiência passada, do indivíduo e da sociedade, corporificadas em formas sociais e, também, em configurações espaciais e paisagens. Indo além do ensinamento de Sartre, podemos dizer que o espaço, pelas suas formas geográficas materiais, é a expressão mais acabada do prático-inerte.

O papel da proximidade

No espaço - que é uno mas diferenciado - impõe-se com mais força a unidade prático-inerte do múltiplo a que se refere A. Gorz (1959, 1964), essa "unidade exterior da atividade de todos em sua condição de outros". O espaço se dá ao conjunto dos homens que nele se exercem como um conjunto de virtualidades de valor desigual, cujo uso tem de ser disputado a cada instante, em função da força de cada qual. Podemos comparar essa situação àquela com que Sartre (1960, p.210) define o fenômeno da escassez. No dizer de Sartre, nessa situação "cada qual sabe que figura como objeto no campo prático do outro" e "isso mesmo impede os dois movimentos de unificação prática de constituir com o mesmo entorno (environnement) dois campos de ação diferentes".

A noção de socialidade, difundida entre os sociólogos, encontra em geógrafos como Di Meo (1991) e J. Lévy (1994), uma explicitação. Tal socialidade lembra Schutz (Schutz, 1967) será tanto mais intensa quanto maior a proximidade entre as pessoas envolvidas. Simmel (1903, p.47) já o havia salientado, ao distinguir entre os extremos da distância espacial e da proximidade espacial (B. Werlen, 1993, p.170). É apropriado dizer, como Muniz Sodré (1988, p.18), que " a relação espacial, inapreensível pelas estruturas clássicas de ação e de representação, é inteligível como um princípio de coexistência da diversidade", e constitui uma garantia do exercício de possibilidade múltiplas de comunicação (3).

Os economistas também se preocupam com essa questão da proximidade, a distância sendo considerada como um fator relevante na estruturação do comércio internacional (Y. Berthelot, 1994, pp.15-16). Mas a proximidade que interessa ao geógrafo - conforme já vimos - não se limita a uma mera definição das distâncias; ela tem que ver com a contigüidade física entre pessoas numa mesma extensão, num mesmo conjunto de pontos contínuos, vivendo com a intensidade de suas inter-relações. Não são apenas as relações econômicas que devem ser apreendidas numa análise da situação de vizinhança, mas a totalidade das relações. É assim que a proximidade, diz J.-L. Guigou (1995, p.56) "pode criar a solidariedade , laços culturais e desse modo a identidade". O papel da vizinhança na produção da consciência é mostrado por J. Duvignaud (1977, p.20), quando identifica na "densidade social" produzida pela fermentação dos homens em um mesmo espaço fechado, uma "acumulação que provoca uma mudança surpreendente" movida pela afetividade e pela paixão, e levando a uma percepção global, "holista", do mundo e dos homens. Quando ele se refere a "espaços fechados" (espace clos, huis-clos), uma primeira leitura do seu texto pode levar a crer que a situação descrita estaria limitada àqueles lugares fortificados, medrosos do inimigo exterior, protegidos atrás de muralhas, dos quais as cidades medievais são o melhor exemplo. O fato, porém, é que, pela estruturação do seu território e do seu mercado - uno e múltiplo -, as cidades atuais, sobretudo as metrópoles, abertas a todos os ventos do mundo, não são menos individualizadas. Esses lugares, com a sua gama infinita de situações, são a fábrica de relações numerosas, freqüentes e densas. O número de viagens internas é muitas vezes superior ao de deslocamentos para outros subespaços. Em condições semelhantes, as grandes cidades são muito mais buliçosas que a médias e pequenas. A cidade é o lugar onde há mais mobilidade e mais encontros. A anarquia atual da cidade grande lhe assegura um maior número de deslocamentos, enquanto a geração de relações interpessoais é ainda mais intensa. O movimento é potencializado nos países subdesenvolvidos, graças à enorme gama de situações pessoais de renda, ao tamanho desmesurado das metrópoles e ao menor coeficiente de "racionalidade" na operação da máquina urbana.

Nelas, a co-presença e o intercâmbio são condicionados pelas infraestruturas presentes e suas normas de utilização, pelo mercado territorialmente delimitado e pelas possibilidades de vida cultural localmente oferecidas pelo equipamento existente. A divisão do trabalho dentro dessas cidades é o resultado da conjugação de todos esses fatores, não apenas do fator econômico.

O intercâmbio efetivo entre pessoas é a matriz da densidade social e do entendimento holístico referidos por Duvignaud (1977) e que constituem a condição desses acontecimentos infinitos, dessas solicitações sem-número, dessas relações que se acumulam, matrizes de trocas simbólicas que se multiplicam, diversificam e renovam. A noção de "emorazão" (S.Laflamme, 1995), encontra seu fundamento nessas trocas simbólicas que unem emoção e razão.

A noção de co-presença, de que a sociologia vem servindo-se desde os seus fundadores, noção realçada por Goffman (1961) e retomada por Giddens (1987), ganha uma nova dimensão quando associada à noção e à realidade geográfica da vizinhança, essa "condição de vizinhança" referida por Sartre em "Questions de Méthode". O território compartido impõe a inter dependência como práxis, e essa "base de operação" da "comunidade" no dizer de Parsons (1952, p.91) constitui uma mediação inevitável para o exercício dos papéis específicos de cada qual, conforme realça B. Werlen (1993, p.190). Nas cidades, esse fenômeno é ainda mais evidente, já que pessoas desconhecidas entre si trabalham conjuntamente para alcançar, malgrado elas, resultados coletivos. Teilhard de Chardin (4) já se referia ao que chamava de "pressão humana" resultado da acumulação crescente dos homens em espaços limitados, como uma fator de mudança qualitativa e rápida das relações sociais no mundo contemporâneo. Comentando essa idéia, Gaston Berger (1964, p.249) assinala que " ao mesmo tempo [....] aumentam a agitação, o raio de ação e as relações" entre os homens e compara esse fato com o fenômeno físico pelo qual a pressão de um gás depende do número de moléculas comprimidas, e aumenta também com o aumento da temperatura, isto é, com a agitação das partículas. É bom pensar, ainda com G. Berger, que "entram em cena, hoje, massas que estavam estacionárias".

Este último fenômeno é tanto mais significativo porque em nossos dias a cultura popular deixa de estar cantonada numa geografia restritiva e encontra um palco multitudinário, graças às grandes arenas, como os enormes estádios e as vastas casas de espetáculo e de diversão e graças aos efeitos ubiqüitários trazidos por uma aparelhagem tecnotrônica multiplicadora. Sob certos aspectos, a cultura popular assume uma revanche sobre a cultura de massas, constitucionalmente destinada a sufocá-la. Cria-se uma cultura popular de massas, alimentada com a crítica espontânea de um cotidiano repetitivo e, também não raro, com a pregação de mudanças, mesmo que esse discurso não venha com uma proposta sistematizada. "A cultura de massas "permissiva" do século XX extraiu uma nova liberdade de um sistema cultural anteriormente repressivo e hierárquico" (Silvio Funtowicz, Jerome R. Ravetz, 1993).

A dimensão espacial do cotidiano

Com o papel que a informação e a comunicação alcançaram em todos os aspectos da vida social, o cotidiano de todas as pessoas assim se enriquece de novas dimensões. Entre estas, ganha relevo a sua dimensão espacial, ao mesmo tempo em que esse cotidiano enriquecido se impõe como uma espécie de quinta dimensão do espaço banal, o espaço dos geógrafos.

Através do entendimento desse conteúdo geográfico do cotidiano poderemos, talvez, contribuir para o necessário entendimento (e, talvez, teorização) dessa relação entre espaço e movimentos sociais, enxergando na materialidade, esse componente imprescindível do espaço geográfico, que é, ao mesmo tempo, uma condição para a ação; uma estrutura de controle, um limite à ação; um convite à ação. Nada fazemos hoje que não seja a partir dos objetos que nos cercam.

E enquanto outros especialistas podem escolher, na listagem de ações e na população de objetos, aqueles que interessam aos seus estudos setoriais, o geógrafo é obrigado a trabalhar com todos os objetos e todas as ações.

O espaço inclui, pois, essa "conexão materialística de um homem com o outro" de que falam Marx e Engels na "Ideologia Alemã" (1947, pp.18-19), conexão que "está sempre tomando novas formas". A forma atual, conforme já vimos, supõe informação para o seu uso e ela própria constitui informação, graças à intencionalidade de sua produção. Como hoje nada fazemos sem esses objetos que nos cercam, tudo o que fazemos produz informação.

A localidade se opõe à globalidade, mas também se confunde com ela. O Mundo, todavia, é nosso estranho. Entretanto se, pela sua essência, ele pode esconder-se, não pode fazê-lo pela sua existência, que se dá nos lugares. No lugar, nosso Próximo, se superpõem, dialeticamente, o eixo das sucessões, que transmite os tempos externos das escalas superiores e o eixo dos tempos internos, que é o eixo das coexistências, onde tudo se funde, enlaçando, definitivamente, as noções e as realidades de espaço e de tempo.

No lugar - um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas e instituições - cooperação e conflito são a base da vida em comum. Porque cada qual exerce uma ação própria, a vida social se individualiza; e porque a contigüidade é criadora de comunhão, a política se territorializa, com o confronto entre organização e espontaneidade. O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade.

Os pobres na cidade

Com a modernização contemporânea, todos os lugares se mundializam. Mas há lugares globais simples e lugares globais complesos. Nos primeiros apenas alguns vetores da modernidade atual se instalam. Nos lugares complexos, que geralmente coincidem com as metrópoles, há profusão de vetores: desde os que diretamente representam as lógicas hegemônicas, até os que a elas se opõem. São vetores de todas as ordens, buscando finalidades diversas, às vezes externas, mas entrelaçadas pelo espaço comum. Por isso a cidade grande é um enorme espaço banal, o mais significativo dos lugares. Todos os capitais, todos os trabalhos, todas as técnicas e formas de organizaçnao podem aí se instalar, conviver, prosperar. Nos tempos de hoje, a cidade grande é o espaço onde os fracos podem subsistir.

Durante muito tempo, a metrópole foi definida, nos países subdesenvolvidos pelo menos, como o lugar em que se concentravam os recursos da Nação e a densidade capitalista era mais alta. Essa era a base da teoria do pólo e da periferia de G. Myrdal (1957), A. Hirschman (1958), J. Friedmann (1963), F. Perroux (1961) e J. Boudeville (1964). Hoje, graças ao fenômeno das redes e à difusão da modernidade no território, sabemos que o capital novo se difunde mais largamente, mais profundamente, e mais rapidamenter, no campo do que na cidade. E nesta, o próprio meio ambiente construído freqüentemente constitui um obstáculo à difusão dos capitais novos. Graças à sua configuração geográfica, a cidade, sobretudo a grande, aparece como diversidade socioespacial a comparar vantajosamente com a biodiversidade hoje tão prezada pelo movimento ecológico. Palco da atividade de todos os capitais e de todos os trabalhos, ela pode atrair e acolher as multidões de pobres expulsos do campo e das cidades médias pela modernização da agricultura e dos serviços. E a presença dos pobres aumenta e enriquece a diversidade socioespacial, que tanto se manifesta pela produção da materialidade em bairros e sítios tão constrastantes, quanto pelas formas de trabalho e de vida. Com isso, aliás, tanto se ampliam a necessidade e as formas da divisão do trabalho, como as possibilidades e as vias da intersubjetividade e da interação. É por aí que a cidade encontra o seu caminho para o futuro.

Não pretendemos aqui reproduzir um velho esquema de análise da economia urbana, esquema dual, mas não dualista, utilizado primeiro para os países do Terceiro Mundo (Santos, 1979) e hoje ampliado aos países ricos, com o reconhecimento da existência de um setor dito informal ao lado de um setor dito formal da economia. Pode-se, entretento, admitir que, nas condições atuais - e permeadas por uma infinidade de situações intermediárias - existem duas situações tipo em todas as grandes cidades. Há, de um lado, uma economia explicitamente globalizada, produzida de cima, e um setor produzido de baixo, que, nos países pobres, é um setor popular e, nos países ricos, inclui os setores desprivilegiados da sociedade, incluídos os imigrantes. Cada qual é responsável pela instalação, dentro das cidades, de divisões de trabalho típicas. Em todos os casos, a cidade é um grande sistema, produto de superposição de subsistemas diversos de cooperação, que criam outros tantos sistemas de solidariedade. Nas atuais condições de globalização, todos esses subcírculos ou subsistemas de solidariedade tendem a especializações que não tem a mesma natureza. Pode-se, também, dizer que há uma especialização de atividades por cima e uma especialização de atividades por baixo. Mas a primeira é rígida, dependente de normas implacáveis, de cuja obediência depende a sua eficácia. Diz-se destas normas que são complexas por causa do seu conteúdo científico e tecnológico e de sua busca de precisão no processo produtivo. Mas, também, pode-se dizer que, na economia mais pobre, as divisões do trabalho consideradas mais simples pelo discurso dominante, são, de fato, as mais complexas? Nas grandes cidades, sobretudo no Terceiro Mundo, a precariedade da existência de uma parcela importante (às vezes a maioria) da população não exclui a produção de necessidades, calcadas no consumo das classes mais abastadas. Como resposta, uma divisão do trabalho imitativa, talvez caricatural, encontra as razões para se instalar e se reproduzir. Mas aqui o quadro ocupacional não é fixo: cada ator é muito móvel, podendo sem trauma exercer atividades diversas ao sabor da conjuntura. Essas metamorfoses do trabalho dos pobres nas grandes cidades cria o que, em um outro lugar (Santos, 1991) denominamos de "flexibilidade tropical". Há uma variedade infinita de ofícios, uma multiplicidade de combinações em movimento permanente, dotadas de grande capacidade de adaptação, e sustentedas no seu próprio meio geográfico, este sendo tomado como uma forma-conteúdo, um híbrido de materialidade e relações sociais. Desse modo, as respectivas divisões proteiformes de trabalho, adaptáveis, instáveis, plásticas, adaptam-se a si mesmas, mediante incitações externas e internas. Sua solidariedade se cria e se recria ali mesmo, enquanto a solidariedade imposta pela cooperação de tipo hegemônico é comandada de fora do meio geográfico e do meio social em que incide.

No primeiro caso, avultam as relações de proximidade, que também são uma garantia da comunicação entre os participantes. Nesse sentido, os guetos urbanos, comparados a outras áreas da cidade, tenderiam a dar às relações de proximidade um conteúdo comunicacional ainda maior e isso se deve a uma percepção mais clara das situações pessoais ou de grupo e à afinidade de destino, afinidade econômica ou cultural.

Durante séculos, acreditáramos que os homens mais velozes detinham a inteligência do Mundo (5). A literatura que glorifica a potência inclui a velocidade como essa força mágica que permitiu à Europa civilizar-se primeiro e empurrar, depois, a "sua" civilização para o resto do mundo (6). Agora, estamos descobrindo que, nas cidades, o tempo comanda, ou vai comandar, é o tempo dos homens lentos. Nagrande cidade, hoje, o que se dá é tudo ao contrário. A força é dos "lentos" e não dos que detêm a velocidade elogiada por Virilio em delírio, na esteira de um Valéry sonhador. Quem, na cidade, tem mobilidade - e pode percorrê-la e esquadrinhá-la - acaba por ver pouco, da cidade e do mundo. sua comunhão com as imagens, freqüentemente prefabricadas, é a sua perdição. Seu conforto, que não desejam perder, vem, exatamente, do convívio com essas imagens. os homens "lentos", para quem tais imagens são miragens, não podem, por muito tempo, estar em fase com esse imaginário perverso e acabam descobrindo as fabulações.

É assim que eles escapam ao totalitarismo da racionalidade, aventira vedada aos ricos e às classes medias. Desse modo, acusados por uma literatura sociológica repetitiva, de orientação ao presente e de incapacidade de prospectiva, são os pobres que, na cidade, mais fixamente olham para o futuro.

Na cidade "luminosa", moderna, hoje, a "naturalidade" do objeto técnico cria uma mecânica rotineira, um sistema de gestos sem surpresa. Essa historicização da metafísica crava no organismo urbano áreas constituídas ao sabor da modernidade e que se justapõem, superpõem e contrapõem ao resto da cidade onde vivem os pobres, nas zonas urbanas 'opacas'. Estas são os espaços do aproximativo e da criatividade, opostos às zonas luminosas, espaços da exatidão. Os espaços inorgânicos é que são abertos, e os espaços regulares são fechados, racionalizados e racionalizadores.

Por serem "diferentes", os pobres abrem um debate novo, inédito, às vezes silencioso, às vezes ruidoso, com as populações e as coisas já presentes. É assim que eles reavaliam a tecnoesfera e a psicoesfera, encontrando novos usos e finalidades para objetos e técnicas e também novas articulações práticas e novas normas, na vida social e afetiva. Diante das redes técnicas e informacionais, pobres e migrantes são passivos, como todas as demais pessoas. É na esferas comunicacional que eles diferentemente das classes ditas superiores, são fortemente ativos.

Trata-se, para eles, da busca do futuro sonhado como carência a satisfazer - carência de todos os tipos de consumo, consumo material e imaterial, também carência do consumo político, carência de participação e de cidadania. Esse futuro é imaginado ou entrevisto na abundância do outro e entrevisto, como contrapartida, nas possibilidades apresentadas pelo Mundo e percebidas no lugar.

Então, o feitiço se volta contra o feiticeiro. O consumo imaginado, mas não atendido - essa "carência fundamental" no dizer de Sartre -, produz um desconforto criador. O choque entre cultura objetiva e cultura subjetiva torna-se instrumento da produção de uma nova consciência.

Segundo P. Rimbaud (1973, p.283) "a cidade transforma tudo, inclusive a matéria inerte, em elementos de cultura". A cultura, forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o universo, é uma herança, mas também um reaprendizado das relações profundas entre o homem e o seu meio. "De que cultura estaremos falando? Da cultura de massas, que se alimanta das coisas, ou da cultura profunda, cultura popular, que se nutre dos homens? A cultura de massa, denominada "cultura" por ser hegemônica, é, freqüentemente, um emoliente da consciência. O momento da consciência aparece quando os indivíduos e os grupos se desfazem de um sistema de costumes, reconhecendo-os como um jogo ou uma limitação" (M.Santos, 1987, 1992, p.64).

As classes medias amolecidas deixam absorver-se pela cultura de massa e dela retiram argumento para racionalizar sua existência empobrecida. Os carentes, sobretudo os mais pobres, estão isentos dessa absorção, mesmo porque não dispõem dos recursos para adquirir aquelas coisas que transmitem e asseguram essa cultura de massa. É por isso que as cidades, crescentemente inegalitárias, tendem a abrigar, ao mesmo tempo, uma cultura de massa e uma cultura popular, que colaboram e se atritam, interferem e se excluem, somam-se e se subtraem, num jogo dialético sem-fim.

A cultura de massa é indiferente à ecologia social. Ela responde afirmativamente à vontade de uniformização e indiferenciação. A cultura popular tem raízes na terra em que se vive, simboliza o homem e seu entorno, encarna a vontade de enfrentar o futuro sem romper com o lugar, e de ali obter a continuidade, através da mudança. Seu quadro e seu limite são as relações profundas que se estabelecem entre o homem e o seu meio, mas seu alcance é o mundo.

Essa busca de caminhos é, também, visão iluminada do futuro e não apenas prisão em um presente subalternizado pela lógica instrumental ou aprisionado num cotidiano vivido como preconceito. É a vitória da individualidade refortalecida, que ultrapassa a barreira das práxis repetitivas e se instala em uma práxis libertadora, a práxis inventiva de que fala H. Lefebvre (1958, p.240).

Os migrantes no lugar: da memória à descoberta

Vivemos um tempo de mudanças. Em muitos casos, a sucessão alucinante dos eventos não deixa falar de mudanças apenas, mas de vertigem. O sujeito no lugar estava submetido a uma convivência longa e repetitiva com os mesmos objetos, os mesmos trajetos, as mesmas imagens, de cuja construção participava: uma familiaridade que era fruto de uma história própria, da sociedade local e do lugar, onde cada indivíduo era ativo.

Hoje, a mobilidade se tornou praticamente uma regra. O movimento se sobrepõe ao repouso. A circulação é mais criadora que a produção. Os homens mudam de lugar, como turistas ou como imigrantes. Mas também os produtos, as mercadorias, as imagens, as idéias. Tudo voa. Daí a idéia de "desterritorialização". Desterritorialização é, freqüentemente, uma outra palavra para significar estranhamente, que é, também, desculturização. Vir para a cidade grande é, certamente, deixar atrás uma cultura herdada para se encontrar com uma outra. Quando o homem se defronta com um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja memória lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma vigorosa alienação.

Mas, num mundo do movimento, a realidade e a noção de residência (Husserl, Heidegger, Sartre) do homem não se esvaem. O homem mora talvez menos, ou moras muito menos tempo, mas ele mora: mesmo que ele seja desempregado ou migrante. A "residência", o lugar de trabalho, por mais breve que sejam, são quadros de vida que têm peso na produção do homem. Como escreveu Husserl (1975, p.26) "[...] o fundamento permanente do trabalho subjetivo de pensar é o entorno vital".

Segundo Lowenthal (1975), o passado é um outro país... Digamos que o passado é um outro lugar, ou, ainda melhor, num outro lugar. No lugar novo, o passado não está; é mister encarar o futuro: perplexidade primeiro, mas, em seguida, necessidade de orientação. Para os migrantes, a memória é inútil. trazem consigo todo um cabedal de lembranças e experiências criado em função de outro meio, e que de pouco lhes serve para a luta cotidiana. Precisam criar uma terceira via de entendimento da cidade. Suas experiências vividas ficaram para trás e nova residência obriga a novas experiências. Trata-se de um embate entre o tempo da ação e o tempo da memória. Obrigados a esquecer, seu discurso é menos contaminado pelo passado e pela rotina. Cabe-lhes o privilégio de não utilizar de maneira pragmática e passiva o pratico-inerte (vindo de outros lugares) de que são portadores.

Ultrapassado um primeiro momento de espanto e atordoamento, o espírito alerta se refaz, reformulando a idéia de futuro a partir do entendimento novo da nova realidade que o cerca. O entorno vivido é lugar de uma troca, matriz de um processo intelectual.

O homem busca reaprender o que nunca lhe foi ensinado, e pouco a pouco vai substituindo a sua ignorância do entorno por um conhecimento, ainda que fragmentário.

O novo meio ambiente opera como uma espécie de detonador. Sua relação com o novo morador se manifesta dialeticamente como territorialidade nova e cultura nova, que interferem reciprocamente, mudando-se paralelamente territorialidade e cultura; e mudando o homem. Quando essa síntese é percebida, o processo de alienação vai cedendo ao processo de integração e de entendimento, e o indivíduo recupera a parte do seu ser que parecia perdida.

Em que medida a "territorialidade longeva" seria mais importante que a "efemeridade"? A memória coletiva é apontada como um cimento indispensável à sobrevivência das sociedades, o elemento de coesão garantidor da permanência e da elaboração do futuro. Essa tese ganhou tal força que hoje, diante de uma sociedade e uma cultura em perpétua agitação, a cultura do movimento é apontada como o dado essencial da desagragação e da anomia.

Mas sabemos também que os eventos apagam o saber já constituído, exigindo novos saberes. (7) Quando, como nos dias atuais, os eventos são mais numerosos e inéditos em cada lugar, a reinserção ativa, isto é, consciente, no quadro de vida, local ou global, depende cada vez menos da experiência e cada vez mais da decoberta.

Não importa que, diante da aceleração contemporânea, e graças ao tropel de acontecimentos, o exercício de repensar tenha de ser heróico. Essa proibição do repouso, essa urgência, esse estado de alerta exigem da consciência um ânimo, uma disposição, uma força renovadora.

A força desse movimento vem do fato de que, enquanto a memória é coletiva, o esquecimento e a conseqüente (re)descoberta são individuais, diferenciados, enriquecido as relações interpessoais, a ação comunicativa. Assim, o que pareceria uma inferioridade, na realidade é uma vantagem. Ao contrário do que deseja acreditar a teoria atualmente hegemônica, quanto menos inserido o indivíduo (pobre, minoritário, migrante...), mais facilmente o choque da novidade o atinge e a descoberta de um novo saber lhe é mais fácil. O homem de fora é portador de uma memória, espécie de consciência congelada, provinda com ele de um outro lugar. O lugar novo o obriga a um novo aprendizado e a uma nova formulação. A memória olha para o passado. A nova consciência olha para o futuro. O espaço é um dado fundamental nessa descoberta. Ele é o teatro dessa novação por ser, ao mesmo tempo, futuro imediato e passado imediato, um presente ao mesmo tempo concluído e incluso, num processo sempre renovado.

Quanto mais instável e surpreendedor for o espaço, tanto mais surpreendido será o indivíduo, e tanto mais eficaz a operação da descoberta. A consciência pelo "lugar" se superpõe à consciência no "lugar". A noção de espaço desconhecido perde a conotação negativa e ganha um acento positivo, que vem do seu papel na produção da nova história.

O presente não é um resultado, uma decorrência do passado, do mesmo modo que o futuro não pode ser uma decorrência do presente, mesmo se este é uma "eterna novidade", no dizer de S. Borelli (1992, p.80).(8) O passado comparece como uma das condições para a realização do evento, mas o dado dinâmico na produção da nova história é o próprio presente, isto é, a conjunção seletiva de forças existentes em um dado momento. Na realidade, se o Homem é Projeto, como diz Sartre, é o futuro que comanda as ações do presente.

Notas:

(1) Citado em Jean-Claude Beaune, 1994, p.54.

(2) Michel Serres, entrevista a Bernado Carvalho, Folha de S. Paulo, 21/4/1990.

(3) É também nesse sentido que Muniz Sodré (1988, p.15) reconhecia uma "dimensão territorial" ou uma "lógica geográfica" da cultura.

(4) "[...] No mundo, atualmente, entram em ação massas humanas que até há pouco eram relativamente estacionárias. Trata-se de um fenômeno de importância considerável, pois o padre Teilhard tomou consciência dessa pressão humana que aumenta cada vez mais e mostrou, de forma muito convincente, que tal pressão, ao criar estruturas novas, força a criação de organizações que, segundo nossa habilidade ou generosidade, serão ou exclusivamente medidas coercitivas ou, ao contrário, pontos de apoio para um desenvolvimento mais amplo de nossas liberdades. Mas, como quer que seja, já não temos escolha. Podemos, sim, escolher entre escravidão e liberdade, mas não evitar a pressão: ela é um fato, ela existe, ela se dilata, ela crescesem parar. Queiramos ou não, estamos cada vez mais uns com os outros - e a pressão humana não pára de aumentar." G. Berger, 1964, pp.249-250.

(5) "Com a realização de um progresso de tipo dromocrático, a humanidade perderá a diversidade; para assumir um estado de fato, ela tenderá a cindir-se unicamente em "povos que esperam" (a quem é permitido esperar, em futuro, chegar à velocidade que capitalizam dando-lhes acesso ao possível, isto é, ao projeto, à decisão, ao infinito; "a velocidade é a esperança do Ocidente" ) e "povos que desesperam", bloqueados pela inferioridade de seus veículos técnicos, que moram e subsistem em um mundo finito." Paul Virilio, "Vitesse e politique", 1977, p.54.

(6) "Onde quer que o espírito europeu domine, vemos surgir o máximo de "necessidades", o máximo de "trabalho", o máximo de "capital", o máximo de "rendimento", o máximo de "ambição", o máximo de "poder", o máximo de "modificação da natureza exterior", o máximo de "relações" e "trocas"." Paul Valéry, 1922, in "Oeuvres", La Pléiade, vol. I, p. 1014 (grifo do autor). Citado por Michel Beaud (frontispício), Le Système national mondial hiérarchisé, 1987, p.4, que tirou a citação de Pierre Pascallon, Cahiers d'économie personaliste, nº4, 1986, p.23.

(7) "Hoje [...] é o presente que assume todo o espaço e se dá como representação global do tempo [...] que se substitui à profundidade da duração." Roger Sue, 1994.
(8) A esse respeito, e mais especificamente sobre as periodizações, ver Ernest Gellner, "El Arado, la Espada u el Libro", mencionado po José Luiz Rodrigues Garcia, "Nuestros magníficos pasados", in La Esfera, "El Mundo", Madri, 9 de abril de 1994, p.


Do livro: "A natureza do espaço" - Milton Santos, ed. Hucitec, São Paulo - 1996


Elogio da lentidão

11/03/2001

Autor: MILTON SANTOS
Editoria: MAIS! Página: 14-15
Edição: Nacional Mar 11, 2001
Seção: + BRASIL 501 D.C.
Legenda Foto: "Wall with a White Line" (Muro com uma Linha Branca), foto de 1957 de Will McBride
Crédito Foto: Will McBride
Assuntos Principais: TECNOLOGIA; GLOBALIZAÇÃO

Elogio da lentidão - Milton Santos

O mundo de hoje parece existir sob o signo da velocidade. O triunfo da técnica, a onipresença da competitividade, o deslumbramento da instantaneidade na transmissão e recepção de palavras, sons e imagens e a própria esperança de atingir outros mundos contribuem, juntos, para que a idéia de velocidade esteja presente em todos os espíritos e a sua utilização constitua uma espécie de tentação permanente. Ser atual ou eficaz, dentro dos parâmetros reinantes, conduz a considerar a velocidade como uma necessidade e a pressa como uma virtude. Quanto aos demais não incluídos, é como se apenas fossem arrastados a participar incompletamente da produção da história.

Sem dúvida, a maioria das pessoas, das empresas e das instituições não se utiliza das velocidades exponenciais tecnicamente possíveis e muitos continuam a sobreviver na lentidão, mas isso não impede que o ideário dominante, em todos os arcanos da vida social, sugira uma existência com ritmos cada vez mais acelerados. Paralelamente, aquela questão do "fixo tecnológico", fulcro de tantas discussões teóricas nos anos 60 e 70, retoma atualidade.

Dizia-se que a entrada de um país na linhagem das nações desenvolvidas dependia da aceitação de condições tecnológicas então consideradas modernas, sem as quais a presença atuante no plano internacional seria impossível. Mas havia, também, os que discutiam e recusavam essa premissa, afirmando que tecnologias intermediárias seriam capazes de dar conta, satisfatoriamente, do processo de crescimento de um determinado país. Era um tempo diferente do atual e no qual o debate civilizatório impedia o triunfo do pensamento único.

Fuga para a frente

Hoje, graças às novas realidades da presente globalização, aquela tese do "technological fix" se robusteceu e se impõe com muito mais força, já que a batalha encarniçada entre os agentes dominantes da economia os leva à busca desesperada de tecnologias "up-to-date", por sua vez necessitadas de adaptação urgente _técnica ou organizacional_ cada vez que uma nova conquista científica é obtida.

A necessidade, sempre presente, de competir por um mercado que é uma permanente fuga para a frente conduz a essa espécie de endeusamento da técnica, autorizando os agentes vitoriosos a manter sua posição de superioridade sobre os demais. Na medida em que as grandes empresas transnacionais ganharam dimensões planetárias, a tecnologia se tornou um credo generalizado, assim como a velocidade. Ambas passam a fazer parte do catecismo da nova fé.

Todos acabam aceitando como verdade essa premissa. Ser ultramoderno impõe-se como uma ilusão generalizada, e o tempo desejado é o tempo da nova técnica. Seu ideário se alimenta de uma construção ideologia elaborada de forma sistêmica, mas que é apenas diretamente funcional para um pequeno número de atores privilegiados. De fato, somente algumas pessoas, firmas e instituições são altamente velozes. O resto da humanidade, em todos os países, vive e produz de uma outra maneira.

Essa velocidade exacerbada, própria a uma minoria, não tem e nem busca sentido. Serve à competitividade desabrida, coisa que ninguém sabe para o que realmente serve, de um ponto de vista moral ou social. Fruto das necessidades empresariais de apenas um punhado de firmas, tal velocidade põe-se a serviço da política de tais empresas. E estas arrastam a política dos Estados e das instituições supranacionais. E aí se situa a matriz de um grave equívoco. Porque, vista historicamente, a técnica não é um absoluto.

Aliás, em seu estado absoluto, a técnica jamais foi realizada. Todas as vezes em que deixa de ser um capítulo da ciência para transformar-se em história, ela se relativiza. Por isso, a velocidade hegemônica atual, do mesmo modo que aquelas que a precederam _e tudo o que vem com ela e que dela decorre_ é apreciável, mas não imprescindível. Não é certo que haja um imperativo técnico, o imperativo é político. A velocidade utilizada é um dado da política, e não da técnica.

Daí a emergência possível de uma pergunta de ordem prática: será mesmo impossível limitar a velocidade dos mais velozes, isto é, dos mais fortes? Ou, em todo caso, poderíamos limitar essa força dos mais fortes?

No passado, a ordem mundial pôde, em diversos momentos da história, construir-se mediante a não-obediência aos ditames da técnica mais moderna.

Os cem anos que se confundem com o século do imperialismo abrigaram grandes conjuntos políticos territoriais vivendo e convivendo segundo "idades" técnicas diversas, ou melhor, segundo combinações desiguais dos avanços técnicos possíveis. O Império Britânico estava à frente quanto à posse e ao uso das tecnologias então mais modernas, e os outros impérios vinham na rabeira, depois e depois. Mas isso não os impedia de conviver. O exercício da política permitia enfrentar os conflitos internos e sugerir, cada vez, novas formas de equilíbrio.

Aliás, de um ponto de vista internacional, o que se passa dentro de cada império parece se espelhar em relação ao que se verificava externamente. A política comercial aplicada no interior desses grandes conjuntos territoriais, fragmentados e espalhados em diversos continentes, é que acabava permitindo a possibilidade de sua harmonização, malgrado suas diferenças de poder, dentro do conjunto do mundo ocidental (1). O notável é que o balanço desses cem anos que precedem a atual fase de globalização permite, apesar das guerras que os marcaram, reconhecer, junto aos inegáveis progressos técnicos e ganhos econômicos, a manifestação também de progressos políticos e éticos, com a ampliação da idéia de humanidade solidária e de sociedade nacional solidária, mediante a conquista e a busca de aperfeiçoamento de um estatuto político eficaz na construção de uma vida social civilizada, nos planos nacional e internacional.

Casa coletiva

O progresso técnico não constituía obstáculo ao progresso moral, quando havia, paralelamente, progressos políticos. Assim, o problema fundamental é o de retomar o curso dessa história, recolocando o homem em seu lugar central no planeta. Uma das condições para alcançá-lo parece ser o reconhecimento da realidade dos territórios tal como sempre foram utilizados pela população como um todo.

São usos múltiplos marcados por diferentes velocidades e pela utilização de técnicas as mais diversas, maneira de deixar que o território nacional constitua uma verdadeira casa coletiva, um abrigo para todos, empresas, instituições e homens. Somente dessa forma, soluções de convivência plenas ou sequiosas de humanidade são possíveis.

Não se trata de pregar o desconhecimento da modernidade _ou uma forma de regresso ao passado_, mas de encontrar as combinações que, segundo as circunstâncias próprias a cada povo, a cada região, a cada lugar, permitam a construção do bem-estar coletivo. É possível dispor da maior velocidade tecnicamente possível no momento e não utilizá-la. É possível fruir da modernidade nova, atual, sem ser obrigatoriamente o mais veloz.

Numa situação em que se combinam técnicas e tempos e velocidades diferentes, sem que um deles obrigatoriamente arraste os demais, se impõem forçosamente soluções políticas que não passem obrigatoriamente pela economia e suas conhecidas paixões inferiores.

A velocidade não apenas se define a partir do tempo utilizado para superar as distâncias. A questão é a de encontrar, para a palavra velocidade, equivalentes na prática social e política.

Acreditamos que a noção de cidadania se possa prestar à discussão aqui proposta, desde que a consideremos em sua tríplice significação: cidadania social, econômica e política. Quanto mais se afirmam essas diversas vertentes da cidadania, maior é a garantia de que a "velocidade" pode ser limitada, ao mesmo tempo em que os benefícios da modernidade encontram a possibilidade de uma difusão democrática. Será dessa forma que, num primeiro momento, serão reforçadas as individualidades fortes, provocando a necessidade de uma informação veraz, criando limites à propaganda invasora e enganosa, tudo isso se dando paralelamente a uma renovação do papel do Estado nacional.

Será, também, por meio desse processo que o mercado interno será revigorado e os mercados comuns entre países serão horizontalizados, abrindo caminho para que o dinheiro regresse à sua condição histórica de equivalente universal e abandone a sua função atual de regedor exclusivo e despótico das relações econômicas. Pelas mesmas razões, aquilo a que chamamos de "informalidade da economia" melhor cumprirá suas funções econômica, social e política sem a necessidade de formalizações alienantes e fortalecendo o papel da cultura localmente constituída como um cimento social indispensável a que cada comunidade imponha sua própria identidade e faça valer, a um ritmo próprio, o seu sentido mais profundo.

Será um mundo no qual os que desejarem ter pressa poderão fazê-lo livremente e no qual os que não são apressados serão fortalecidos, de modo a poder pensar na reconstrução da paz mundial e na luta por uma convivência social digna e humana dentro de cada país.

Nota

1. Milton Santos, "A Natureza do Espaço" (ed. Hucitec), págs. 36, 37 e 152, 153.

Milton Santos é geógrafo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, autor, entre outros livros, de "Por uma Outra Globalização" (Record).

http://br.geocities.com/madsonpardo/ms/folha/msf16.htm

O fim das descobertas imperiais


O professor doutor Boaventura de Souza Santos é Sociólogo e Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Portugal.


As Descobertas dos Lugares

Apesar de ser verdade que não há descoberta sem descobridores e descobertos, o que há de mais intrigante na descoberta é que em abstrato não é possível saber quem é quem. Ou seja, o ato da descoberta é necessariamente recíproco: quem descobre é também descoberto, e vice-versa[2]. Porque é então tão fácil, em concreto, saber quem é descobridor e quem é descoberto? Porque sendo a descoberta uma relação de poder e de saber, é descobridor quem tem mais poder e mais saber e, com isso, a capacidade para declarar o outro como descoberto. É a desigualdade de poder e de saber que transforma a reciprocidade da descoberta na apropriação do descoberto. Toda a descoberta tem, assim, algo de imperial, uma ação de controlo e de submissão. Este milênio, mais do que qualquer dos que o precedeu, foi o milênio das descobertas imperiais. Foram muitos os descobridores, mas o mais importante foi, sem dúvida, o Ocidente, nas suas múltiplas encarnações. O Outro do Ocidente, o descoberto, assumiu três formas principais: o Oriente, o selvagem e a natureza.

Antes de nos referirmos a cada uma das descobertas imperiais e às suas vicissitudes até ao presente, é importante ter em mente as características principais da descoberta imperial. A descoberta imperial é constituída por duas dimensões: uma, empírica, o ato de descobrir, e outra, conceptual, a idéia do que se descobre. Ao contrário do que pode parecer, a dimensão conceptual precede a empírica: a idéia que se tem do que se descobre comanda o ato da descoberta e o que se lhe segue. O que há de específico na dimensão conceptual da descoberta imperial é a idéia da inferioridade do outro. A descoberta não se limita a assentar nessa inferioridade, legitima-a e aprofunda-a. O que é descoberto está longe, abaixo e nas margens, e essa "localização" é a chave para justificar as relações entre o descobridor e o descoberto após a descoberta.

A produção da inferioridade é, assim, crucial para sustentar a descoberta imperial. Para isso, é necessário recorrer a múltiplas estratégias de inferiorização. Neste domínio pode dizer-se que não tem faltado imaginação ao Ocidente. Entre tais estratégias podemos mencionar a guerra, a escravatura, o genocídio, o racismo, a desqualificação, a transformação do outro em objeto ou recurso natural e uma vasta sucessão de mecanismos de imposição econômica (tributação, colonialismo, neocolonialismo, e, por último, globalização neoliberal), de imposição política (cruzadas, império, estado colonial, ditadura e, por último, democracia) e de imposição cultural (epistemicídio, missionação, assimilacionismo e, por último, indústrias culturais e cultura de massas).

O Oriente

Do ponto de vista do Ocidente, o Oriente é a descoberta primordial do segundo milênio. O Ocidente não existe fora do contraste com o não-Ocidente. O Oriente é o primeiro espelho da diferença neste milênio. É o lugar cuja descoberta descobre o lugar do Ocidente: o centro da história que começa a ser entendida como universal. É uma descoberta imperial que em tempos diferentes assume conteúdos diferentes. O Oriente é, antes de mais, a civilização alternativa ao Ocidente — tal como o sol nasce a Oriente, também aí nasceram as civilizações e os impérios. Esse mito das origens tem tantas leituras quantas as que o Ocidente tem de si próprio, ainda que estas, por seu lado, também não existam senão em termos da comparação com o que não é Ocidental. Um Ocidente decadente vê no Oriente a Idade do Ouro; um Ocidente exaltante vê no Oriente a infância do progresso civilizacional.

As duas leituras estão vigentes no milênio mas, à medida que este avança, a segunda leitura toma a primazia sobre a primeira e assume a sua formulação mais extrema em Hegel para quem "a história universal vai de Oriente para Ocidente". A Ásia é o princípio, enquanto a Europa é o fim absoluto da história universal, o lugar da consumação da trajetória civilizacional da humanidade. A idéia bíblica e medieval da sucessão dos impérios (translatio imperii) transforma-se em Hegel no caminho triunfante da idéia Universal dos povos asiáticos para a Grécia, desta para Roma e finalmente de Roma para a Alemanha. A América do Norte é o futuro equívoco que não colide com o culminar da história universal na Europa, na medida em que é feito com a população excedentária da Europa. Assim, este eixo Oriente-Ocidente contém, simultaneamente, uma sucessão e uma rivalidade civilizacional e, por isso, é muito mais conflitual do que o eixo Norte-Sul. Este último é constituído pela relação entre a civilização e o seu oposto, a natureza e o selvagem. Aqui não há verdadeiramente conflito porque a civilização tem uma primazia natural sobre tudo o que não é civilizado. Segundo Hegel, a África não faz parte sequer da história universal. Para o Ocidente, o Oriente é sempre uma ameaça, enquanto o Sul é apenas um recurso. A superioridade do Ocidente reside em ele ser simultaneamente o Ocidente e o Norte.

As mudanças, ao longo do milênio, na construção simbólica do Oriente têm alguma correspondência nas transformações da economia mundial. Até ao século XV, podemos dizer que a Europa e, portanto, o Ocidente, é a periferia de um sistema-mundo cujo centro está localizado na Ásia Central e na Índia. Só a partir de meados do milênio, com os descobrimentos, é que esse sistema-mundo é substituído por outro, capitalista e planetário, cujo centro é a Europa.

Logo no início do milênio as cruzadas são a primeira grande confirmação do Oriente como ameaça. A conquista de Jerusalém pelos Turcos e a crescente vulnerabilidade dos cristãos de Constantinopla ao avanço do Islã foram os motivos da guerra santa. Insuflada pelo Papa Urbano II, uma onda de zelo religioso avassalou a Europa reivindicando para os cristãos o direito inalienável à terra prometida. As peregrinações à terra santa e ao santo sepulcro. que nessa altura mobilizavam multidões — trinta anos antes da primeira cruzada, alguns bispos organizaram uma peregrinação de sete mil pessoas, uma jornada laboriosa do Reno ao Jordão[3] — foram o prelúdio da guerra contra o infiel. Uma guerra santa que recrutou os seus soldados com a concessão papal, a todos os que se alistassem sob a bandeira da cruz, de uma indulgência plena (absolvição de todos os pecados e quitação das penitências devidas) e também com a miragem dos paraísos orientais, os seus tesouros e minas de ouro e diamantes, palácios de mármore e quartzo e rios de leite e mel. Como qualquer outra guerra santa, também esta soube multiplicar os inimigos da fé para exercitar o seu vigor e, por isso, muito antes de Jerusalém, em plena Alemanha, a cruzada satisfez pela primeira vez a sua sede de sangue e de pilhagem contra os judeus.

As sucessivas cruzadas e as suas vicissitudes selaram a concepção do Oriente que dominou durante todo o milênio: o Oriente como civilização temível e temida e como recurso a ser explorado pela guerra e pelo comércio. Foi essa concepção que presidiu às descobertas planeadas na Escola de Sagres. Mas os portugueses não deixaram de retocar essa concepção. Talvez devido à sua posição periférica no Ocidente, viram o Oriente com menos rigidez: a civilização temida mas também a civilização admirada. O exercício da rejeição violenta foi de par com a admiração veneranda, e os interesses do comércio acabaram por ditar o predomínio de uma ou outra. Aliás, a descoberta do caminho marítimo para a Índia é a mais "ocidental" de todas as descobertas, uma vez que as costas da África Oriental e o Oceano Índico estavam há muito descobertas pelas frotas árabes e indianas.

A concepção do Oriente que predominou no milênio ocidental teve a sua consagração científica no século XIX com o chamado Orientalismo. Orientalismo é a concepção do Oriente que domina nas ciências e as humanidades européias a partir do final do século XVIII. Segundo Said[4], essa concepção assenta nos seguintes dogmas: uma distinção total entre "nós", os ocidentais, e "eles", os orientais; o Ocidente é racional, desenvolvido, humano, superior, enquanto o Oriente é aberrante, subdesenvolvido e inferior; o Ocidente é dinâmico, diverso, capaz de autotransformação e de autodefinição, enquanto o Oriente é estático, eterno, uniforme, incapaz de se auto-representar; o Oriente é temível (seja ele o perigo amarelo, as hordas mongóis ou os fundamentalistas islâmicos) e tem de ser controlado pelo Ocidente (por meio da guerra, ocupação, pacificação, investigação científica, ajuda ao desenvolvimento, etc.).

O outro lado do orientalismo foi a idéia da superioridade intrínseca do Ocidente, a conjunção nesta zona do mundo de uma série de características peculiares que tornaram possível, aqui e só aqui, um desenvolvimento científico, cultural, econômico e político sem precedentes. Max Weber foi um dos grandes teorizadores do predomínio inevitável do Ocidente[5]. O fato de Joseph Needham e outros terem demonstrado que, até ao século XV, a civilização chinesa não era em nada inferior à civilização ocidental[6], não abalou até hoje o senso comum ocidental sobre a superioridade, por assim dizer, genética do Ocidente.

Chegamos ao final do milênio prisioneiros da mesma concepção do Oriente. Aliás, deve salientar-se que as concepções que assentam em contrastes dicotômicos têm sempre uma forte componente especular: cada um dos termos da distinção vê-se ao espelho do outro. Se for verdade que as cruzadas selaram a concepção do Oriente que prevaleceu até hoje no Ocidente, não é menos verdade que, para o mundo muçulmano, as cruzadas — agora designadas como guerras e invasões francas — compuseram a imagem do Ocidente — um mundo bárbaro, arrogante, intolerante, pouco honrado nos compromissos — que igualmente até hoje dominou[7].

As referências empíricas da concepção do Oriente por parte do Ocidente mudaram ao longo do milênio, mas a estrutura que lhes dá sentido manteve-se intacta. Numa economia globalizada, o Oriente, enquanto recurso, foi profundamente reelaborado. É hoje, sobretudo, um imenso mercado a explorar, e a China é o corpo material e simbólico desse Oriente. Por mais algum tempo, o Oriente será ainda um recurso petrolífero, e a Guerra do Golfo é a expressão do valor que ele detém na estratégia do Ocidente hegemônico. Mas, acima de tudo, o Oriente continua a ser uma civilização temível e temida. Sob duas formas principais, uma, de matriz política — o chamado "despotismo oriental" — e outra, de matriz religiosa — o chamado "fundamentalismo islâmico" —, o Oriente continua a ser o Outro civilizacional do Ocidente, uma ameaça permanente contra a qual se exige uma vigilância incansável. O Oriente continua a ser um lugar perigoso cuja periculosidade cresce com a sua geometria.

A mão que traça as linhas do perigo é a mão do medo e, por isso, o tamanho da fortaleza que o exorciza varia com a percepção da vulnerabilidade. Quanto maior for a percepção da vulnerabilidade do Ocidente, maior é o tamanho do Oriente. Daí que os defensores da alta vulnerabilidade não se contentem com uma concepção restrita de Oriente, tipo "fundamentalismo islâmico", e apontem para uma concepção muito mais ampla, a "aliança confucionista-islâmica" de que fala Samuel Huntington[8]. Trata-se, afinal, da luta do Ocidente contra o Resto do Mundo. Ao contrário do que pode parecer, a percepção da alta vulnerabilidade, longe de ser uma manifestação de fraqueza, é uma manifestação de força e traduz-se na potenciação da agressividade. Só quem é forte pode justificar com a vulnerabilidade o exercício da força.

Um Ocidente sitiado, altamente vulnerável, não se limita a ampliar o tamanho do Oriente, restringe o seu próprio tamanho. Esta restrição tem um efeito perverso: a criação de Orientes dentro do Ocidente. É este o significado da Guerra do Kosovo: O Ocidente eslavo transformado numa forma de despotismo oriental. É por isso que os Kosovares, para estarem do lado "certo" da história, não podem ser islâmicos. Têm de ser apenas minorias étnicas.

O Selvagem

Se o Oriente é para o Ocidente o lugar da alteridade, o selvagem é o lugar da inferioridade. O selvagem é a diferença incapaz de se constituir em alteridade. Não é o outro porque não é sequer plenamente humano[9]. A sua diferença é a medida da sua inferioridade. Por isso, longe de constituir uma ameaça civilizacional, é tão só a ameaça do irracional. O seu valor é o valor da sua utilidade. Só merece a pena confrontá-lo na medida em que ele é um recurso ou a via de acesso a um recurso. A incondicionalidade dos fins — a acumulação dos metais preciosos, a expansão da fé — justificam o total pragmatismo dos meios: escravatura, genocídio, apropriação, conversão, assimilação.

Os jesuítas, despachados quase ao mesmo tempo, ao serviço de D. João III, para o Japão e para o Brasil, foram os primeiros a testemunhar a diferença entre o Oriente e o selvagem: "Entre o Brasil e esse vasto Oriente, a disparidade era imensa. Lá, povos de requintada civilização ... Aqui florestas virgens e selvagens nus. Para o aproveitamento da terra pouco se poderia contar com sua rarefeita população indígena cuja cultura não ultrapassava a idade da pedra. Era necessário povoá-la, estabelecer na terra inculta a verdadeira "colonização". Não assim no Oriente, superpovoado, onde a Índia, o Japão e, sobretudo, a China haviam deslumbrado, em plena idade média, os olhos e a imaginação de Marco Polo[10].

A idéia do selvagem passou por várias metamorfoses ao longo do milênio. O seu antecedente conceptual está na teoria da "escravatura natural" de Aristóteles. Segundo esta teoria, a natureza criou duas partes, uma superior, destinada a mandar, e outra, inferior, destinada a obedecer. Assim, é natural que o homem livre mande no escravo, o marido, na mulher, o pai, no filho. Em qualquer destes casos quem obedecer está total ou parcialmente privado da razão e da vontade e, por isso, é do seu interesse ser tutelado por quem tem uma e outra em pleno. No caso do selvagem, esta dualidade atinge uma expressão extrema na medida em que o selvagem não é sequer plenamente humano; meio animal, meio homem, monstro, demônio etc. Esta matriz conceptual variou ao longo do milênio e, tal como sucedeu com o Oriente, foi a economia política e simbólica da definição do "Nós" que determinou a definição do "Eles". Se é verdade que dominaram as visões negativas do selvagem, não é menos verdade que as concepções pessimistas do "Nós", de Montaigne a Rousseau, de Las Casas a Vieira estiveram na base das visões positivas do selvagem, o "bom selvagem".

Neste segundo milênio a América e a África, enquanto "descobertas" ocidentais, são o lugar por excelência do selvagem. E a América talvez mais que a África, dado o modelo de conquista e colonização que prevaleceu no "Novo Mundo", como significativamente foi designado por Américo Vespúcio o continente que rompia com a geografia do mundo antigo, confinado à Europa, à Ásia e à África. É a propósito da América e dos povos indígenas submetidos ao jugo europeu que se suscita o debate fundador sobre a concepção do selvagem no segundo milênio. Este debate que, contrariamente às aparências, está hoje tão em aberto como há quatrocentos anos, inicia-se com as descobertas de Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral e atinge o seu primeiro clímax na "Disputa de Valladolid", convocada em 1550 por Carlos V, em que se confrontaram dois discursos paradigmáticos sobre os povos indígenas e a sua dominação, protagonizados por Juan Ginés de Sepúlveda e Bartolomé de Las Casas. Para Sepúlveda, fundado em Aristóteles, é justa a guerra contra os índios porque estes são os "escravos naturais", seres inferiores, animalescos, homúnculos, pecadores graves e inveterados, que devem ser integrados na comunidade cristã, pela força, se for caso disso, a qual, se necessário, pode levar à sua eliminação. Ditado por uma moral superior, o amor do próximo pode, assim, sem qualquer contradição, justificar a destruição dos povos indígenas: na medida em que resistem à dominação "natural e justa" dos seres superiores, os índios tornam-se culpados da sua própria destruição. É para seu próprio benefício que são integrados ou destruídos[11].

A este paradigma da descoberta imperial, fundado na violência civilizadora do Ocidente, contrapôs Las Casas a sua luta pela libertação e emancipação dos povos indígenas, que considerava seres racionais e livres, dotados de cultura e instituições próprias, com os quais a única relação legítima era a do diálogo construtivo assente em razões persuasivas "suavemente atrativas e exortativas da vontade"[12]. Fustigando a hipocrisia dos conquistadores, como mais tarde fará o Padre Antônio Vieira, Las Casas denuncia a declaração da inferioridade dos índios como um artifício para compatibilizar a mais brutal exploração com o imaculado cumprimento dos ditames da fé e dos bons costumes.

Pese embora o brilho de Las Casas, foi o paradigma de Sepúlveda que prevaleceu, porque só esse era compatível com as necessidades do novo sistema mundial capitalista centrado na Europa.

No terreno concreto da missionação, dominaram quase sempre as ambigüidades e os compromissos entre os dois paradigmas. O Padre José Anchieta é talvez um dos primeiros exemplos. Tendo, embora, repugnância pela antropofagia e pela concupiscência dos brasis, "gente bestial e carniceira", o Padre Anchieta acha legítimo sujeitar os gentios ao jugo de Cristo que "assim [...] serão obrigados a fazer, por força, aquilo a que não é possível levá-los por amor"[13], ao mesmo tempo em que de Roma os seus superiores lhe recomendam que evite atritos com os portugueses, "pelo que importa mantê-los benévolos"[14]. Mas, por outro lado, tal como Las Casas, Anchieta embrenha-se no conhecimento dos costumes e das línguas indígenas e vê nos ataques dos índios aos portugueses o castigo divino "pelas muitas sem-razões que têm feito a esta nação, que dantes eram nossos amigos, salteando-os, cativando-os, e matando-os, muitas vezes com muitas mentiras e enganos"[15]. Quase vinte anos depois, haveria Anchieta de se lamentar que "a maior parte dos índios, naturais do Brasil, está consumida, e alguns poucos, que se hão conservado com a diligência e trabalhos da Companhia, são tão oprimidos que em pouco tempo se gastarão"[16].

Com matizes vários, é o paradigma de Sepúlveda que ainda hoje prevalece na posição ocidental sobre os povos ameríndios e os povos africanos. Expulsa das declarações universais e dos discursos oficiais é, contudo, a posição que domina as conversas privadas dos agentes do Ocidente no Terceiro Mundo, sejam eles embaixadores, funcionários da ONU, do Banco Mundial ou do Fundo Monetário Internacional, cooperantes, empresários, etc. É esse discurso privado sobre pretos e índios que mobiliza subterraneamente os projetos de desenvolvimento depois enfeitados publicamente com declarações de solidariedade e direitos humanos.

A Natureza

A natureza é a terceira grande descoberta do milênio, aliás, concomitante da descoberta do selvagem ameríndio. Se o selvagem é, por excelência, o lugar da inferioridade, a natureza é, por excelência, o lugar da exterioridade. Mas como o que é exterior não pertence e o que não pertence não é reconhecido como igual, o lugar de exterioridade é também um lugar de inferioridade. Tal como o selvagem, a natureza é simultaneamente uma ameaça e um recurso. É uma ameaça tão irracional quanto a do selvagem, mas a irracionalidade deriva, no caso da natureza, da falta de conhecimento sobre ela, um conhecimento que permita dominá-la e usá-la plenamente como recurso. A violência civilizatória que, no caso dos selvagens, se exerce por via da destruição dos conhecimentos nativos tradicionais e pela inculcação do conhecimento e fé "verdadeiros" exerce-se, no caso da natureza, pela produção de um conhecimento que permita transformá-la em recurso natural. Em ambos os casos, porém, as estratégias de conhecimento são basicamente estratégias de poder e dominação. O selvagem e natureza são, de fato, as duas faces do mesmo desígnio: domesticar a "natureza selvagem", convertendo-a num recurso natural. É essa vontade única de domesticar que torna a distinção entre recursos naturais e recursos humanos tão ambígua e frágil no século XVI como hoje.

Tal como a construção do selvagem, também a construção da natureza obedeceu às exigências da constituição do novo sistema econômico mundial centrado na Europa. No caso da natureza, essa construção foi sustentada por uma portentosa revolução científica que trouxe no seu bojo a ciência tal como hoje a conhecemos, a ciência moderna. De Galileu a Newton, de Descartes a Bacon, um novo paradigma científico emerge que separa a natureza da cultura e da sociedade e submete a primeira a um guião determinístico de leis de base matemática. O Deus que justifica a submissão dos índios tem, no caso da natureza, o seu equivalente funcional nas leis que fazem coincidir previsões com acontecimentos e transformam essa coincidência na prova da submissão da natureza. Tão estúpida e imprevisível enquanto interlocutor quanto o selvagem, a natureza não pode ser compreendida; pode apenas ser explicada, e explicá-la é a tarefa da ciência moderna. Para ser convincente e eficaz, esta descoberta da natureza não pode questionar a natureza da descoberta. Com o tempo, o que não pode ser questionado deixa de ser uma questão, isto é, torna-se evidente.

Este paradigma de construção da natureza, apesar de apresentar alguns sinais de crise, é ainda hoje o paradigma dominante. Duas das suas conseqüências assumem uma especial preeminência no final do milênio: a crise ecológica e a questão da biodiversidade. Transformada em recurso, a natureza não tem outra lógica senão a de ser explorada até à exaustão. Separada a natureza do homem e da sociedade, não é possível pensar retroações mútuas. Esta ocultação não permite formular equilíbrios nem limites, e é por isso que a ecologia não se afirma senão por via da crise ecológica.

Por outro lado, a questão da biodiversidade vem repor num novo plano a sobreposição matricial entre a descoberta do selvagem e a descoberta da natureza. Não é por acaso que no final do milênio boa parte da biodiversidade do planeta existe em territórios dos povos indígenas. Para eles, a natureza nunca foi um recurso natural, foi sempre parte da sua própria natureza enquanto povos indígenas e assim a preservaram preservando-se, sempre que conseguiram escapar à destruição ocidental. Hoje, à semelhança do que ocorreu nos alvores do sistema mundial capitalista, as empresas multinacionais da farmacêutica, da biotecnologia e da engenharia genética procuram transformar os indígenas em recursos, agora não em recursos de trabalho, mas antes em recursos genéticos, em instrumentos de acesso, não ao ouro e à prata, mas, por via do conhecimento tradicional, à flora e à fauna, sobre a forma de biodiversidade.

Os Lugares fora do Lugar

Identifiquei as três grandes descobertas matriciais do milênio: o Oriente enquanto lugar da alteridade; o selvagem, enquanto lugar da inferioridade; a natureza, enquanto lugar de exterioridade. São descobertas matriciais porque acompanharam todo o milênio, ou boa parte dele, e tanto que, no final do milênio, e apesar de alguns questionamentos, permanecem intactas na sua capacidade para alimentar o modo como o Ocidente se vê a si próprio e tudo o que não identifica consigo.

A descoberta imperial não reconhece igualdade, direitos ou dignidade ao que descobre. O Oriente é inimigo, o selvagem é inferior, a natureza é um recurso à mercê dos humanos. Como relação de poder, a descoberta imperial é uma relação desigual e conflitual. É também uma relação dinâmica. Por quanto tempo o lugar descoberto mantém o estatuto de descoberto? Por quanto tempo o lugar descoberto permanece no lugar da descoberta? Qual o impacto do descoberto no descobridor? Pode o descoberto descobrir o descobridor? Pode o descobridor descobrir-se? São possíveis redescobertas?

O final do milênio é um tempo propício às interrogações. Na orla do tempo, a perplexidade parece ser a forma menos insana de conviver com a dramatização das opções ou da falta delas. O sentimento de urgência é o resultado da acumulação de múltiplas questões na mesma hora ou lugar. Sob o peso da urgência, as horas perdem minutos e os lugares comprimem-se.

É sob o efeito desta urgência e da desordem que ela provoca que os lugares descobertos pelo milênio ocidental dão sinais de inconformismo. Na intimidade, esse inconformismo coincide em tudo com o autoquestionamento e a auto-reflexividade do Ocidente. É possível substituir o Oriente pela convivência multicultural? É possível substituir o selvagem pela igualdade na diferença e pela autodeterminação? É possível substituir a natureza por uma humanidade que a inclua? Estas são as perguntas a que o terceiro milênio tentará responder.

Leitura recomendada

Anchieta, José. Obras Completas. São Paulo: Edições Loyola.

Gibbon, Edward. 1928. The Decline and Fall of the Roman Empire. 6 Volumes. Londres: J.M. Dent.

Las Casas, Bartolomé. 1992. Obras Completas. Tomo X, Madrid: Alianza Editorial.

Montaigne, Michel de. 1998. Ensaios. Lisboa: Relógio D'Água.

Needham, Joseph. 1954. Science and Civilization in China. 6 Volumes. Cambridge: Cambridge University Press.

Said, Edward. 1979. Orientalism. Nova Iorque: Vintage Books.



[2] Vitorino Magalhães Godinho, apesar de criticar os que questionam o conceito de descobrimento no contexto da expansão européia, reconhece que descoberta em sentido pleno só existiu no caso da descoberta das ilhas desertas (Madeira, Açores, Ilhas de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Ascensão, Santa Helena, ilhas de Tristão da Cunha). Vitorino M. Godinho, "Que significa descobrir?" in Adauto Novaes (org.) A Descoberta do Homem e do Mundo, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 55-82.

[3] Cfr. Edward Gibbon, The Decline and Fall of the Roman Empire, Vol. 6. Londres: J.M. Dent and Sons, p. 31.

[4] Cfr. Edward Said, Orientalism. Nova Iorque: Vintage Books, 1979, p. 300.

[5] Cfr. Max Weber , A Ética Protestante e o espírito do Capitalismo. 3ª edição, Lisboa: Ed. Presença, 1990.

[6] Cfr. Joseph Needham, Science and Civilization in China, 6 Volumes. Cambridge: Cambridge University Press, 1954.

[7] Cfr. Amin Maalouf, As cruzadas vistas pelos Árabes. 7ª edição, Lisboa: Difel, 1983.

[8] Cfr. Samuel Huntington, "The Clash of Civilizations?", Foreign Affairs, 72(1993), 3.

[9] Num dos relatos recolhidos por Ana Barradas (1992), os índios são descritos como “(…) verdadeiros seres inumanos, bestas da floresta incapazes de compreender a fé católica (…), esquálidos selvagens, ferozes e vis, parecendo-se mais animais selvagens em tudo menos na forma humana (…).” Ana Barradas, Ministros da Noite – Livro Negro da Expansão Portuguesa. Lisboa: Antígona, 1992.

[10] Cfr. Hélio A. Viotti, S. J. Prefácio às Cartas do P. José de Anchieta, Obras Completas, Vol. 6. São Paulo: Edições Loyola, 2ª edição, 1984, p. 12.

[11] Cfr. Juan Ginés de Sepúlveda, Tratado sobre las Justas Causas de la Guerra contra los Índios. México: Fordo de Cultura Economica, 1979.

[12] Cfr. Bartolomé de Las Casas, Obras Completas, Tomo X. Madri: Alianza Editorial, 1992.

[13] Carta de 1.10.1554, Obras Completas, Vol. 6, p. 79.

[14] Carta do Geral Everardo para o P. José Anchieta de 19.8.1579, Obras Completas, Vol. 6, p. 299.

[15] Carta de 8.1.1565, Obras Completas, Vol. 6, p. 210.

[16] Carta de 7.8.1583, Obras Completas, Vol. 6, p. 338.


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