sexta-feira, dezembro 23, 2005

Romper com a ditadura da dívida pública e dos juros altos


Romper com a ditadura da dívida pública e dos juros altos


O professor Nilson Araújo demonstra a plena viabilidade das propostas apresentadas, em contraste com o caminho seguido pela atual equipe econômica de “superávites primários, juros escorchantes e enormes sacrifícios à população, impedindo a economia de crescer”

São esses os dois motivos alegados pela equipe do Banco Central para manter a política de juros altos e, por conseguinte, o jugo da “ditadura dos interesses financeiros”: diz que essa é a forma de garantir o refinanciamento da dívida pública e o combate à inflação. Nenhuma dessas alegações tem qualquer fundamento.

Vejamos primeiro o caso da inflação. Até os monetaristas mais dogmáticos sabem que aqueles que defendem combater inflação com juros altos consideram que essa “receita” só se aplica quando a inflação é provocada por excesso de demanda, por sua vez causado por excesso de dinheiro em circulação. Neste caso, a elevação dos juros teria a finalidade de cortar o crédito e assim enxugar a liquidez monetária e o suposto excesso de demanda.

Essa “teoria” não tem fundamento na realidade. Por cinco razões: 1) conforme já demonstrou Keynes, se a economia estiver operando com capacidade ociosa, o que é o corriqueiro nas economias capitalistas, o aumento do dinheiro em circulação poderá provocar o aumento da produção, e não dos preços; 2) a subida dos juros como forma de conter o aumento da demanda e assim a subida dos preços se depara com a existência de uma economia monopolizada: o cartel, diante da queda de demanda, tende a subir os preços como forma de manter sua rentabilidade; 3) a subida dos juros, ao elevar os encargos financeiros e, portanto, os custos das empresas endividadas, tensiona os preços para cima; 4) as empresas com elevado nível de liquidez, diante de uma elevação dos juros, tendem a aplicar seus recursos no mercado financeiro, em detrimento da produção e, portanto, da oferta; 5) o aumento dos juros pode provocar o estrangulamento financeiro do setor público, gerando expectativas negativas por parte dos cartéis, levando-os a antecipar a remarcação de preços.

CARTÉIS

A realidade brasileira, desde os planos adotados por Delfim Netto no começo dos anos 1980, vem demonstrando, para quem tem olhos para ver, que essa política de corte da demanda através dos juros altos não tem conseguido debelar a inflação; ao contrário, a tem pressionado para cima. Só quando os juros altos se fizeram acompanhar pelo importacionismo desvairado da era FH (resultado da combinação entre supervalorização do real e redução das tarifas de importação), ou seja, só quando os cartéis que produzem no País passaram a sofrer a concorrência dos cartéis que produzem no exterior, a inflação foi controlada. Mas o resultado foi o gigantesco endividamento externo e público, enormes déficits na conta corrente do Balanço de Pagamentos, substituição da produção interna por importação e, por decorrência, estagnação da economia, aumento violento do desemprego e, finalmente, colapso das contas externas e retorno da inflação (vide 2002). Portanto, esse não é o caminho para combater a inflação. Apesar disso, essa mistura explosiva entre juros altos e moeda supervalorizada voltou a ser praticada pela dupla Palocci-Meirelles. A inflação cedeu, mas o resultado foi matar no nascedouro a recuperação que, puxada pelas exportações, começou a ocorrer no primeiro trimestre de 2004.

No entanto, mesmo se a “teoria” do excesso de demanda fosse correta, não se aplicaria ao atual caso brasileiro. Alguém teria que ser um verdadeiro autista para defender a posição de que ultimamente vem ocorrendo excesso de demanda no Brasil. Só para considerar o período mais recente: entre 2001 e 2003, a economia esteve estagnada, sendo que, a cada ano, ocorria queda nas vendas internas; em 2004, o PIB conseguiu crescer 4,9%, mas alavancado, não pelo mercado interno, mas pelo crescimento das exportações, que foi de 32%; e, neste ano de 2005, a economia voltou a desacelerar, e só não declinou de vez graças ao aumento das exportações, apesar de em ritmo menor. Não bastasse isso, a capacidade produtiva da economia vem operando com um elevado nível de capacidade ociosa, em torno de 20%, durante esse período; portanto, com possibilidade de aumentar a produção diante de um eventual aumento da demanda.

ESPECULAÇÃO

A outra alegação diz respeito à capacidade de refinanciamento da dívida pública. Dizem os tecnocratas do BC que, caso os juros baixem muito, os capitais fugirão para o exterior, dificultando o refinanciamento da dívida pública, o que poderia provocar uma crise de falta de pagamento. Outra falácia. A taxa real anual básica de juros no Brasil no último mês de outubro estava, pelos cálculos da GRC Visão, em 13,6.%; a segunda maior (que se praticava na Turquia, México e China) estava em torno de 6%; e a média dos 40 países estudados pela GRC era de 1,2%, isto é, 13 vezes menor do que a nossa. Ou seja, existe um espaço muito grande para baixar nossa taxa de juros sem que os capitais debandem para outros países. A não ser que os especuladores tenham se transformado em Madre Tereza de Calcutá. É certo que eles, dada a subserviência das autoridades monetárias brasileiras, acostumaram-se a ganhar muito em nosso País, e por isso podem ser tentados a retirar seu dinheiro daqui diante de uma queda da taxa de juros, como forma de chantagear e assim forçar o BC a voltar a elevar os juros. Mas temos um instrumento poderoso para evitar isso: colocar à frente do BC dirigentes que não se deixem chantagear e, se necessário, centralizar o câmbio como forma de impedir a debandada de capitais.

Assim, se considerarmos o ângulo da política de refinanciamento da dívida pública, não há nada que impeça derrubar rapidamente as taxas de juros. No caso da inflação, mesmo se a “tese” de combater inflação com juros altos fosse verdadeira, não há momento mais propício para derrubar os juros. A taxa de inflação, que, pelo IPCA, era de 12,58% em 2002, baixou para 9,33% em 2003, para 7,57% em 2004 e deve chegar a 5,7% neste ano (acumulou 5,31% até novembro). A queda só não foi mais rápida porque, em face dos contratos de “privatização” firmados na época de Fernando Henrique, as concessionários de serviços públicos passaram a ter suas tarifas reajustadas pelo IGP, que vinha sendo mais elevado graças à sua maior capacidade de absorção do comportamento da taxa de câmbio. Ou seja, a memória inflacionária era transferida para o futuro via reajuste contratual das tarifas públicas. No entanto, dada a forte valorização do real do ano passado para cá, o IGP chegou a ser negativo de maio a setembro deste ano, e deve chegar a pouco mais de 1% no acumulado deste ano. A manter-se esse critério de reajuste, a inércia inflacionária das tarifas públicas (que representam um terço do conjunto dos preços) deve tender a zero no ano que vem.

INVESTIMENTOS PÚBLICOS

Considero fundamental reduzir de forma significativa e sustentada as taxas de juros, algo totalmente compatível com o cenário internacional, com a situação das contas do governo e com a estabilidade de preços. Estimamos imprescindível acelerar a execução orçamentária, ampliar os investimentos em infra-estrutura e nas políticas sociais e melhorar o funcionamento do conjunto do governo. O caminho do crescimento permite reduzir a relação dívida/PIB, sem os sacrifícios resultantes das metas de superávit primário, que devem ser reduzidas. O que necessitamos é aprimorar a gestão do Estado para ampliar os investimentos públicos e os gastos sociais.

REDUZIR OS JUROS

Ora, essas propostas são perfeitamente compatíveis. Em primeiro lugar, pelas razões que já demonstramos antes, este é o momento mais propício para baixar de maneira significativa e sustentada a taxa de juros. Dadas as taxas de juros internacionais, existe um espaço muito grande para baixarmos as nossas. Por outro lado, dada a sistemática queda da taxa de inflação (com o IGP tendendo para zero), ainda os que defendem a posição de que juros combatem inflação hão de convir que este é o momento mais propício para baixá-los. Em segundo lugar, com juros mais baixos, podem ser ampliados os investimentos em infra-estrutura e nas políticas sociais. Terceiro, com juros baixos, aumentam não apenas os investimentos públicos, mas também os privados. As empresas sem muita liquidez para investir se sentirão estimuladas a tomar dinheiro emprestado; e as com grande liquidez poderão voltar a aplicar na produção, em lugar de fazê-lo na especulação financeira. Quarto, com o crescimento do investimento, o PIB volta a crescer de maneira sustentada e assim se passará a combater inflação com o aumento da oferta, e não com o corte da demanda. Quinto, com os juros baixos, diminui a pressão pelo crescimento da dívida pública, fazendo-a crescer a um ritmo menor do que atualmente. Sexto, com o PIB crescendo mais rápido e a dívida de forma mais lenta, diminui a tão decantada relação dívida/PIB.

Fica claro que há dois caminhos para diminuir a relação dívida/PIB. Um, o que vem sendo praticado, significa, através dos superávites primários escorchantes, impor um enorme sacrifício à economia e à população, impedindo a economia de crescer e dificultando o acesso da população aos frutos da economia. Esse caminho, ademais, não garante a queda da relação dívida PIB: depois de sete anos sendo implementado, essa relação subiu de 50,49% em janeiro de 1999 (quando explodiu o Plano Real, e a política de superávit primário começou a ser praticada) para 51,4% em setembro deste ano; em termos absolutos, a dívida líquida do setor público subiu de R$ 479 bilhões para R$ 973,4 bilhões (último Boletim do BC), ou seja, mais que dobrou. O outro caminho, ancorado na queda dos juros, do superávit primário e da moeda, é o que garante o crescimento e a incorporação da população. Além disso, permite de maneira sustentada a redução da relação dívida/PIB.

(*) Economista

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