sexta-feira, fevereiro 10, 2006

"Nova Ordem" de Bush Provoca Cisma no Ocidente

“Que tipo de ordem mundial nós queremos?”, indagou Joschka Fischer, ministro do Exterior da Alemanha, na iminência da invasão americana do Iraque, em março de 2003. (...) Como interpretou Dominique de Villepin, ministro do Exterior da França, o conflito foi menos sobre o Iraque que sobre “duas visões de mundo”. (...) Um grande cisma filosófico abriu-se no interior do Ocidente e o antagonismo mútuo ameaça debilitar os dois lados da comunidade transatlântica. Para a Europa e os Estados Unidos, a divisão estratégica é suficientemente ruim. Mas, e se as suas divergências sobre a ordem mundial infectarem o restante do que conhecemos como o Ocidente liberal? Continuaria o Ocidente a ser ainda o Ocidente? (Robert Kagan, “America’s crisis of legitimacy”, Foreign Affairs, march/april 2004, p. 65-66)

"Nossos exércitos não chegaram a suas cidades e terras como conquistadores ou inimigos, mas como libertadores (...). Não é a vontade de nosso governo impor-lhes instituições estrangeiras (...). Nossa vontade é que vocês possam prosperar tanto quanto no passado, quando suas terras eram férteis e seus ancestrais ofereceram ao mundo a literatura, a ciência e a arte, e quando Bagdá foi uma das maravilhas do mundo. (...) É nossa esperança que se realizem as aspirações dos seus filósofos e escritores e que uma vez mais o povo de Bagdá floreça, experimentando a riqueza e desenvolvendo o espírito sob instituições compatíveis com suas leis sagradas e os ideais de sua raça.”
George Bush, dirigindo-se aos iraquianos após a ocupação americana de 2003, certo? Errado: o discurso, proferido em 19 de março de 1917, é do general F. S. Maude, comandante das forças britânicas que conquistaram a Mesopotâmia.
O paralelo entre a Grã-Bretanha imperial – que emergiu vitoriosa das Guerras Napoleônicas, em 1815, e, por mais de um século, expandiu a sua influência mundial – e os Estados Unidos do pós-guerra não é novo, mas tornou-se cada vez mais discutido após o 11 de setembro de 2001. A Doutrina Bush deflagrou uma estratégia unilateralista, sustenta o direito à guerra preventiva e prega a mudança de regimes nos países que desafiam a hiperpotência. Ela aparece como a visão de mundo de um poder imperial capaz de impor uma “nova ordem” no sistema internacional.
A “ordem britânica” do passado estabeleceu, por meio do padrão ouro, uma moldura para a expansão do comércio e dos investimentos internacionais. A “ordem americana” do presente sustenta, por meio do dólar e das instituições econômicas multilaterais, um ambiente propício aos negócios das corporações transnacionais. A “Pax Britânica” garantiu um século inteiro sem conflagrações gerais entre as potências, até a Primeira Guerra Mundial. A “Pax Americana”soldou a unidade estratégica do Ocidente, derrotou sem guerra o desafio soviético e elegeu o terrorismo internacional como nova ameaça a ser combatida. Os neoconservadores republicanos, que dão as cartas da política externa americana, interpretam a Doutrina Bush como um desenvolvimento da Doutrina Truman de 1947 e enxergam o Império Americano como sucessor do Império Britânico.
A república americana nasceu rejeitando as monarquias européias e desprezando a complexa e cínica “política de poder” do Velho Mundo. Por um lado, a relativa segurança proporcionada pelo oceano manifestou-se sob a forma de uma forte tendência ao isolacionismo, que era uma das expressões dessa rejeição da Europa. Por outro, os valores republicanos da Revolução Americana traduziram-se, de tempos em tempos, como um projeto de “reforma do mundo” destinado a difundir as idéias da liberdade e da igualdade. Sob o influxo dessas tendências contraditórias, a política externa dos Estados Unidos oscilou entre os extremos do isolacionismo e do cruzadismo (veja o texto A política externa como cruzada).
O presidente Woodrow Wilson (1913-21) combateu o isolacionismo até conseguir engajar os Estados Unidos ao lado da Grã-Bretanha e da França na Primeira Guerra Mundial (1914-18). No fim do conflito, seu célebre discurso dos Quatorze Pontos traçou o caminho de uma “paz sem vencedores ou vencidos”, sem anexações territoriais ou reparações, coroada por uma organização mundial que impedisse a eclosão de novas guerras. A onferência de Paz de Paris e o Tratado de Versalhes frustraram esses ideais. O Senado americano, sob uma maioria isolacionista, vetou a participação dos Estados Unidos na Liga das Nações, esvaziando-a de sentido. Mas Wilson deixou um legado internacionalista que seria retomado por Franklin Roosevelt e resultaria, após a Segunda Guerra Mundial (1939-45), na criação da ONU.
O internacionalismo wilsoniano bebe na fonte do projeto cruzadista de “reforma do mundo” e proclama o princípio da difusão da liberdade mas, no fim das contas, move-se no campo do realismo. A Liga das Nações imaginada por Wilson era um diretório de potências investido da missão de zelar pela paz mundial. A ONU de Roosevelt foi moldada com a mesma argamassa, tanto que seu Conselho de Segurança refletia as realidades geopolíticas do pósguerra. Essa versão do internacionalismo americano baseava-se no multilateralismo, isto é, na noção de que o sistema de Estados funcionaria a partir de princípios comuns e decisões coletivas.
A Guerra Fria removeu o terreno para o funcionamento da visão de Roosevelt, de um “diretório de potências” – o Conselho de Segurança – que asseguraria a paz e a estabilidade internacionais. Mas o multilateralismo expressou-se, sob forma diferente, no bloco geopolítico liderado por Washington. A OTAN soldou a unidade estratégica entre os Estados Unidos e a Europa Ocidental. O Plano Marshall deflagrou a reconstrução européia.
A Comunidade Européia (atual União Européia) substituiu as rivalidades nacionais pela fusão de soberanias entre os aliados ocidentais dos Estados Unidos. As instituições de Bretton Woods – o FMI, o Banco Mundial e o GATT (atual OMC) – conferiram ordem ao sistema econômico do Ocidente.
Os neoconservadores republicanos são herdeiros devassos da tradição de Wilson. Eles adotam o internacionalismo mas rejeitam o multilateralismo. Desde que o 11 de setembro de 2001 proporcionou-lhes a oportunidade de conduzir a política externa da hiperpotência, os Estados Unidos engajaram-se numa cruzada de “reforma do mundo” que se traduz nos termos da expansão imperial e militar (veja a matéria Hiperpotência promove uma revolução no seu dispositivo militar global).
Os três anos de Doutrina Bush afetaram profundamente as relações internacionais. O cisma entre Estados Unidos e Europa, apenas disfarçado pelas “relações carnais” de Londres com Washington, ameaça deteriorar de vez a OTAN e coloca em risco o próprio futuro da ONU. A “guerra ao terror” proclamada por Bush estimula Israel a sabotar qualquer processo de paz no Oriente Médio e fornece o pretexto para a Rússia identificar falsamente o separatismo na Chechênia ao terrorismo global de Osama Bin Laden. A presença de tropas americanas no Afeganistão e a prolongada ocupação do Iraque desestabilizam o mundo muçulmano, alimentando o fundamentalismo islâmico.
A “nova ordem” de Bush é rejeitada praticamente no mundo inteiro. Carente de legitimidade, ela se baseia apenas no poder militar global da hiperpotência. Mas um edifício não pode se equilibrar sobre um único pilar.


HIPERPOTÊNCIA PROMOVE UMA REVOLUÇÃO
NO SEU DISPOSITIVO MILITAR GLOBAL


Discursando em Cincinnati perante uma platéia de veteranos das forças armadas, George Bush revelou o projeto de transferir de volta para os Estados Unidos até 70 mil militares, dos mais de 200 mil que servem no exterior. É verdade que o anúncio tinha nítida finalidade eleitoral e que o processo deve ocorrer gradualmente, ao longo da próxima década, mas ele não é mera promessa de campanha.
Desde que a administração Bush se instalou, o Pentágono dedica-se ativamente ao que Donald Rumsfeld, o secretário da Defesa, denomina “transformação militar”. Os atentados de 11 de setembro de 2001 e a “guerra ao terror” conferiram um novo sentido de urgência à “transformação”, que se destina a adaptar a máquina de guerra da hiperpotência aos desafios do pós-Guerra Fria. A drástica redução quantitativa das tropas no exterior é uma das conseqüências da “transformação”. Mas, ao contrário do que parece, a finalidade do empreendimento não é diminuir a presença militar global dos Estados Unidos.
O atual dispositivo militar americano é, essencialmente, uma herança da geopolítica da Guerra Fria. A doutrina da contenção da União Soviética, elaborada a partir de 1947, orientou a implantação das bases militares no exterior e explica a concentração de tropas e meios de combate em dois grandes teatros: a Europa Ocidental e a Ásia/Pacífico (veja o Mapa Grandes Bases Militares nos Estados Unidos).
Na Europa Ocidental ainda se encontram 114 mil militares americanos, de um efetivo que atingia mais de 300 mil no fim da Guerra Fria. A Alemanha, que era atravessada pela Cortina de Ferro e seria o primeiro alvo de uma hipotética ofensiva convencional soviética, hospeda quase dois terços das tropas baseadas na Europa. O restante distribui-se na Grã-Bretanha, Bélgica, Islândia e nas bases navais e aéreas da Europa meridional.
A implantação militar na Ásia/Pacífico repousa sobre a rede de bases no Alasca e nos arquipélagos americanos do Havaí e Guam, que configuram o suporte estratégico para os meios de combate concentrados no Japão e na Coréia do Sul. O Japão, o principal aliado dos Estados Unidos na Ásia, que devia ser protegido da dupla ameaça de soviéticos e chineses, ainda hospeda 45 mil militares americanos. Na Coréia do Sul, que permanece tecnicamente em estado de guerra com a Coréia do Norte desde o armistício de 1954, estão baseados 37 mil soldados, marinheiros e pilotos americanos.
O Golfo Pérsico, com suas imensas reservas de petróleo, e o Caribe, uma esfera de influência imediata, eram teatros importantes mas não centrais na geopolítica da Guerra Fria. Atualmente, o dispositivo do Golfo Pérsico estrutura-se sobre as bases navais do emirado do Bahrein e da ilha de Diego Garcia e a grande base aérea de Incirlik, na Turquia. No Caribe, a implantação militar americana assenta-se em Porto Rico e na célebre base naval de Guantánamo, cedida indefinidamente por Cuba muitas décadas antes da revolução de Fidel Castro. A ausência de qualquer grande base americana no hemisfério sul reflete a situação periférica da África Subsaariana e da América do Sul na rivalidade estratégica da Guerra Fria.
Sob Rumsfeld, o Pentágono elabora uma nova visão dos desafios à hegemonia dos Estados Unidos e desenha um dispositivo militar global adaptado às “guerras do futuro”. O núcleo estratégico das mudanças consiste em integrar mais estreitamente o dispositivo global e proporcionar condições para a concentração rápida de meios de combate nos focos de novas ameaças.
Na Europa, isso significa um firme movimento rumo ao leste. De um lado, trata-se de reduzir as tropas e equipamentos blindados estacionados na Alemanha: em dez anos, os militares americanos no país devem cair dos atuais 70 mil para cerca de 40 mil, um número ainda excepcional. A mudança não afetará as bases navais na Islândia e Grã-Bretanha e na Itália e Grécia, que são indispensáveis para as redes logísticas do
Atlântico Norte/Mar do Norte e do Mediterrâneo. As bases aéreas na Grã-Bretanha, Alemanha, Portugal e Itália também devem ser conservadas ou até ampliadas.
De outro lado, trata-se de implantar uma rede de bases na Europa centrooriental, a fim de soldar os laços entre os Estados Unidos e os novos integrantes da OTAN. A Polônia, situada estrategicamente no centro do corredor de planícies que conecta a Rússia à Alemanha, é óbvia candidata a receber uma grande base. A Bulgária e a Romênia podem ser escolhidas como sedes de bases destinadas a projetar o poder militar americano no Mar Negro.
Na Ásia, a idéia é reduzir as vastas concentrações de tropas no Japão e na Coréia do Sul e desenhar uma implantação militar de tipo radicalmente diferente. O Japão, hoje, não enfrenta ameaças convencionais e possui amplos recursos bélicos próprios. O Pentágono trabalha com o cenário de forte redução das forças de marines estacionados em Okinawa, que são fonte de ressentimentos nacionalistas no país, mas pretende conservar as bases da Marinha e da Força Aérea. Já as tropas na Coréia do Sul serão reduzidas em um terço no horizonte de um ou dois anos, com a completa retirada das forças americanas estacionadas na Zona Desmilitarizada junto à fronteira. Os planejadores americanos sustentam que o país dispõe de 690 mil soldados bem treinados para enfrentar a ameaça norte-coreana e que a guerra moderna não depende da presença permanente de forças blindadas mas do predomínio aéreo e da capacidade de mover tropas rapidamente até o campo de batalha.
A nova implantação militar asiática estará estruturada em torno de uma rede de bases flexíveis, servidas por contingentes mínimos mas adaptadas para ampliação rápida em caso de necessidade. Essas “plataformas quentes” seriam instaladas na orla da Ásia meridional, em países como as Filipinas, a Tailândia, a Malásia e Cingapura, funcionando como postos avançados de grandes bases de infra-estrutura como as do
Havaí, Guam e Diego Garcia, além da base naval de Yokosuka e da base aérea de Mizawa, no Japão. Um esquema semelhante de “plataformas quentes” poderia ser instalado na Europa centro-oriental, tendo por retaguarda a grande base aérea de Ramstein, na Alemanha.
O teatro do “Grande Oriente Médio” tornou-se prioridade estratégica máxima de Washington desde o 11 de setembro de 2001. Na região do Golfo
Pérsico está em curso uma reorganização geral das forças americanas. O Pentágono prepara-se para retirar todos os seus militares da Arábia Saudita, pois a presença americana no país que guarda os lugares mais sagrados do Islã serve de bandeira para os fundamentalistas. Uma nova base aérea, no Catar, já começa a substituir a base saudita de Príncipe Sultan. No Iraque, tudo é incerto, mas os planejadores americanos alimentam a esperança de instalar uma grande base do Exército ou dos marines.
A principal novidade, contudo, está reservada para a região da Ásia Central. O Pentágono já dispõe de pequenas bases instaladas para sustentar as operações no Afeganistão. A idéia é implantar um grande centro militar regional, possivelmente no Quirguistão ou Tajiquistão, que serviria de retaguarda para a perseguição a terroristas no Afeganistão e ainda para manter vigilância direta sobre as rotas que conectam a Ásia Central à China.
O hemisfério sul permanece periférico, na época da “guerra ao terror”. A exceção notável é a região caribenho-amazônica da América do Sul, onde se desenvolve o conflito militar na Colômbia e se consolida o regime nacionalista de Hugo Chávez na Venezuela. Nesse teatro, o planejamento militar americano considera a hipótese de ampliação da pequena base colombiana, implantando um centro de operações capaz de aprofundar a “guerra ao narcotráfico” e, eventualmente, assegurar o acesso dos Estados Unidos ao petróleo venezuelano.

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