domingo, julho 16, 2006

Thuram, Le Pen e nós


Demétrio Magnoli
http://www.clubemundo.com.br/revistapangea/

Zidane ofereceu uma aula de futebol ao arrogante escrete brasileiro. Dias antes do jogo, o zagueiro Thuram, seu companheiro de equipe, deu uma lição de política a Jean-Marie Le Pen, o líder da Frente Nacional francesa, que reclamara do “excesso de negros” na seleção de seu país. “Não sou negro, sou francês. Le Pen deveria saber que assim como existem negros franceses, existem loiros e morenos, e não são convocados para a seleção por sua cor, mas por serem franceses.”
Thuram foi adiante: “Ele quer ser presidente e não conhece a história do país, isso é grave e surpreendente”. O chefe político dos racistas provavelmente exasperou-se com essa resposta. As marchas do seu partido portam o estandarte de Joana D’Arc e cantam a glória da “França eterna”, fundada pela conversão de Clóvis I ao catolicismo, em 496. A história da França, na visão de Le Pen, é a narrativa romântica do encontro de uma “raça”, os francos, com uma religião.
A França de Thuram é fruto de outra história, que cultiva como seu monumento da memória a revolução de 1789. “Se alguém vir o Le Pen por aí, diga que se ele tem algum problema em ser francês, nós não temos. Viva a França! Mas não a França que Le Pen quer, e sim a França verdadeira.” Essa “nação verdadeira” é a que inscreveu na Constituição de 1795 o princípio do “direito da terra”: são franceses todos os que residem e pagam impostos na França.
Le Pen “tem algum problema em ser francês” pois é um apóstolo do “direito do sangue”. Ele identifica os “estrangeiros” pela cor da pele e, nesse sentido, aproxima-se do multiculturalismo americano. Nos EUA, a “gota de sangue” separa as pessoas em categorias imiscíveis, que funcionam como nações dentro da nação: “brancos”, “afro-americanos”, “nativos”, “hispânicos” e “asiáticos”. O princípio jurídico do “iguais, mas separados”, base da discriminação legal no passado, revelou a sua persistência nas “políticas de reparação” que varreram o país nas décadas de 70 e 80.
Ser francês, para Thuram, é ter direitos iguais aos de todos, o que se expressa pelo acesso universal aos serviços públicos. A percepção de ruptura desse contrato nacional provoca protestos, às vezes distúrbios. Nos EUA, as imagens dos pobres de Nova Orleans, deixados para trás durante a inundação, provocaram recriminações, não escândalo ou revolta. No país das cotas, desamparo e privilégios “raciais” seletivos andam juntos.
“Sou afro-americano”, talvez respondesse um Thuram dos EUA, referendando parcialmente o rótulo de “estrangeiro” que Le Pen lhe pregava. Mas não foi o que ele disse. O Brasil deve prestar atenção à aula de Thuram, mais que ao futebol de Zidane.

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