A FOME INFAME
A fome no mundo é a nova grande fonte de lucros do grande capital financeiro e os lucros aumentam na mesma proporção que a fome. Nos últimos meses, os meses do aumento da fome, os lucros da maior empresa de sementes e de cereais aumentaram 83%. Ou seja, a fome de lucros da Cargill alimenta-se da fome de milhões de seres humanos. A análise é de Boaventura de Sousa Santos.
Boaventura de Sousa Santos
Data: 07/05/2008
Há muito conhecido dos que estudam a questão alimentar, o escândalo finalmente estalou na
opinião pública: a substituição da agricultura familiar, camponesa, orientada para a autosuficiência alimentar e os mercados locais, pela grande agro-indústria, orientada para a
monocultura de produtos de exportação (flores ou tomates), longe de resolver o problema
alimentar do mundo, agravou-o.
Tendo prometido erradicar a fome do mundo no espaço de vinte anos, confrontamo-nos hoje com
uma situação pior do que a que existia há quarenta anos. Cerca de um sexto da humanidade
passa fome; segundo o Banco Mundial, 33 países estão à beira de uma crise alimentar grave;
mesmo nos países mais desenvolvidos os bancos alimentares estão a perder as suas reservas; e
voltaram as revoltas da fome que em alguns países já causaram mortes. Entretanto, a ajuda
alimentar da ONU está hoje a comprar a 780 dólares a tonelada de alimentos que no passado mês de março comprava a 460 dólares.
A opinião pública está a ser sistematicamente desinformada sobre esta matéria para que se não
dê conta do que se está a passar. É que o que se está a passar é explosivo e pode ser resumido
do seguinte modo: a fome do mundo é a nova grande fonte de lucros do grande capital financeiro
e os lucros aumentam na mesma proporção que a fome.
A fome no mundo não é um fenômeno novo. Ficaram famosas na Europa as revoltas da fome
(com o saque dos comerciantes e a imposição da distribuição gratuita do pão) desde a Idade
Média até ao século XIX. O que é novo na fome do século XXI diz respeito às suas causas e ao
modo como as principais são ocultadas. A opinião pública tem sido informada que o surto da fome
está ligado à escassez de produtos agrícolas, e que esta se deve às más colheitas provocadas pelo
aquecimento global e às alterações climáticas; ao aumento de consumo de cereais na Índia e na
China; ao aumento dos custos dos transportes devido à subida do petróleo; à crescente reserva
de terra agrícola para produção dos agro-combustíveis.
Todas estas causas têm contribuído para o problema, mas não são suficientes para explicar que o
preço da tonelada do arroz tenha triplicado desde o início de 2007. Estes aumentos especulativos, tal como os do preço do petróleo, resultam de o capital financeiro (bancos, fundos de pensões, fundos hedge [de alto risco e rendimento]) ter começado a investir fortemente nos mercados internacionais de produtos agrícolas depois da crise do investimento no sector imobiliário.
Em articulação com as grandes empresas que controlam o mercado de sementes e a distribuição
mundial de cereais, o capital financeiro investe no mercado de futuros na expectativa de que os
preços continuarão a subir, e, ao fazê-lo, reforça essa expectativa. Quanto mais altos forem os
preços, mais fome haverá no mundo, maiores serão os lucros das empresas e os retornos dos
investimentos financeiros.
Nos últimos meses, os meses do aumento da fome, os lucros da maior empresa de sementes e de
cereais aumentaram 83%. Ou seja, a fome de lucros da Cargill alimenta-se da fome de milhões de
seres humanos.
O escândalo do enriquecimento de alguns à custa da fome e subnutrição de milhões já não pode
ser disfarçado com as “generosas” ajudas alimentares. Tais ajudas são uma fraude que encobre
outra maior: as políticas econômicas neoliberais que há trinta anos têm vindo a forçar os países
do terceiro mundo a deixar de produzir os produtos agrícolas necessários para alimentar as suas
próprias populações e a concentrar-se em produtos de exportação, com os quais ganharão divisas que lhes permitirão importar produtos agrícolas... dos países mais desenvolvidos.
Quem tenha dúvidas sobre esta fraude que compare a recente “generosidade” dos EUA na ajuda
alimentar com o seu consistente voto na ONU contra o direito à alimentação reconhecido por
todos os outros países.
O terrorismo foi o primeiro grande aviso de que se não pode impunemente continuar a destruir ou a pilhar a riqueza de alguns países para benefício exclusivo de um pequeno grupo de países mais poderosos. A fome e a revolta que acarreta parece ser o segundo aviso. Para lhes responder
eficazmente será preciso pôr termo à globalização neoliberal, tal como a conhecemos.
O capitalismo global tem de voltar a sujeitar-se a regras que não as que ele próprio estabelece
para seu benefício. Deve ser exigida uma moratória imediata nas negociações sobre produtos
agrícolas em curso na Organização Mundial do Comércio. Os cidadãos têm de começar a
privilegiar os mercados locais, recusar nos supermercados os produtos que vêm de longe, exigir
do Estado e dos municípios que criem incentivos à produção agrícola local, exigir da União
Europeia e das agências nacionais para a segurança alimentar que entendam que a agricultura e a alimentação industriais não são o remédio contra a insegurança alimentar. Bem pelo contrário.
Nenhum comentário:
Postar um comentário