quinta-feira, maio 17, 2007

Pátria em fuga







Por que, no fim do século XIX, tantos vênetos partiram rumo ao Brasil? Um livro esmiúça as razões do êxodo
por Ana Paula Sousa


Iremos para a América/ No tal belo Brasil/ E aqui os nossos senhores/ Trabalharão a terra com a pá, cantarolavam, num sonho melódico, os camponeses de Treviso. Não eram sons jogados ao léu. Eram ecos de tempos difíceis. Trilha sonora de uma fuga em massa que reverberou no Brasil, o canto vêneto resume, a seu modo, a história dos camponeses italianos que aqui vieram carpir. Que aqui vieram fare l’America.
Se a chegada desses milhares de homens é com freqüência tratada em livros, filmes ou relatos de descendentes, menos esmiuçadas são as razões da partida. Por que tanta gente trancou para sempre as portas de suas casas? Por que, entre 1871 e 1901, emigraram da Itália quase 6 milhões de cidadãos? E por que eram, sobretudo, do Vêneto os viajantes que desembarcaram no Brasil nesse período?
São as respostas a essas perguntas que nos oferece o pesquisador Emilio Franzina, professor de História Contemporânea na Universidade de Verona, em A Grande Emigração – o êxodo dos italianos do Vêneto para o Brasil, que, finalmente, ganha uma edição em português. Clássico dos estudos sobre imigração, escrito em 1976, o livro foi publicado pela Editora Unicamp e, apesar do atraso, mantém-se novinho em folha.

Franzina procura incluir o fenômeno num certo quadro de desenvolvimento do capitalismo e rompe com a idéia de que a emigração explica-se por si, de que existiu porque tinha de existir. Revelador do “fascínio exercido pelo mito da América como terra prometida”, o êxodo é também um termômetro da miséria nos campos de uma Itália recém-unificada. O Vêneto, norte do país, estivera sob domínio austríaco até 1866 e terminou o século XIX cambaleante.
Ficando aqui não comemos não, por Deus/ Será preciso também dar esse grande passo/ Se no inverno tivermos gelo/ Pobres de nós, será uma tragédia!, escreveu o poeta socialista Berto Barbarani, em “Eles vão para a Mérica”. Carregados de fardos/ Depois de ter falado mal de todos os senhores/ Depois de ter bebido três ou quatro copos/ Com a cabeça confusa, embriagada/ Apóiam-se uns aos outros e, cambaleando, vão pela estrada. Vão pelo oceano.
“Quando saíam da Europa, os camponeses, que normalmente não eram donos de terra e eram pobres, iam embora pensando que o Brasil seria o país do futuro, como dizia Stefan Zweig, o país da esperança”, afirma Franzina. “Mas o mito americano espalhou-se de tal forma que as redes e cadeias emigratórias incluíam também pequenos proprietários. Alguns partiam cantando músicas que faziam graça dos senhores, dos poderosos.”
A história dessa imigração é, também, o relato de uma luta silenciosa de classes. Recoberto pela pátina do tempo, o fenômeno dá um semblante heróico aos homens que aqui chegaram. Mas que história é essa que eles escreveram? Quem contracenava com eles nesse enredo do exílio? “Os jornais antiemigrantistas falavam em ‘incitadores’ e ‘trambiqueiros’ profissionais, mas havia um verdadeiro exército de intermediários”, conta o professor. “Em muitos lugares, eram os prefeitos, padres, secretários municipais e professores de escolas primárias que desempenhavam a função de agentes da emigração.”
Luigi Biondi, um dos tradutores do livro e professor de História Contemporânea da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), define como política de governo o que ali se passou. “Havia um excesso populacional nessa região e o governo tentou esvaziá-la um pouco”, diz Biondi, ele também imigrante, mas de feições novas. Formado na Universidade de Roma La Sapienza, chegou ao Brasil para fazer doutorado sobre imigração na Unicamp e por aqui ficou.
Por trás do desejo governamental de estimular a população a seguir para uma espécie de exílio voluntário, oculta-se também o medo da massa. Da mobilização. “À medida que expulsam essas pessoas, eles evitam lutas trabalhistas e a organização nos campos”, observa a historiadora Zuleika Alvim, autora de Brava Gente! (grande sucesso nos anos 80, hoje esgotado), que traslada a história de Franzina para o lado de cá do oceano.
O agenciamento de italianos seguia dois modelos principais: o de agricultores recrutados na própria Europa, chamado de “povoamento”, que trouxe gente especialmente para o sul do País, e o “econômico”, com assalariados rurais que vinham com a viagem paga por fazendeiros paulistas, carentes de mão-de-obra após a Abolição da escravatura.
“De 1887 a 1901, a emigração envolveu, em maior número, os habitantes rurais e, às vezes, certos grupos de artesãos e operários das cidades. Foi essa segunda fase que levou a São Paulo dezenas de milhares de vênetos que tinham a viagem paga pelos novos patrões de além-mar, os cafeicultores”, explica Franzina.
A ligação entre os “estímulos atrativos” no destino e os “estímulos expulsores” fica clara em uma série de dados reunidos em A Grande Emigração. Anos de má colheita, como 1878, têm registros estatísticos que mostram a elevação do fluxo migratório em quase todo o Vêneto. Em 1886, por exemplo, uma epidemia de cólera despovoa quase por inteiro a área do Montello (no Treviso). A servir de consolo aos camponeses, a miragem: Para mim basta conseguir sobreviver este ano. Se depois tudo der errado, não me importo, vou já para a América, pregavam.
O mal-estar nos campos, tornado “miséria endêmica”, serve de base para a correlação entre “as condições da agricultura, o crescimento do fenômeno migratório e as primeiras tentativas de constituir na Itália uma base industrial”, estabelecida por Franzina. “A emigração, como já observava (o pensador italiano Antonio) Gramsci, representa um problema não resolvido na vida econômica e social da Itália, apresentando-se como uma constante de um modelo de desenvolvimento.”
Os pesquisadores esclarecem ainda que muitos banqueiros italianos esticaram os olhos sobre as remessas que os emigrantes enviavam para a terra natal, fosse para ajudar familiares, fosse para pagar dívidas. “Há também um grande interesse das companhias de navegação que, muitas vezes, eram ligadas aos bancos e fizeram fortunas”, pontua Zuleika.
Para enxergar a face econômica do fenômeno é preciso ter em mente a crise da economia agrícola européia, entre 1850 e 1870. Se muitos europeus, e mesmo italianos do Sul (abaixo do Lazio), rumam para os Estados Unidos, os italianos do Norte embarcam em navios que aportariam no Brasil, no Uruguai e na Argentina.
Antes de partir, os camponeses vênetos vendiam os animais, os móveis da casa e, se tivessem um pedaço de terra, transformavam-no em dinheiro. “Isso explica como, ao contrário dos italianos do Sul, os emigrantes vênetos, principalmente beluneses e trevisanos, levavam consigo algumas somas modestas. A emigração, para eles, torna-se libertação. A libertação da necessidade e, se não do trabalho, ao menos da exploração”, anota Franzina. Era a América o novo Eldorado, a possibilidade de uma vida de menos privações em “terras livres para serem cultivadas”.
Mas a hora da chegada soava grave. Ambígua. Havia “a dolorosa e brusca separação da terra natal, as viagens animalescas por mar, a exploração reencontrada nas terras de imigração”, como descreve Franzina. E havia a adaptação. E, depois, o enterro das lembranças, pois, como escreve Thomas Mann em A Montanha Mágica, “tal qual o tempo, o espaço gera o esquecimento, desligando o indivíduo das suas relações”.
Apartados da terra natal, eles tentaram, a princípio, reerguer aqui o mundo tornado memória. “Cada grupo teve uma diferente forma de adaptação, decorrente de sua história anterior, dos hábitos que trouxeram”, diz Zuleika. “Para os vênetos, a terra era algo extremamente importante e, aqui no Brasil, eles tentavam reproduzir o ambiente que tinham deixado para trás. Eles chegam ao Brasil com o sonho da pequena propriedade, tanto que trazem a família toda, não vêm como aventureiros solitários.”
Zuleika explica que o trabalho familiar permitia ao fazendeiro maior exploração sobre a mão-de-obra, uma vez que pagavam salários por tarefas e não por indivíduos. “Como eles mantinham as próprias hortas, mesmo com uma produção minúscula, os fazendeiros também não tinham de se preocupar em alimentá-los. É uma história de exploração”, define.
A lida dura nas fazendas, o dinheiro escasso e o isolamento fizeram com que muitos imigrantes abrissem atalhos entre matagais e barrancos e partissem para a cidade. Os avós de Zuleika, vindos de Abruzzi (no sul), fugiram da fazenda no interior paulista, quando um filho morreu. “Eles queriam enterrar a criança conforme suas tradições, mas não conseguiam. Tiveram de andar dias e dias para achar um caixão”, conta. Acabaram mudando para a capital e se instalaram no bairro do Cambuci. O avô tornou-se motorneiro. A avó, costureira.
“As lutas internas nas fazendas são pela sobrevivência e não deixam de abalar o sistema cafeicultor. Não se pode pensar que a única luta válida é a luta de classes”, observa Zuleika, na contramão das teses que tendem a encaixar os vênetos numa moldura de “docilidade, mansidão e paciência”, desvinculados das lutas empreendidas por outros italianos.
“Como eles escolheram a imigração e não os movimentos de resistência camponesa, eram vistos como menos lutadores na Itália”, confirma Biondi. “Mas é incorreto achar que fossem avessos à organização.” O professor lembra que vários vênetos estiveram envolvidos na primeira grande greve geral nos campos brasileiros, ocorrida em 1913, na região de Ribeirão Preto, interior de São Paulo.
“Muitas lideranças foram expulsas do País. Eles conseguiram umas poucas melhorias, mas o principal resultado foi a repressão violenta. Eles recebiam um carimbo vermelho, de grevistas, nas carteiras de identificação e não conseguiam mais emprego”, relata Biondi. Eram vênetos os antepassados de João Pedro Stedile, dirigente do Movimento dos Sem Terra (MST).
“A família de meu avô veio da região trentina, fronteira com a Áustria, em 1899, e a família da minha mãe é da região mais próxima a Veneza”, conta Stedile. “O dialeto vêneto foi o primeiro idioma que aprendi, com minha mãe e minha avó, no interior do Rio Grande do Sul.”
Há sete anos, um Stedile que trabalhava em Trento descobriu o Stedile do MST e o prefeito da minúscula cidade de onde saiu seu avô, Terragnolo, decidiu homenageá-lo. “Ele me convidou para ir até lá. Fizeram uma festa, chamaram uma banda, me deram uma medalha da cidade... Coisa de italiano com saudades.”
Biondi conta que nasceram também em casas vênetas, em fazendas no interior de São Paulo, Candido Portinari, que pintou a família em Baile na Roça (1923-1924), o sambista Adoniran Barbosa, o músico Mario Zan e mais um punhado de gente com sobrenomes como Trevisan, Furlan, Bortoletto, Meneghello, Chinaglia e Casagrande.
Se o grande Adoniran foi para o Brás para fazer o “Samba do Arnesto”, onde nóis fumo e nun encontremo ninguém, muitos dos que se instalaram no bairro ajudaram a fundar o movimento operário. “A Sociedade Vêneta San Marco foi um dos centros de agregação socialista. Em São Paulo foram publicados muitos jornais em italiano de tendência anarquista e socialista, como o Avanti, lançado em 1900”, diz Biondi.
O mesmo não se pode dizer dos italianos que partiram para o Sul do País. “Estou convencido de que nas zonas de colonização do Sul formou-se um grupo que apoiava o fascismo. Em Santa Catarina ou no Rio Grande do Sul, a matriz camponesa era diferente, pois os imigrantes eram donos da terra”, diz Franzina.
Calcula-se que a imigração italiana para o Rio Grande do Sul tenha sido entre 80 mil e 100 mil pessoas, mais de metade vênetos. Eles não foram para fazendas, mas para colônias imperiais, como as de Caxias do Sul, ou a colônia Garibaldi, formadas em 1875.
“A principal marca dos italianos do Sul era o orgulho de ser proprietário”, afirma o frei Rovívio Costa, um dos principais conhecedores da imigração nesta ponta do Brasil. “Nas cartas e relatos, eles diziam: ‘Na Itália, éramos empregados, aqui somos patrões de nós mesmos’. Falavam também na fome substituída pela mesa farta e diziam: ‘Aqui, se eu planto uma parreira, essa parreira é minha’”.
São comunidades moldadas também pelo forte catolicismo. Até hoje, não faltam na região das colônias o sinal-da-cruz e o nome-do-padre. “Até os anos 50, se viesse uma tempestade, o colono dizia que isso tinha acontecido porque alguém havia blasfemado muito”, conta o frei, cuja família saiu da Lombardia, em 1888.
Nas colônias do Sul fala-se, até hoje, o talian, dialeto que mistura o idioma do Vêneto com o português. “Nós já fizemos até cartilha e dicionário de talian”, diz, orgulhoso. “Os imigrantes daqui não cantam louvores à pátria que, por não ter comida, os expulsou. Que idéia sobrou? A de que é um país bonito e sagrado, por ser o país do papa.”
As diferenças entre São Paulo e o Rio Grande do Sul são exemplares dos matizes de uma imigração que, por vezes, é vista como uniforme. Foram muitas as Itálias que embarcaram nos navios do fim do século XIX e início do XX. “Ainda fala-se muita bobagem sobre os imigrantes”, lamenta Franzina. “Uma novela como Terra Nostra só piora isso. Eles colocavam camponeses do norte cantando cantigas napolitanas (do sul). As roupas retratadas em São Paulo, por exemplo, eram roupas que só os imigrantes do sul usavam.”
O professor Michael Hall, da Unicamp, norte-americano que estudava a imigração italiana nos EUA, mas há duas décadas vive no Brasil, observa que, apesar das diferenças profundas, alguns brasileiros chegam a associar os imigrantes daqui aos sicilianos de O Poderoso Chefão. “Nos Estados Unidos, não há imigração italiana, antes de 1900, ou seja, é uma geração depois da que chegou ao Brasil. Aqui, em sua primeira fase, foi agrícola. Lá, foram para as cidades. Aqui, também sofreram menos discriminação e a língua é mais parecida”, define Hall.
Não que aqui tenham sido só flores. Zuleika conta que alguns camponeses chegaram a enlouquecer. Brás, Mooca ou Bexiga (bairro de calabreses, campanos e de alguns puglieses) eram, muitas vezes, refúgio dos que não suportavam a vida no campo. Não custa lembrar também de uma alcunha como “carcamano”, nascida dos comentários sobre os açougueiros italianos que, ao pesar a carne, colocariam a mão na balança para ganhar uns gramas.
Ainda assim, foi nos EUA, e não aqui, que a máfia vingou. “Há uma grande discussão a esse respeito. Creio que seja uma combinação de experiências anteriores com a falta de acesso a outras oportunidades nos Estados Unidos. Aqui, os italianos encontraram caminhos para crescer e não se isolaram, de forma até secreta, como lá”, diz Hall. Que o digam os impérios erguidos pelas família Matarazzo, Crespi, Lunardelli e tantas outras.
Se as histórias de sucesso são várias, não apenas nos negócios, mas muito também na arte, com homens como Franco Zampari (TBC e Vera Cruz), Pietro Maria Bardi (Masp) ou Ciccillo Matarazzo (Bienal de São Paulo), foram anônimos quase todos os emigrantes. Privados de bens materiais, ele são, freqüentemente, privados também da história. Da identidade. É essa “brava gente” que A Grande Emigração recompõe.

Terra do Papa e da tarantela
“Para o Brasil, a Itália é um país homogêneo”, diz historiador
CartaCapital: Por que só agora o livro foi traduzido para o português? Emilio Franzina: Existe o problema do relacionamento entre as culturas italiana e brasileira. O Brasil olha mais para a França e para os Estados Unidos. A Itália é, no máximo, vista como o país do papa. A tradução havia sido proposta pelo professor Michael Hall no início dos anos 80, mas só agora saiu. Acredito que hoje exista uma sensibilidade maior nos ambientes intelectuais ao fenômeno das imigrações, até porque há uma imigração brasileira nos Estados Unidos e na Europa. Passa, portanto, a ser mais importante o conhecimento desse fenômeno. E não podemos esquecer que a presença de italianos em alguns estados brasileiros, como São Paulo, é imensa.
CC: Apesar disso, é grande a falta de conhecimento sobre a Itália. Existem muito mais descendentes de italianos do que de franceses aqui no Brasil, mas mais gente fala francês... EF: A imigração é geralmente composta de gente pobre, camponeses e trabalhadores, pessoas que não recebem honrarias na imprensa nem circulam pela alta cultura. A cultura francesa exerce maior fascínio sobre as classes altas brasileiras, que durante muito tempo colocaram Paris no coração da sua formação intelectual. Depois dos anos 60, a partir da ditadura militar, a cultura brasileira se volta para os Estados Unidos como ponto de referência. Por isso, a Itália permaneceu periférica por muito tempo.
CC: Mas hoje é grande a quantidade de estudos sobre a imigração italiana?EF: Os estudos sobre a imigração européia tornaram-se muito numerosos nos últimos 20 ou 30 anos. Quando escrevi o livro, não existia uma produção tão rica como a de agora. Hoje, em toda universidade brasileira, não somente na USP, na Unicamp ou nas grandes universidades federais, mas também nas pequenas universidades em zonas que tiveram a presença européia no Sul, têm teses sobre o assunto. Isso sem falar nas obras de literatura e de memória. São centenas de livros de diletantes, descendentes dos imigrantes, que tentam contar a história dos antepassados. São livros muito modestos, que, do ponto de vista científico, não possuem relevância. Mas, do ponto de vista cultural, são uma indicação desse interesse que continua a existir.
CC: Mas ainda se vê a imigração em bloco? EF: A confusão entre as diferentes regiões se assemelha à que existe na Europa entre aqueles que, fazendo turismo, estiveram em Natal ou na Bahia e não conseguem distinguir um local do outro. Vista do Brasil, a Itália é um país homogêneo onde está o papa e onde se tocam aquelas músicas napolitanas. E também se joga futebol.
Sinal dos temposIgreja voltada aos italianos hoje se dedica a latino-americanos e africanos
Dentre as muitas igrejas ligadas à comunidade italiana existentes em São Paulo, uma é especialmente importante quando se fala de imigração: a Nossa Senhora da Paz, no Glicério, pedaço degradado da região central da cidade. Inaugurado no início dos anos 40, o lindo templo (“Enclave de beleza”, CartaCapital Ed. 388) pertence à Congregação dos Scalabrinistas, destinada a cuidar dos imigrantes. E jamais se desviou da vocação inicial.
A história da congregação remonta a 1880. “No fim do século XIX, nossos padres já atendiam os órfãos urbanos e iam aos cafezais fazer batizados”, conta o padre Lírio Berwanger, responsável pela paróquia. Não foi o acaso que pôs a igreja no Glicério. É que ali na região tinha sido inaugurada, em 1887, a Hospedaria do Imigrante, destino de todos os que desembarcavam dos navios.
Se muitos partiam dali para as fazendas, outros tantos se espalhavam pelo Brás, Mooca, Cambuci e Glicério. “Os padres tinham de pensar nas pessoas que ocupavam essa região, que era a periferia dos italianos”, completa o padre Lírio. O tempo correu e, depois de muito tentar, a Ordem conseguiu, nos anos 70, erguer a própria Casa do Imigrante. Mas, a esta altura, os italianos já não precisavam de amparo.
“Esta igreja nasceu com os italianos, mas, à medida que eles foram se integrando, passamos a cuidar da nova imigração que chegava aqui”, diz o padre Mário Geremia, responsável pela Pastoral do Imigrante, que presta assessoria jurídica, espiritual e social com o apoio de 21 voluntários.
“A hospedaria, criada no fim do século XIX, era uma política de Estado. A partir dos anos 70, os imigrantes passam a chegar sozinhos e, mais do que isso, a imigração passa a ser um caso de Polícia Federal”, observa o padre Mário. Vieram primeiro os nordestinos, depois surgiram as ondas de vietnamitas, coreanos e, por fim, a dos latino-americanos. Recentemente, têm chegado também africanos em peso.
“Houve um tempo em que dávamos cursos profissionalizantes. Chegavam aqui homens do Nordeste que só sabiam trabalhar com a enxada e, em poucos dias, tentávamos prepará-los para a construção civil”, diz o padre Lírio. “Hoje, é mais difícil fazer um trabalho assim. A imigração também se globalizou. Chegam aqui pessoas com perfis totalmente diversos. Já tivemos africanos que falam sete idiomas, médicos etc. Mas eles não podem trabalhar porque não têm documentação.”
Entrar na Casa do Imigrante é encontrar um mundo estranhamente transitório. Tristemente apátrida. No almoço do sábado 27, era possível notar o desentendimento no olhar dos africanos que ouviam o padre Mário falar. E o desagrado dos bolivianos e peruanos diante do feijão-preto. “Vocês comem muito arroz e muito feijão, não?”, diz uma senhora, com o cenho franzido.
À comida, a boliviana Patrícia, de 27 anos, já se acostumou. Está há sete meses no Brasil e há cinco na Casa. É médica formada. Está falando português com fluência. Mas sente-se numa encruzilhada. “Vim para cá porque no meu país não temos oportunidades. Achei que aqui seria melhor. Mas está muito difícil. Mas também penso: voltar não é desistir sem ter tentado o bastante?” Pergunta de difícil resposta.
Patrícia não quis tirar foto. E pediu para ter o sobrenome preservado. “Não gostaria que você individualizasse o meu caso. Essa história que eu te contei não é só minha. É a de centenas de médicos bolivianos que estão aqui no seu país, muitos clandestinos.” Há ainda os bolivianos escravizados por coreanos, os tocadores de flauta, os que nem sabemos quem são.
Os latinos ao menos se comunicam. E os africanos? Isolados dos demais ocupantes da Casa – são cerca de 90 pessoas, ao todo –, eles falam francês ou inglês. E contam histórias difíceis de entender. Adama Sanogo, 32 anos, veio da Costa do Marfim há duas semanas. “Eu sou um rebelde no meu país. Eu fugi num barco que nem sabia para onde iria. E agora estou aqui no seu país”, diz, numa fala incessante, de quem tem palavras entaladas na garganta. “Se eu voltar para lá, sou assassinado. Meu país está em guerra. À noite, quando deito, lembro de lá e não consigo dormir. Eu tenho o medo dentro de mim. Agora estou aqui no seu país. É tudo o que eu sei.”
Quem chega à Casa foi, em geral, recomendado pelos consulados dos respectivos países. Em 2006, passaram por ali 580 imigrantes, 60% estrangeiros. “Quando chegam aqui é porque perderam toda a referência de comunidade, família e amigos. Procuramos manter neles a esperança, com uma comida boa e uma cama digna”, diz o padre Mário. “Antes, o imigrante era bem-vindo, era quase um herói que ajudaria a construir a pátria. Hoje, ele é visto como inimigo, como ameaça.” Mas, tal qual os italianos que fugiram do Vêneto, são apenas seres humanos em busca de um sonho que nem eles sabem qual é.








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