Entre os Censos de 1940 e 2000, a população brasileira cresceu quatro vezes. O Brasil rural tornou-se urbano (31,3% para 81,2% de taxa de urbanização). Nesse período, houve o envelhecimento da população brasileira, que na faixa de 15 a 59 anos, aumentou de 53% para 61,8%. O número de pessoas autodeclaradas pardas aumentou de 21,2% para 38,5%, reflexo do processo de miscigenação racial. Quanto à religião, nesses 60 anos, os evangélicos cresceram de 2,6% para 15,4% da população. O país conseguiu reduzir em cinco vezes a taxa de analfabetismo, que caiu de 56,8% para 12,1%. A taxa de escolarização, entre crianças de 7 a 14 anos, aumentou de 30,6% para 94,5%. Já o percentual de casados cresceu de 42,2% para 49,5%. Os brasileiros natos passaram de 96,6% para 99,6%. No período em foco, agricultura, pecuária e silvicultura, que em 1940 representava 32,6% da população ocupada, declinou para 17,9%, em 2000.
Leia mais:
IBGE :: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Creio que educar é basicamente habilitar as novas gerações no exercício de uma visão não ingênua da realidade, de maneira que seu olhar tenha em conta o mundo, não como uma suposta realidade objetiva em si mesma, mas como o objeto de transformação ao qual o ser humano aplica sua ação. Mario Luiz Rodrigues Cobos - o Silo, "A Paisagem Humana", capítulo 'A Educação'
sexta-feira, maio 25, 2007
Idade da população ocupada aumentou nos últimos 60 anos
CLARICE SPITZda Folha Online, no Rio de Janeiro
Estudo do IBGE mostra mudança na distribuição dos trabalhadores por idade no mercado de trabalho entre 1940 e 2000. Em 1940, com a população brasileira mais jovem, os trabalhadores ocupados estavam em sua maioria na faixa de 10 a 19 anos. Eles correspondiam a 33,7% da população ocupada.Já em 2000, a maior participação estava na faixa etária entre 20 e 29 anos (28,4%).
Nessa faixa etária de trabalhadores, as atividades de agricultura, pecuária, silvicultura, além de atividades domésticas --que incorporam atividade primária de subsistência-- e escolares ocupavam maior percentual de trabalhadores em 1940.Já em 2000, as atividades ligadas ao comércio, reparação de veículos automotores e de objetos pessoais e domésticos, além da indústria de transformação empregavam mais.
A agricultura, pecuária e silvicultura ocupavam a terceira posição.Em 1940, 28,9 milhões de pessoas de 10 anos ou mais estavam empregadas. Em 2000, esse contingente subiu para 65,6 milhões, o que corresponde a 48,5% do total de pessoas de 10 anos ou mais.
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Proporção de idosos no Brasil mais que duplica em 60 anos, diz IBGE
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População cresce quatro vezes e analfabetismo cai de 56% para 12% desde 40
Cai parcela de brasileiros brancos e negros em 60 anos, diz IBGE
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Nessa faixa etária de trabalhadores, as atividades de agricultura, pecuária, silvicultura, além de atividades domésticas --que incorporam atividade primária de subsistência-- e escolares ocupavam maior percentual de trabalhadores em 1940.Já em 2000, as atividades ligadas ao comércio, reparação de veículos automotores e de objetos pessoais e domésticos, além da indústria de transformação empregavam mais.
A agricultura, pecuária e silvicultura ocupavam a terceira posição.Em 1940, 28,9 milhões de pessoas de 10 anos ou mais estavam empregadas. Em 2000, esse contingente subiu para 65,6 milhões, o que corresponde a 48,5% do total de pessoas de 10 anos ou mais.
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segunda-feira, maio 21, 2007
Os conflitos entre Hammas e Fatah e os ataques às cidades israelenses têm o objetivo explícito de provocar uma reação de Israel
Herbert Moraes Jr.
A estratégia do Hammas
Há uma semana militantes palestinos do Fatah e do Hammas vêm se matando nas ruas da cidade de Gaza e colocando em risco a vida da população local, que muitas vezes é atingida pelo “fogo-amigo”. A instabilidade levou alguns grupos terroristas ligados ao Hammas a reiniciarem a chuva de foguetes Kassam sobre o deserto do Negev, principalmente na cidade de Sderot, no sul de Israel. O lugar é pequeno — apenas 23 mil habitantes — e estão todos apavorados. Muitos já deixaram suas casas, outros permanecem e assistem diariamente mísseis sem direção atingirem a cidade. Quando cai um foguete desses o desespero e o caos tomam conta. Esta semana, um deles caiu a 150 metros do meu carro. Os moradores entram em pânico. Saem nas ruas e começam a gritar, chorar, esbravejar. A polícia, os bombeiros e até o exército chegam no local. Dessa vez foi apenas a calçada que ficou danificada. Todos vão embora. Silêncio. Que é quebrado novamente com outra explosão. Era outro Kassam. Durante quatro horas, a cidade presencia a queda de pelo menos dez deles. No final do dia, Sderot havia sido bombardeada 30 vezes. Neste domingo, o número total da semana deve chegar a quase 200 foguetes Kassam. A intensão é levar Israel a ataques maciços contra a Faixa de Gaza. Talvez a única maneira de unir as duas facções seria a luta contra o inimigo, dizem alguns especialistas. Mas a luta entre palestinos projeta a impressão de fazer parte de um plano mais ambicioso. Tudo leva à conclusão de que o objetivo principal é boicotar o plano de paz sugerido pela Arábia Saudita e adotado pela liga árabe, com as assinaturas do primeiro-ministro palestino, Ismail Hanieh, que é do Hammas, e do presidente da autoridade palestina, Mahamoud Abbas. Estes dois senhores prometeram e assinaram em baixo que governariam juntos, em prol da população. Mas não é bem assim. Existe aí uma equação montada pelas forças que inspiram o Hammas, que, depois de ter vencido as eleições, há mais de um ano, ainda não encontra entendimento com o presidente da autoridade palestina. Eles não concordam sequer na divisão dos poderes do Executivo e, por diversas vezes, já chegaram à beira de uma guerra civil.
Grupos terroristas ligados ao Hammas reiniciam ataques com foguetes Kassam sobre o deserto do Negev A Arábia Saudita, terra do profeta Maomé e da seita mulçumana sunita, realizou o encontro das duas autoridades palestinas sob a ‘’benção” da cidade mais sagrada do mundo mulçumano. Ambos concordaram em suspender a luta. Mas voltaram aos territórios palestinos e não cumpriram o acordado. O Hammas, por sua vez, que se opõe a reconhecer o Estado de Israel, prefere nomear o país de ‘entidade sionista”, seguindo a mesma linha do Hizbollah, dos xiitas libaneses. A Arábia Saudita é o país mais rico do Oriente Médio — o Egito, o maior e mais populoso. Os sunitas não querem o Irã, que não faz parte do mundo árabe, como maior potência do Oriente Médio árabe. Entender-se com Israel é parte do plano desses dois países, e um processo de negociação, urgente, poderia surgir, como estratégia na preservação da influência árabe sobre a região. Os conflitos entre Hammas e Fatah e os ataques às cidades israelenses têm o objetivo explícito de provocar uma reação de Israel. Desta forma, inviabilizaria todas as tentativas de se negociar a paz, já que o governo de união nacional palestino estaria, se já não está, esfacelado. Praticamente não existe mais. Toda essa instabilidade daria tempo ao Irã de avançar ainda mais em seu projeto nuclear, que, segundo a inteligência israelense, tem como objetivo final a bomba atômica. Por enquanto, quem sofre do lado israelense e palestino é a população, que não sabe e não tem pra onde ir. Seguem frustados, já que não há ações efetivas de suas autoridades. Está difícil. A diplomacia internacional está em ebulição nos bastidores, em busca de uma estratégia que seja eficaz. Mas isso é coisa muito distante para acalmar a ansiedade e o pânico da população. O Hammas e as facções armadas do Fatah desafiam políticas e estratégias da comunidade árabe, da liga dos 22 países árabes, que há muito deveria intervir. Agora que a reação israelense já começou, talvez seja tarde demais.
Grupos terroristas ligados ao Hammas reiniciam ataques com foguetes Kassam sobre o deserto do Negev A Arábia Saudita, terra do profeta Maomé e da seita mulçumana sunita, realizou o encontro das duas autoridades palestinas sob a ‘’benção” da cidade mais sagrada do mundo mulçumano. Ambos concordaram em suspender a luta. Mas voltaram aos territórios palestinos e não cumpriram o acordado. O Hammas, por sua vez, que se opõe a reconhecer o Estado de Israel, prefere nomear o país de ‘entidade sionista”, seguindo a mesma linha do Hizbollah, dos xiitas libaneses. A Arábia Saudita é o país mais rico do Oriente Médio — o Egito, o maior e mais populoso. Os sunitas não querem o Irã, que não faz parte do mundo árabe, como maior potência do Oriente Médio árabe. Entender-se com Israel é parte do plano desses dois países, e um processo de negociação, urgente, poderia surgir, como estratégia na preservação da influência árabe sobre a região. Os conflitos entre Hammas e Fatah e os ataques às cidades israelenses têm o objetivo explícito de provocar uma reação de Israel. Desta forma, inviabilizaria todas as tentativas de se negociar a paz, já que o governo de união nacional palestino estaria, se já não está, esfacelado. Praticamente não existe mais. Toda essa instabilidade daria tempo ao Irã de avançar ainda mais em seu projeto nuclear, que, segundo a inteligência israelense, tem como objetivo final a bomba atômica. Por enquanto, quem sofre do lado israelense e palestino é a população, que não sabe e não tem pra onde ir. Seguem frustados, já que não há ações efetivas de suas autoridades. Está difícil. A diplomacia internacional está em ebulição nos bastidores, em busca de uma estratégia que seja eficaz. Mas isso é coisa muito distante para acalmar a ansiedade e o pânico da população. O Hammas e as facções armadas do Fatah desafiam políticas e estratégias da comunidade árabe, da liga dos 22 países árabes, que há muito deveria intervir. Agora que a reação israelense já começou, talvez seja tarde demais.
HERBERT MORAES é correpondente da TV Record em Israel.
Al Gore: “Gostaria que meu país tivesse um programa para combustíveis líquidos renováveis como o Brasil”
“O Brasil pode oferecer liderança para o mundo nas questões de meio ambiente. O País já é líder em áreas como os combustíveis renováveis, com o etanol, mas pode fazer muito mais”, avaliou o ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Albert Gore, que esteve no país no último final de semana para divulgar a tese de catástrofe ambiental defendida no filme que estrela, Uma Verdade Inconveniente. “Gostaria que meu país tivesse um programa para combustíveis líquidos renováveis como o Brasil”, afirmou Al Gore.
Sobre a posição do governo dos EUA em relação ao etanol brasileiro, o democrata norte-americano afirmou que “gostaria que não existissem as altas barreiras tarifárias para o álcool como combustível”, colocado como uma das alternativas para diminuir a poluição gerada pela queima de petróleo.
Gore ressaltou que, mesmo sem a assinatura de Bush, o Protocolo de Kyoto - um acordo mundial para reduzir a poluição - está sendo assumido pelo povo norte-americano. “Existe progresso nos Estados Unidos. O Congresso que tomou posse em janeiro está se movimentando para exigir a redução das emissões. Ao todo, 472 cidades americanas aderiram de forma independente ao Protocolo de Kyoto. Eu garanto que as coisas estão mudando e vão mudar”, destacou.
Al Gore vem se dedicando ao tema ambiental desde que foi vítima da fraude eleitoral perpetrada pela família Bush nos EUA. No sábado, reuniu-se em São Paulo com um público de 500 pessoas entre empresários, políticos e personalidades num evento patrocinado pelo Itaú. E, entre uma entrevista e outra, no domingo lançou o projeto de um show, no Rio de Janeiro, que deverá acontecer simultaneamente em 7 cidades do mundo em julho, para divulgar a tese de aumento da temperatura do planeta produzido pelo homem.
Para o ex-presidente dos EUA, o combate às mudanças climáticas é antes de tudo uma “questão moral” e defende que seu país deve ser o de primeiro realizar a transformação de seu parque tecnológico para, depois, “cooperar com as nações”.
sábado, maio 19, 2007
"Novo petróleo" atrai oposição social cada vez maior
Antonio Cerrillo
As plantações para produção de biocombustíveis ¿ opção energética que vem ganhando preferência para a substituição da gasolina e do petróleo na condição de carburante - estão atraindo oposição social cada vez maior. Organizações não governamentais de diversos países produtores desse tipo de matéria-prima (soja argentina ou brasileira, óleo de palma indonésio ou da Malásia) vêm denunciando os estragos que a agricultura industrial praticada atualmente e o cultivo de safras energéticas estão causando: desflorestamento, despovoamento das regiões rurais, perda de biodiversidade, contaminação de águas, superlotação nas cidades e fome.
Também alertam que esses produtos vegetais, que os países ricos do norte desejam para manter abastecidos os tanques de seus carros, são essenciais para o sustento básico e a segurança alimentar dos países em desenvolvimento.
Em uma linha semelhante de argumentação, um relatório das Nações Unidas alertava, na semana passada, que a corrida por produzir grandes volumes de biocombustíveis (com base no milho, cana-de-açúcar, soja ou palma) poderia causar mais desflorestamento, queimadas e empobrecimento ainda maior das populações rurais. A ONU não se opõe a uma ampliação no uso dos combustíveis de base vegetal, mas teme que essa fonte de energia se estenda sem controle e sem que todas as conseqüências sejam levadas em conta.
Os biocombustíveis contam com o beneplácito dos cientistas do Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas, como forma de reduzir os gases de aquecimento global. Ainda assim, o número de críticos não pára de crescer. As reservas e as ressalvas são acatadas, na Espanha, por organizações como a Veterinarios sin Fronteras, o Observatorio de la Globalización e a Xarxa de Consum Solidari, que pediu que os planos de promoção do uso desse tipo de combustível sejam postergados até que todas as dúvidas sejam esclarecidas.
"Os biocombustíveis vão acentuar os desequilíbrios já existentes em um modelo agrário que já causou graves danos ambientais e sociais, assim como exacerbou a pobreza em muitos países", explica Jorge Rulli, pesquisador do Grupo de Reflexión Rural da Argentina, que fez uma conferência sobre o assunto na semana passada em Barcelona. Há temores de que o cultivo de variantes transgênicas de produtos como o milho ou a soja seja retomado ou intensificado em países como Argentina e Paraguai.
"A monocultura provocou deslocamentos maciços de população para as cidades, e contaminação dos campos. O setor agrícola não propicia grande número de empregos, e o desemprego rural alimenta o desemprego urbano", de acordo com o pesquisador argentino. "Vamos transformar nossos campos de soja em novos campos de petróleo", ele lamentou. De acordo com Rulli, o impacto das expectativas quanto aos biocombustíveis já se faz sentir em seu país. "Há especulação com terras, e o preço da terra nas regiões rurais cresceu. Não há mais espaço para a criação do gado, e os bovinos começam a ocupar as terras baixas e as regiões de beira de estrada", afirma.
O relatório da ONU mencionado acima afirma, igualmente, que o cultivo de safras energéticas (cereais ou cana-de-açúcar para a produção de etanol, e soja ou palmeiras para a produção de biodiesel) pode causar desequilíbrio no abastecimento alimentar. O perigo é que as terras sejam reservadas à produção de safras base para combustíveis, em detrimento de outros produtos básicos.
A escassez e a alta de preços agravariam as condições de vida das populações de baixa renda. No México, a alta no preço das tortillas de milho (o alimento básico da dieta mexicana) devido ao desvio de produção dessa safra para a indústria do etanol nos Estados Unidos causou sério mal-estar social.
A disparidade entre pobres e ricos poderia, inclusive, se ampliar ainda mais. "Caso criemos uma competição de preços de cereais entre as famílias dos países do sul, que precisam desses produtos para seu sustento, e as famílias dos países industrializados, que precisam deles para manter abastecidos os tanques de seus automóveis, está claro quem poderá pagar mais e para quem os produtos serão vendidos", disse Gustavo Duch, diretor da Veterinarios sin Fronteras.
Além disso, a União Européia prevê a importação de grande volume de matérias-primas para produção de biocombustíveis de regiões de floresta tropical, alagados e outros ecossistemas, denunciam esses mesmos grupos. "Os biocombustíveis são uma ameaça para as florestas", disse Rulli, alertando sobre os perigos que isso acarreta no Equador, Colômbia e Brasil.
Na Indonésia, os planos de desenvolvimento de biocombustíveis (vinculados à política da União Européia) prevêem expandir em 43 vezes a produção de óleo de palma, o que destruiria 20 milhões de hectares de floresta tropical, de acordo com a Veterinarios sin Fronteras.
Jorge Rulli sustenta que a ênfase deveria ser aplicada a outras soluções, como a economia de energia e a adoção de formas mais eficientes de uso da energia e dos combustíveis. "Há dois perigos, no caso dos biocombustíveis. Além das conseqüências negativas em termos de alimentação e de meio ambiente, estão sendo criadas falsas expectativas e falsas esperanças tecnológicas.
O perigo é que isso resulte em que as pessoas deixem de lado os esforços de promoção de uma maior economia de energia e de hábitos de consumo mais responsáveis, que representam as soluções essenciais de que necessitamos parta mitigar as alterações climáticas e nos aproximarmos de uma sociedade mais justa", diz Gustavo Duch.
Tradução: Paulo Eduardo Migliacci ME
La Vanguardia
As plantações para produção de biocombustíveis ¿ opção energética que vem ganhando preferência para a substituição da gasolina e do petróleo na condição de carburante - estão atraindo oposição social cada vez maior. Organizações não governamentais de diversos países produtores desse tipo de matéria-prima (soja argentina ou brasileira, óleo de palma indonésio ou da Malásia) vêm denunciando os estragos que a agricultura industrial praticada atualmente e o cultivo de safras energéticas estão causando: desflorestamento, despovoamento das regiões rurais, perda de biodiversidade, contaminação de águas, superlotação nas cidades e fome.
Também alertam que esses produtos vegetais, que os países ricos do norte desejam para manter abastecidos os tanques de seus carros, são essenciais para o sustento básico e a segurança alimentar dos países em desenvolvimento.
Em uma linha semelhante de argumentação, um relatório das Nações Unidas alertava, na semana passada, que a corrida por produzir grandes volumes de biocombustíveis (com base no milho, cana-de-açúcar, soja ou palma) poderia causar mais desflorestamento, queimadas e empobrecimento ainda maior das populações rurais. A ONU não se opõe a uma ampliação no uso dos combustíveis de base vegetal, mas teme que essa fonte de energia se estenda sem controle e sem que todas as conseqüências sejam levadas em conta.
Os biocombustíveis contam com o beneplácito dos cientistas do Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas, como forma de reduzir os gases de aquecimento global. Ainda assim, o número de críticos não pára de crescer. As reservas e as ressalvas são acatadas, na Espanha, por organizações como a Veterinarios sin Fronteras, o Observatorio de la Globalización e a Xarxa de Consum Solidari, que pediu que os planos de promoção do uso desse tipo de combustível sejam postergados até que todas as dúvidas sejam esclarecidas.
"Os biocombustíveis vão acentuar os desequilíbrios já existentes em um modelo agrário que já causou graves danos ambientais e sociais, assim como exacerbou a pobreza em muitos países", explica Jorge Rulli, pesquisador do Grupo de Reflexión Rural da Argentina, que fez uma conferência sobre o assunto na semana passada em Barcelona. Há temores de que o cultivo de variantes transgênicas de produtos como o milho ou a soja seja retomado ou intensificado em países como Argentina e Paraguai.
"A monocultura provocou deslocamentos maciços de população para as cidades, e contaminação dos campos. O setor agrícola não propicia grande número de empregos, e o desemprego rural alimenta o desemprego urbano", de acordo com o pesquisador argentino. "Vamos transformar nossos campos de soja em novos campos de petróleo", ele lamentou. De acordo com Rulli, o impacto das expectativas quanto aos biocombustíveis já se faz sentir em seu país. "Há especulação com terras, e o preço da terra nas regiões rurais cresceu. Não há mais espaço para a criação do gado, e os bovinos começam a ocupar as terras baixas e as regiões de beira de estrada", afirma.
O relatório da ONU mencionado acima afirma, igualmente, que o cultivo de safras energéticas (cereais ou cana-de-açúcar para a produção de etanol, e soja ou palmeiras para a produção de biodiesel) pode causar desequilíbrio no abastecimento alimentar. O perigo é que as terras sejam reservadas à produção de safras base para combustíveis, em detrimento de outros produtos básicos.
A escassez e a alta de preços agravariam as condições de vida das populações de baixa renda. No México, a alta no preço das tortillas de milho (o alimento básico da dieta mexicana) devido ao desvio de produção dessa safra para a indústria do etanol nos Estados Unidos causou sério mal-estar social.
A disparidade entre pobres e ricos poderia, inclusive, se ampliar ainda mais. "Caso criemos uma competição de preços de cereais entre as famílias dos países do sul, que precisam desses produtos para seu sustento, e as famílias dos países industrializados, que precisam deles para manter abastecidos os tanques de seus automóveis, está claro quem poderá pagar mais e para quem os produtos serão vendidos", disse Gustavo Duch, diretor da Veterinarios sin Fronteras.
Além disso, a União Européia prevê a importação de grande volume de matérias-primas para produção de biocombustíveis de regiões de floresta tropical, alagados e outros ecossistemas, denunciam esses mesmos grupos. "Os biocombustíveis são uma ameaça para as florestas", disse Rulli, alertando sobre os perigos que isso acarreta no Equador, Colômbia e Brasil.
Na Indonésia, os planos de desenvolvimento de biocombustíveis (vinculados à política da União Européia) prevêem expandir em 43 vezes a produção de óleo de palma, o que destruiria 20 milhões de hectares de floresta tropical, de acordo com a Veterinarios sin Fronteras.
Jorge Rulli sustenta que a ênfase deveria ser aplicada a outras soluções, como a economia de energia e a adoção de formas mais eficientes de uso da energia e dos combustíveis. "Há dois perigos, no caso dos biocombustíveis. Além das conseqüências negativas em termos de alimentação e de meio ambiente, estão sendo criadas falsas expectativas e falsas esperanças tecnológicas.
O perigo é que isso resulte em que as pessoas deixem de lado os esforços de promoção de uma maior economia de energia e de hábitos de consumo mais responsáveis, que representam as soluções essenciais de que necessitamos parta mitigar as alterações climáticas e nos aproximarmos de uma sociedade mais justa", diz Gustavo Duch.
Tradução: Paulo Eduardo Migliacci ME
La Vanguardia
quinta-feira, maio 17, 2007
“Ação da Cargill em Santarém agride à dignidade nacional”
Frente em Defesa da Amazônia:
Padre Edilberto Moura Sena, da Frente em Defesa da Amazônia, denuncia multinacional norte-americana pela privatização da praia de Vera Paz e pelo vertiginoso crescimento da devastação, da contaminação ambiental, da concentração fundiária e da violência desmedida praticada contra trabalhadores rurais na cidade do Oeste paraense
Padre Edilberto Moura Sena, da Frente em Defesa da Amazônia, denuncia multinacional norte-americana pela privatização da praia de Vera Paz e pelo vertiginoso crescimento da devastação, da contaminação ambiental, da concentração fundiária e da violência desmedida praticada contra trabalhadores rurais na cidade do Oeste paraense
LEONARDO WEXELL SEVERO, DE SANTARÉM-PA
O fechamento do porto da Cargill em Santarém, determinado pela Procuradoria Geral do Estado do Pará, assim como a sua absurda reabertura sem a apresentação do Estudo de Impacto Ambiental, as ameaças de morte contra a presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da cidade, Maria Ivete Bastos, o crescimento das áreas devastadas e o reconhecimento nacional e internacional à luta da Frente em Defesa da Amazônia, são o pano de fundo desta entrevista, dada na cidade portuária vitimada pela multinacional norte-americana.
Para o representante da Frente, padre Edilberto Moura Sena, a gravidade dos desmandos da multinacional aponta para a necessidade de que a lei chegue para fazer justiça frente à mega-exploração. Recentemente, padre Edilberto acompanhou Maria Ivete Bastos, à Índia, onde ela recebeu das mãos da ativista e escritora Wandana Shiva, dirigente da Navdanya, entidade que luta pela defesa das sementes tradicionais, o prêmio Mahatma Gandhi.
Qual a sua posição sobre a instalação da Cargill em Santarém?
Eu me preocupo de ver o imbróglio da Cargill. Uma empresa estrangeira, que se instala no nosso país violando a Constituição brasileira e depois briga com muito recurso para se manter funcionando, é uma agressão à nossa dignidade nacional. Mas, lamentavelmente, uma parte da nossa população, especialmente a elite econômica e política da região, defende essa empresa estrangeira instalada à revelia da lei aqui no Pará.
Quando começaram os abusos?
Isso já vem desde 1999, quando a Cargill chegou aqui e resolveu destruir uma praia popular, bem na frente da cidade, a praia de Vera Paz. Com isso, ela destruiu duas coisas: uma praia popular e a geração de renda para muitas famílias pobres que comercializavam no local. Além disso, a empresa aterrou um sítio arqueológico, o que foi comprovado pela arqueóloga Ana Roosevelt. Este foi o primeiro grave problema na época, com a conivência do governo do Estado do Pará e das Docas do Pará, que é um departamento federal, que estava contente em arrendar uma área do seu porto – que eu não sei exatamente nem quanto paga anualmente. Até hoje não se sabe quanto o governo do Pará ganhou neste jogo, mas apenas que deu uma “licença” provisória que é ilegal.
Armação descarada...
Foi baseada nesta “licença” que a Cargill construiu seu monstro de Lago Ness, isto é, o monstro do Rio Tapajós. Deste porto você pode colocar a foto na reportagem, porque é uma agressão a uma cidade preparada pela natureza e por Deus para ser uma cidade turística. Invadiu o rio Tapajós, privatizou não apenas a praia, mas a enseada do Rio. Hoje, se algum pobre colocar um bote ali naquela enseada, imediatamente vem um guarda da Cargill, quer dizer privatizou tudo.
Como a denúncia contra a Cargill ganhou essa proporção?
Nós, da frente em Defesa da Amazônia, denunciamos este fato da empresa estar fazendo uma agressão à Constituição. O Ministério Público Federal, à época na responsabilidade de Felício Pontes, que hoje é o procurador geral do Estado, acatou a nossa denúncia e processou a Cargill. Como a Cargill é poderosa financeiramente e arrogante na sua política, e você deve ter muitos exemplos da arrogância dela no Sul do país, lá na Índia e em outros lugares do mundo, ela não ligou para o Ministério Público e continuou seu trabalho. No ano 2000 um juiz federal em Santarém sentenciou a Cargill, mandando-a paralisar o serviço e realizar o Estudo de Impacto Ambiental. Este é o xis da questão, o EIA-Rima. A Cargill não ligou, recorreu, e assim, de liminar em liminar, os anos foram correndo e chegou até agora quando finalmente o Tribunal Regional Federal decretou que o juiz de Santarém estava certo desde aquela época e que a ordem era a de paralisar o porto e fazer o Estudo. Foi então que o Ibama paralisou o porto (há dois meses). A Cargill não se conformou e recorreu novamente, embora conforme o Tribunal dizia, não cabia mais recurso... Ela recorreu. Agora, a Cargill veio com outra conversa dizendo que estava disposta a fazer o EIA-Rima, contanto que deixasse o porto funcionando, pois ela iria ter prejuízo econômico, iria prejudicar os produtores de soja da região. Agora ela admite que errou, mas quer um ajuste de conduta. Quer dizer, qualquer réu que comete um crime vai para o presídio, paga o crime e depois é solto. A Cargill não quer ir para a prisão, quer deixar o seu porto aberto. Aqui está o grande problema.
Desde a chegada da Cargill, o que mudou?
De 1999, quando a Cargill chegou aqui, até hoje, os impactos ambientais vêm se avolumando. Na época, o processo aberto pelo Ministério Público Federal era em cima do porto, que não poderia ser construído sem o EIA-RIMA. Mesmo assim, a Cargill construiu à revelia, em 2003 o porto começou a funcionar e de lá para cá já exportou mais de 2 milhões de toneladas de soja por ele. Isso à revelia da lei e da Constituição. Pois bem, ainda estamos aguardando o julgamento da ação principal de 1999, que estava restrita ao porto. Agora, nós vamos apresentar novos fatos ao tribunal, porque hoje os impactos ambientais não estão mais restritos ao porto, ao local, já atingem toda área de influência da Cargill, que é onde se produz soja, até o Mato Grosso, que é de onde vem a soja. 95% da soja da multinacional no porto provém de Mato Grosso. Ou seja, Santarém até agora é 5%, o que parece mínimo. No entanto, para nossa região de floresta, é um impacto tremendo. Só neste ano, são 17 mil hectares plantados, que serão colhidos daqui há pouco.
E as ameaças de morte feitas contra a presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém, Maria Ivete Bastos?
Quando um grileiro que tem capangas, e dos mais perigosos, começou a ameaçar a Ivete, a questão ganhou maior repercussão. Ele já foi preso, solto, mas não fica preso. O procurador Felício Pontes cunhou uma expressão para os conflitos mais ao sul, falando de um consórcio da morte, a partir do assassinato da irmã Dorothy. O que eu sinto é que os sojeiros estão acuados com esta crise da Cargill e aí está o perigo, porque se o cidadão não tem o mínimo de civilidade e se vê acuado, fica como cachorro, morde o dono. São perigosos.
Dois IDHs no Brasil
Dos 186 milhões de habitantes de nosso país, mais de 80 milhões se auto-reconhecem como afro-brasileiros. No entanto, os indicadores da desigualdade são claros na cozinha e em todos os setores.
Em geral, os profissionais negros recebem 51% a menos do que os colegas brancos do país. Isso faz com que o país tenha dois Índices de Desenvolvimento Humano (IDH). Um para a população branca, com o número 44 no ranking entre 177 países. E outra para os negros, bem distantes, com o número 105 de IDH.
De acordo com o Atlas Racial Brasileiro, 65% por cento dos pobres e 70% dos indigentes no Brasil são negros. A proporção dos que ganham menos de um dólar por dia, isto é, vivem abaixo da linha de pobreza, no total da população negra no Brasil, é de 50%.
No conjunto da população branca, essa proporção é de 25%. Esses dados, divulgados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), mantêm-se inalterados há mais de dez anos.
Pátria em fuga
Por que, no fim do século XIX, tantos vênetos partiram rumo ao Brasil? Um livro esmiúça as razões do êxodo
por Ana Paula Sousa
Iremos para a América/ No tal belo Brasil/ E aqui os nossos senhores/ Trabalharão a terra com a pá, cantarolavam, num sonho melódico, os camponeses de Treviso. Não eram sons jogados ao léu. Eram ecos de tempos difíceis. Trilha sonora de uma fuga em massa que reverberou no Brasil, o canto vêneto resume, a seu modo, a história dos camponeses italianos que aqui vieram carpir. Que aqui vieram fare l’America.
Se a chegada desses milhares de homens é com freqüência tratada em livros, filmes ou relatos de descendentes, menos esmiuçadas são as razões da partida. Por que tanta gente trancou para sempre as portas de suas casas? Por que, entre 1871 e 1901, emigraram da Itália quase 6 milhões de cidadãos? E por que eram, sobretudo, do Vêneto os viajantes que desembarcaram no Brasil nesse período?
São as respostas a essas perguntas que nos oferece o pesquisador Emilio Franzina, professor de História Contemporânea na Universidade de Verona, em A Grande Emigração – o êxodo dos italianos do Vêneto para o Brasil, que, finalmente, ganha uma edição em português. Clássico dos estudos sobre imigração, escrito em 1976, o livro foi publicado pela Editora Unicamp e, apesar do atraso, mantém-se novinho em folha.
Franzina procura incluir o fenômeno num certo quadro de desenvolvimento do capitalismo e rompe com a idéia de que a emigração explica-se por si, de que existiu porque tinha de existir. Revelador do “fascínio exercido pelo mito da América como terra prometida”, o êxodo é também um termômetro da miséria nos campos de uma Itália recém-unificada. O Vêneto, norte do país, estivera sob domínio austríaco até 1866 e terminou o século XIX cambaleante.
Ficando aqui não comemos não, por Deus/ Será preciso também dar esse grande passo/ Se no inverno tivermos gelo/ Pobres de nós, será uma tragédia!, escreveu o poeta socialista Berto Barbarani, em “Eles vão para a Mérica”. Carregados de fardos/ Depois de ter falado mal de todos os senhores/ Depois de ter bebido três ou quatro copos/ Com a cabeça confusa, embriagada/ Apóiam-se uns aos outros e, cambaleando, vão pela estrada. Vão pelo oceano.
“Quando saíam da Europa, os camponeses, que normalmente não eram donos de terra e eram pobres, iam embora pensando que o Brasil seria o país do futuro, como dizia Stefan Zweig, o país da esperança”, afirma Franzina. “Mas o mito americano espalhou-se de tal forma que as redes e cadeias emigratórias incluíam também pequenos proprietários. Alguns partiam cantando músicas que faziam graça dos senhores, dos poderosos.”
A história dessa imigração é, também, o relato de uma luta silenciosa de classes. Recoberto pela pátina do tempo, o fenômeno dá um semblante heróico aos homens que aqui chegaram. Mas que história é essa que eles escreveram? Quem contracenava com eles nesse enredo do exílio? “Os jornais antiemigrantistas falavam em ‘incitadores’ e ‘trambiqueiros’ profissionais, mas havia um verdadeiro exército de intermediários”, conta o professor. “Em muitos lugares, eram os prefeitos, padres, secretários municipais e professores de escolas primárias que desempenhavam a função de agentes da emigração.”
Luigi Biondi, um dos tradutores do livro e professor de História Contemporânea da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), define como política de governo o que ali se passou. “Havia um excesso populacional nessa região e o governo tentou esvaziá-la um pouco”, diz Biondi, ele também imigrante, mas de feições novas. Formado na Universidade de Roma La Sapienza, chegou ao Brasil para fazer doutorado sobre imigração na Unicamp e por aqui ficou.
Por trás do desejo governamental de estimular a população a seguir para uma espécie de exílio voluntário, oculta-se também o medo da massa. Da mobilização. “À medida que expulsam essas pessoas, eles evitam lutas trabalhistas e a organização nos campos”, observa a historiadora Zuleika Alvim, autora de Brava Gente! (grande sucesso nos anos 80, hoje esgotado), que traslada a história de Franzina para o lado de cá do oceano.
O agenciamento de italianos seguia dois modelos principais: o de agricultores recrutados na própria Europa, chamado de “povoamento”, que trouxe gente especialmente para o sul do País, e o “econômico”, com assalariados rurais que vinham com a viagem paga por fazendeiros paulistas, carentes de mão-de-obra após a Abolição da escravatura.
“De 1887 a 1901, a emigração envolveu, em maior número, os habitantes rurais e, às vezes, certos grupos de artesãos e operários das cidades. Foi essa segunda fase que levou a São Paulo dezenas de milhares de vênetos que tinham a viagem paga pelos novos patrões de além-mar, os cafeicultores”, explica Franzina.
A ligação entre os “estímulos atrativos” no destino e os “estímulos expulsores” fica clara em uma série de dados reunidos em A Grande Emigração. Anos de má colheita, como 1878, têm registros estatísticos que mostram a elevação do fluxo migratório em quase todo o Vêneto. Em 1886, por exemplo, uma epidemia de cólera despovoa quase por inteiro a área do Montello (no Treviso). A servir de consolo aos camponeses, a miragem: Para mim basta conseguir sobreviver este ano. Se depois tudo der errado, não me importo, vou já para a América, pregavam.
O mal-estar nos campos, tornado “miséria endêmica”, serve de base para a correlação entre “as condições da agricultura, o crescimento do fenômeno migratório e as primeiras tentativas de constituir na Itália uma base industrial”, estabelecida por Franzina. “A emigração, como já observava (o pensador italiano Antonio) Gramsci, representa um problema não resolvido na vida econômica e social da Itália, apresentando-se como uma constante de um modelo de desenvolvimento.”
Os pesquisadores esclarecem ainda que muitos banqueiros italianos esticaram os olhos sobre as remessas que os emigrantes enviavam para a terra natal, fosse para ajudar familiares, fosse para pagar dívidas. “Há também um grande interesse das companhias de navegação que, muitas vezes, eram ligadas aos bancos e fizeram fortunas”, pontua Zuleika.
Para enxergar a face econômica do fenômeno é preciso ter em mente a crise da economia agrícola européia, entre 1850 e 1870. Se muitos europeus, e mesmo italianos do Sul (abaixo do Lazio), rumam para os Estados Unidos, os italianos do Norte embarcam em navios que aportariam no Brasil, no Uruguai e na Argentina.
Antes de partir, os camponeses vênetos vendiam os animais, os móveis da casa e, se tivessem um pedaço de terra, transformavam-no em dinheiro. “Isso explica como, ao contrário dos italianos do Sul, os emigrantes vênetos, principalmente beluneses e trevisanos, levavam consigo algumas somas modestas. A emigração, para eles, torna-se libertação. A libertação da necessidade e, se não do trabalho, ao menos da exploração”, anota Franzina. Era a América o novo Eldorado, a possibilidade de uma vida de menos privações em “terras livres para serem cultivadas”.
Mas a hora da chegada soava grave. Ambígua. Havia “a dolorosa e brusca separação da terra natal, as viagens animalescas por mar, a exploração reencontrada nas terras de imigração”, como descreve Franzina. E havia a adaptação. E, depois, o enterro das lembranças, pois, como escreve Thomas Mann em A Montanha Mágica, “tal qual o tempo, o espaço gera o esquecimento, desligando o indivíduo das suas relações”.
Apartados da terra natal, eles tentaram, a princípio, reerguer aqui o mundo tornado memória. “Cada grupo teve uma diferente forma de adaptação, decorrente de sua história anterior, dos hábitos que trouxeram”, diz Zuleika. “Para os vênetos, a terra era algo extremamente importante e, aqui no Brasil, eles tentavam reproduzir o ambiente que tinham deixado para trás. Eles chegam ao Brasil com o sonho da pequena propriedade, tanto que trazem a família toda, não vêm como aventureiros solitários.”
Zuleika explica que o trabalho familiar permitia ao fazendeiro maior exploração sobre a mão-de-obra, uma vez que pagavam salários por tarefas e não por indivíduos. “Como eles mantinham as próprias hortas, mesmo com uma produção minúscula, os fazendeiros também não tinham de se preocupar em alimentá-los. É uma história de exploração”, define.
A lida dura nas fazendas, o dinheiro escasso e o isolamento fizeram com que muitos imigrantes abrissem atalhos entre matagais e barrancos e partissem para a cidade. Os avós de Zuleika, vindos de Abruzzi (no sul), fugiram da fazenda no interior paulista, quando um filho morreu. “Eles queriam enterrar a criança conforme suas tradições, mas não conseguiam. Tiveram de andar dias e dias para achar um caixão”, conta. Acabaram mudando para a capital e se instalaram no bairro do Cambuci. O avô tornou-se motorneiro. A avó, costureira.
“As lutas internas nas fazendas são pela sobrevivência e não deixam de abalar o sistema cafeicultor. Não se pode pensar que a única luta válida é a luta de classes”, observa Zuleika, na contramão das teses que tendem a encaixar os vênetos numa moldura de “docilidade, mansidão e paciência”, desvinculados das lutas empreendidas por outros italianos.
“Como eles escolheram a imigração e não os movimentos de resistência camponesa, eram vistos como menos lutadores na Itália”, confirma Biondi. “Mas é incorreto achar que fossem avessos à organização.” O professor lembra que vários vênetos estiveram envolvidos na primeira grande greve geral nos campos brasileiros, ocorrida em 1913, na região de Ribeirão Preto, interior de São Paulo.
“Muitas lideranças foram expulsas do País. Eles conseguiram umas poucas melhorias, mas o principal resultado foi a repressão violenta. Eles recebiam um carimbo vermelho, de grevistas, nas carteiras de identificação e não conseguiam mais emprego”, relata Biondi. Eram vênetos os antepassados de João Pedro Stedile, dirigente do Movimento dos Sem Terra (MST).
“A família de meu avô veio da região trentina, fronteira com a Áustria, em 1899, e a família da minha mãe é da região mais próxima a Veneza”, conta Stedile. “O dialeto vêneto foi o primeiro idioma que aprendi, com minha mãe e minha avó, no interior do Rio Grande do Sul.”
Há sete anos, um Stedile que trabalhava em Trento descobriu o Stedile do MST e o prefeito da minúscula cidade de onde saiu seu avô, Terragnolo, decidiu homenageá-lo. “Ele me convidou para ir até lá. Fizeram uma festa, chamaram uma banda, me deram uma medalha da cidade... Coisa de italiano com saudades.”
Biondi conta que nasceram também em casas vênetas, em fazendas no interior de São Paulo, Candido Portinari, que pintou a família em Baile na Roça (1923-1924), o sambista Adoniran Barbosa, o músico Mario Zan e mais um punhado de gente com sobrenomes como Trevisan, Furlan, Bortoletto, Meneghello, Chinaglia e Casagrande.
Se o grande Adoniran foi para o Brás para fazer o “Samba do Arnesto”, onde nóis fumo e nun encontremo ninguém, muitos dos que se instalaram no bairro ajudaram a fundar o movimento operário. “A Sociedade Vêneta San Marco foi um dos centros de agregação socialista. Em São Paulo foram publicados muitos jornais em italiano de tendência anarquista e socialista, como o Avanti, lançado em 1900”, diz Biondi.
O mesmo não se pode dizer dos italianos que partiram para o Sul do País. “Estou convencido de que nas zonas de colonização do Sul formou-se um grupo que apoiava o fascismo. Em Santa Catarina ou no Rio Grande do Sul, a matriz camponesa era diferente, pois os imigrantes eram donos da terra”, diz Franzina.
Calcula-se que a imigração italiana para o Rio Grande do Sul tenha sido entre 80 mil e 100 mil pessoas, mais de metade vênetos. Eles não foram para fazendas, mas para colônias imperiais, como as de Caxias do Sul, ou a colônia Garibaldi, formadas em 1875.
“A principal marca dos italianos do Sul era o orgulho de ser proprietário”, afirma o frei Rovívio Costa, um dos principais conhecedores da imigração nesta ponta do Brasil. “Nas cartas e relatos, eles diziam: ‘Na Itália, éramos empregados, aqui somos patrões de nós mesmos’. Falavam também na fome substituída pela mesa farta e diziam: ‘Aqui, se eu planto uma parreira, essa parreira é minha’”.
São comunidades moldadas também pelo forte catolicismo. Até hoje, não faltam na região das colônias o sinal-da-cruz e o nome-do-padre. “Até os anos 50, se viesse uma tempestade, o colono dizia que isso tinha acontecido porque alguém havia blasfemado muito”, conta o frei, cuja família saiu da Lombardia, em 1888.
Nas colônias do Sul fala-se, até hoje, o talian, dialeto que mistura o idioma do Vêneto com o português. “Nós já fizemos até cartilha e dicionário de talian”, diz, orgulhoso. “Os imigrantes daqui não cantam louvores à pátria que, por não ter comida, os expulsou. Que idéia sobrou? A de que é um país bonito e sagrado, por ser o país do papa.”
As diferenças entre São Paulo e o Rio Grande do Sul são exemplares dos matizes de uma imigração que, por vezes, é vista como uniforme. Foram muitas as Itálias que embarcaram nos navios do fim do século XIX e início do XX. “Ainda fala-se muita bobagem sobre os imigrantes”, lamenta Franzina. “Uma novela como Terra Nostra só piora isso. Eles colocavam camponeses do norte cantando cantigas napolitanas (do sul). As roupas retratadas em São Paulo, por exemplo, eram roupas que só os imigrantes do sul usavam.”
O professor Michael Hall, da Unicamp, norte-americano que estudava a imigração italiana nos EUA, mas há duas décadas vive no Brasil, observa que, apesar das diferenças profundas, alguns brasileiros chegam a associar os imigrantes daqui aos sicilianos de O Poderoso Chefão. “Nos Estados Unidos, não há imigração italiana, antes de 1900, ou seja, é uma geração depois da que chegou ao Brasil. Aqui, em sua primeira fase, foi agrícola. Lá, foram para as cidades. Aqui, também sofreram menos discriminação e a língua é mais parecida”, define Hall.
Não que aqui tenham sido só flores. Zuleika conta que alguns camponeses chegaram a enlouquecer. Brás, Mooca ou Bexiga (bairro de calabreses, campanos e de alguns puglieses) eram, muitas vezes, refúgio dos que não suportavam a vida no campo. Não custa lembrar também de uma alcunha como “carcamano”, nascida dos comentários sobre os açougueiros italianos que, ao pesar a carne, colocariam a mão na balança para ganhar uns gramas.
Ainda assim, foi nos EUA, e não aqui, que a máfia vingou. “Há uma grande discussão a esse respeito. Creio que seja uma combinação de experiências anteriores com a falta de acesso a outras oportunidades nos Estados Unidos. Aqui, os italianos encontraram caminhos para crescer e não se isolaram, de forma até secreta, como lá”, diz Hall. Que o digam os impérios erguidos pelas família Matarazzo, Crespi, Lunardelli e tantas outras.
Se as histórias de sucesso são várias, não apenas nos negócios, mas muito também na arte, com homens como Franco Zampari (TBC e Vera Cruz), Pietro Maria Bardi (Masp) ou Ciccillo Matarazzo (Bienal de São Paulo), foram anônimos quase todos os emigrantes. Privados de bens materiais, ele são, freqüentemente, privados também da história. Da identidade. É essa “brava gente” que A Grande Emigração recompõe.
Terra do Papa e da tarantela
“Para o Brasil, a Itália é um país homogêneo”, diz historiador
CartaCapital: Por que só agora o livro foi traduzido para o português? Emilio Franzina: Existe o problema do relacionamento entre as culturas italiana e brasileira. O Brasil olha mais para a França e para os Estados Unidos. A Itália é, no máximo, vista como o país do papa. A tradução havia sido proposta pelo professor Michael Hall no início dos anos 80, mas só agora saiu. Acredito que hoje exista uma sensibilidade maior nos ambientes intelectuais ao fenômeno das imigrações, até porque há uma imigração brasileira nos Estados Unidos e na Europa. Passa, portanto, a ser mais importante o conhecimento desse fenômeno. E não podemos esquecer que a presença de italianos em alguns estados brasileiros, como São Paulo, é imensa.
CC: Apesar disso, é grande a falta de conhecimento sobre a Itália. Existem muito mais descendentes de italianos do que de franceses aqui no Brasil, mas mais gente fala francês... EF: A imigração é geralmente composta de gente pobre, camponeses e trabalhadores, pessoas que não recebem honrarias na imprensa nem circulam pela alta cultura. A cultura francesa exerce maior fascínio sobre as classes altas brasileiras, que durante muito tempo colocaram Paris no coração da sua formação intelectual. Depois dos anos 60, a partir da ditadura militar, a cultura brasileira se volta para os Estados Unidos como ponto de referência. Por isso, a Itália permaneceu periférica por muito tempo.
CC: Mas hoje é grande a quantidade de estudos sobre a imigração italiana?EF: Os estudos sobre a imigração européia tornaram-se muito numerosos nos últimos 20 ou 30 anos. Quando escrevi o livro, não existia uma produção tão rica como a de agora. Hoje, em toda universidade brasileira, não somente na USP, na Unicamp ou nas grandes universidades federais, mas também nas pequenas universidades em zonas que tiveram a presença européia no Sul, têm teses sobre o assunto. Isso sem falar nas obras de literatura e de memória. São centenas de livros de diletantes, descendentes dos imigrantes, que tentam contar a história dos antepassados. São livros muito modestos, que, do ponto de vista científico, não possuem relevância. Mas, do ponto de vista cultural, são uma indicação desse interesse que continua a existir.
CC: Mas ainda se vê a imigração em bloco? EF: A confusão entre as diferentes regiões se assemelha à que existe na Europa entre aqueles que, fazendo turismo, estiveram em Natal ou na Bahia e não conseguem distinguir um local do outro. Vista do Brasil, a Itália é um país homogêneo onde está o papa e onde se tocam aquelas músicas napolitanas. E também se joga futebol.
Sinal dos temposIgreja voltada aos italianos hoje se dedica a latino-americanos e africanos
Dentre as muitas igrejas ligadas à comunidade italiana existentes em São Paulo, uma é especialmente importante quando se fala de imigração: a Nossa Senhora da Paz, no Glicério, pedaço degradado da região central da cidade. Inaugurado no início dos anos 40, o lindo templo (“Enclave de beleza”, CartaCapital Ed. 388) pertence à Congregação dos Scalabrinistas, destinada a cuidar dos imigrantes. E jamais se desviou da vocação inicial.
A história da congregação remonta a 1880. “No fim do século XIX, nossos padres já atendiam os órfãos urbanos e iam aos cafezais fazer batizados”, conta o padre Lírio Berwanger, responsável pela paróquia. Não foi o acaso que pôs a igreja no Glicério. É que ali na região tinha sido inaugurada, em 1887, a Hospedaria do Imigrante, destino de todos os que desembarcavam dos navios.
Se muitos partiam dali para as fazendas, outros tantos se espalhavam pelo Brás, Mooca, Cambuci e Glicério. “Os padres tinham de pensar nas pessoas que ocupavam essa região, que era a periferia dos italianos”, completa o padre Lírio. O tempo correu e, depois de muito tentar, a Ordem conseguiu, nos anos 70, erguer a própria Casa do Imigrante. Mas, a esta altura, os italianos já não precisavam de amparo.
“Esta igreja nasceu com os italianos, mas, à medida que eles foram se integrando, passamos a cuidar da nova imigração que chegava aqui”, diz o padre Mário Geremia, responsável pela Pastoral do Imigrante, que presta assessoria jurídica, espiritual e social com o apoio de 21 voluntários.
“A hospedaria, criada no fim do século XIX, era uma política de Estado. A partir dos anos 70, os imigrantes passam a chegar sozinhos e, mais do que isso, a imigração passa a ser um caso de Polícia Federal”, observa o padre Mário. Vieram primeiro os nordestinos, depois surgiram as ondas de vietnamitas, coreanos e, por fim, a dos latino-americanos. Recentemente, têm chegado também africanos em peso.
“Houve um tempo em que dávamos cursos profissionalizantes. Chegavam aqui homens do Nordeste que só sabiam trabalhar com a enxada e, em poucos dias, tentávamos prepará-los para a construção civil”, diz o padre Lírio. “Hoje, é mais difícil fazer um trabalho assim. A imigração também se globalizou. Chegam aqui pessoas com perfis totalmente diversos. Já tivemos africanos que falam sete idiomas, médicos etc. Mas eles não podem trabalhar porque não têm documentação.”
Entrar na Casa do Imigrante é encontrar um mundo estranhamente transitório. Tristemente apátrida. No almoço do sábado 27, era possível notar o desentendimento no olhar dos africanos que ouviam o padre Mário falar. E o desagrado dos bolivianos e peruanos diante do feijão-preto. “Vocês comem muito arroz e muito feijão, não?”, diz uma senhora, com o cenho franzido.
À comida, a boliviana Patrícia, de 27 anos, já se acostumou. Está há sete meses no Brasil e há cinco na Casa. É médica formada. Está falando português com fluência. Mas sente-se numa encruzilhada. “Vim para cá porque no meu país não temos oportunidades. Achei que aqui seria melhor. Mas está muito difícil. Mas também penso: voltar não é desistir sem ter tentado o bastante?” Pergunta de difícil resposta.
Patrícia não quis tirar foto. E pediu para ter o sobrenome preservado. “Não gostaria que você individualizasse o meu caso. Essa história que eu te contei não é só minha. É a de centenas de médicos bolivianos que estão aqui no seu país, muitos clandestinos.” Há ainda os bolivianos escravizados por coreanos, os tocadores de flauta, os que nem sabemos quem são.
Os latinos ao menos se comunicam. E os africanos? Isolados dos demais ocupantes da Casa – são cerca de 90 pessoas, ao todo –, eles falam francês ou inglês. E contam histórias difíceis de entender. Adama Sanogo, 32 anos, veio da Costa do Marfim há duas semanas. “Eu sou um rebelde no meu país. Eu fugi num barco que nem sabia para onde iria. E agora estou aqui no seu país”, diz, numa fala incessante, de quem tem palavras entaladas na garganta. “Se eu voltar para lá, sou assassinado. Meu país está em guerra. À noite, quando deito, lembro de lá e não consigo dormir. Eu tenho o medo dentro de mim. Agora estou aqui no seu país. É tudo o que eu sei.”
Quem chega à Casa foi, em geral, recomendado pelos consulados dos respectivos países. Em 2006, passaram por ali 580 imigrantes, 60% estrangeiros. “Quando chegam aqui é porque perderam toda a referência de comunidade, família e amigos. Procuramos manter neles a esperança, com uma comida boa e uma cama digna”, diz o padre Mário. “Antes, o imigrante era bem-vindo, era quase um herói que ajudaria a construir a pátria. Hoje, ele é visto como inimigo, como ameaça.” Mas, tal qual os italianos que fugiram do Vêneto, são apenas seres humanos em busca de um sonho que nem eles sabem qual é.
Ficando aqui não comemos não, por Deus/ Será preciso também dar esse grande passo/ Se no inverno tivermos gelo/ Pobres de nós, será uma tragédia!, escreveu o poeta socialista Berto Barbarani, em “Eles vão para a Mérica”. Carregados de fardos/ Depois de ter falado mal de todos os senhores/ Depois de ter bebido três ou quatro copos/ Com a cabeça confusa, embriagada/ Apóiam-se uns aos outros e, cambaleando, vão pela estrada. Vão pelo oceano.
“Quando saíam da Europa, os camponeses, que normalmente não eram donos de terra e eram pobres, iam embora pensando que o Brasil seria o país do futuro, como dizia Stefan Zweig, o país da esperança”, afirma Franzina. “Mas o mito americano espalhou-se de tal forma que as redes e cadeias emigratórias incluíam também pequenos proprietários. Alguns partiam cantando músicas que faziam graça dos senhores, dos poderosos.”
A história dessa imigração é, também, o relato de uma luta silenciosa de classes. Recoberto pela pátina do tempo, o fenômeno dá um semblante heróico aos homens que aqui chegaram. Mas que história é essa que eles escreveram? Quem contracenava com eles nesse enredo do exílio? “Os jornais antiemigrantistas falavam em ‘incitadores’ e ‘trambiqueiros’ profissionais, mas havia um verdadeiro exército de intermediários”, conta o professor. “Em muitos lugares, eram os prefeitos, padres, secretários municipais e professores de escolas primárias que desempenhavam a função de agentes da emigração.”
Luigi Biondi, um dos tradutores do livro e professor de História Contemporânea da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), define como política de governo o que ali se passou. “Havia um excesso populacional nessa região e o governo tentou esvaziá-la um pouco”, diz Biondi, ele também imigrante, mas de feições novas. Formado na Universidade de Roma La Sapienza, chegou ao Brasil para fazer doutorado sobre imigração na Unicamp e por aqui ficou.
Por trás do desejo governamental de estimular a população a seguir para uma espécie de exílio voluntário, oculta-se também o medo da massa. Da mobilização. “À medida que expulsam essas pessoas, eles evitam lutas trabalhistas e a organização nos campos”, observa a historiadora Zuleika Alvim, autora de Brava Gente! (grande sucesso nos anos 80, hoje esgotado), que traslada a história de Franzina para o lado de cá do oceano.
O agenciamento de italianos seguia dois modelos principais: o de agricultores recrutados na própria Europa, chamado de “povoamento”, que trouxe gente especialmente para o sul do País, e o “econômico”, com assalariados rurais que vinham com a viagem paga por fazendeiros paulistas, carentes de mão-de-obra após a Abolição da escravatura.
“De 1887 a 1901, a emigração envolveu, em maior número, os habitantes rurais e, às vezes, certos grupos de artesãos e operários das cidades. Foi essa segunda fase que levou a São Paulo dezenas de milhares de vênetos que tinham a viagem paga pelos novos patrões de além-mar, os cafeicultores”, explica Franzina.
A ligação entre os “estímulos atrativos” no destino e os “estímulos expulsores” fica clara em uma série de dados reunidos em A Grande Emigração. Anos de má colheita, como 1878, têm registros estatísticos que mostram a elevação do fluxo migratório em quase todo o Vêneto. Em 1886, por exemplo, uma epidemia de cólera despovoa quase por inteiro a área do Montello (no Treviso). A servir de consolo aos camponeses, a miragem: Para mim basta conseguir sobreviver este ano. Se depois tudo der errado, não me importo, vou já para a América, pregavam.
O mal-estar nos campos, tornado “miséria endêmica”, serve de base para a correlação entre “as condições da agricultura, o crescimento do fenômeno migratório e as primeiras tentativas de constituir na Itália uma base industrial”, estabelecida por Franzina. “A emigração, como já observava (o pensador italiano Antonio) Gramsci, representa um problema não resolvido na vida econômica e social da Itália, apresentando-se como uma constante de um modelo de desenvolvimento.”
Os pesquisadores esclarecem ainda que muitos banqueiros italianos esticaram os olhos sobre as remessas que os emigrantes enviavam para a terra natal, fosse para ajudar familiares, fosse para pagar dívidas. “Há também um grande interesse das companhias de navegação que, muitas vezes, eram ligadas aos bancos e fizeram fortunas”, pontua Zuleika.
Para enxergar a face econômica do fenômeno é preciso ter em mente a crise da economia agrícola européia, entre 1850 e 1870. Se muitos europeus, e mesmo italianos do Sul (abaixo do Lazio), rumam para os Estados Unidos, os italianos do Norte embarcam em navios que aportariam no Brasil, no Uruguai e na Argentina.
Antes de partir, os camponeses vênetos vendiam os animais, os móveis da casa e, se tivessem um pedaço de terra, transformavam-no em dinheiro. “Isso explica como, ao contrário dos italianos do Sul, os emigrantes vênetos, principalmente beluneses e trevisanos, levavam consigo algumas somas modestas. A emigração, para eles, torna-se libertação. A libertação da necessidade e, se não do trabalho, ao menos da exploração”, anota Franzina. Era a América o novo Eldorado, a possibilidade de uma vida de menos privações em “terras livres para serem cultivadas”.
Mas a hora da chegada soava grave. Ambígua. Havia “a dolorosa e brusca separação da terra natal, as viagens animalescas por mar, a exploração reencontrada nas terras de imigração”, como descreve Franzina. E havia a adaptação. E, depois, o enterro das lembranças, pois, como escreve Thomas Mann em A Montanha Mágica, “tal qual o tempo, o espaço gera o esquecimento, desligando o indivíduo das suas relações”.
Apartados da terra natal, eles tentaram, a princípio, reerguer aqui o mundo tornado memória. “Cada grupo teve uma diferente forma de adaptação, decorrente de sua história anterior, dos hábitos que trouxeram”, diz Zuleika. “Para os vênetos, a terra era algo extremamente importante e, aqui no Brasil, eles tentavam reproduzir o ambiente que tinham deixado para trás. Eles chegam ao Brasil com o sonho da pequena propriedade, tanto que trazem a família toda, não vêm como aventureiros solitários.”
Zuleika explica que o trabalho familiar permitia ao fazendeiro maior exploração sobre a mão-de-obra, uma vez que pagavam salários por tarefas e não por indivíduos. “Como eles mantinham as próprias hortas, mesmo com uma produção minúscula, os fazendeiros também não tinham de se preocupar em alimentá-los. É uma história de exploração”, define.
A lida dura nas fazendas, o dinheiro escasso e o isolamento fizeram com que muitos imigrantes abrissem atalhos entre matagais e barrancos e partissem para a cidade. Os avós de Zuleika, vindos de Abruzzi (no sul), fugiram da fazenda no interior paulista, quando um filho morreu. “Eles queriam enterrar a criança conforme suas tradições, mas não conseguiam. Tiveram de andar dias e dias para achar um caixão”, conta. Acabaram mudando para a capital e se instalaram no bairro do Cambuci. O avô tornou-se motorneiro. A avó, costureira.
“As lutas internas nas fazendas são pela sobrevivência e não deixam de abalar o sistema cafeicultor. Não se pode pensar que a única luta válida é a luta de classes”, observa Zuleika, na contramão das teses que tendem a encaixar os vênetos numa moldura de “docilidade, mansidão e paciência”, desvinculados das lutas empreendidas por outros italianos.
“Como eles escolheram a imigração e não os movimentos de resistência camponesa, eram vistos como menos lutadores na Itália”, confirma Biondi. “Mas é incorreto achar que fossem avessos à organização.” O professor lembra que vários vênetos estiveram envolvidos na primeira grande greve geral nos campos brasileiros, ocorrida em 1913, na região de Ribeirão Preto, interior de São Paulo.
“Muitas lideranças foram expulsas do País. Eles conseguiram umas poucas melhorias, mas o principal resultado foi a repressão violenta. Eles recebiam um carimbo vermelho, de grevistas, nas carteiras de identificação e não conseguiam mais emprego”, relata Biondi. Eram vênetos os antepassados de João Pedro Stedile, dirigente do Movimento dos Sem Terra (MST).
“A família de meu avô veio da região trentina, fronteira com a Áustria, em 1899, e a família da minha mãe é da região mais próxima a Veneza”, conta Stedile. “O dialeto vêneto foi o primeiro idioma que aprendi, com minha mãe e minha avó, no interior do Rio Grande do Sul.”
Há sete anos, um Stedile que trabalhava em Trento descobriu o Stedile do MST e o prefeito da minúscula cidade de onde saiu seu avô, Terragnolo, decidiu homenageá-lo. “Ele me convidou para ir até lá. Fizeram uma festa, chamaram uma banda, me deram uma medalha da cidade... Coisa de italiano com saudades.”
Biondi conta que nasceram também em casas vênetas, em fazendas no interior de São Paulo, Candido Portinari, que pintou a família em Baile na Roça (1923-1924), o sambista Adoniran Barbosa, o músico Mario Zan e mais um punhado de gente com sobrenomes como Trevisan, Furlan, Bortoletto, Meneghello, Chinaglia e Casagrande.
Se o grande Adoniran foi para o Brás para fazer o “Samba do Arnesto”, onde nóis fumo e nun encontremo ninguém, muitos dos que se instalaram no bairro ajudaram a fundar o movimento operário. “A Sociedade Vêneta San Marco foi um dos centros de agregação socialista. Em São Paulo foram publicados muitos jornais em italiano de tendência anarquista e socialista, como o Avanti, lançado em 1900”, diz Biondi.
O mesmo não se pode dizer dos italianos que partiram para o Sul do País. “Estou convencido de que nas zonas de colonização do Sul formou-se um grupo que apoiava o fascismo. Em Santa Catarina ou no Rio Grande do Sul, a matriz camponesa era diferente, pois os imigrantes eram donos da terra”, diz Franzina.
Calcula-se que a imigração italiana para o Rio Grande do Sul tenha sido entre 80 mil e 100 mil pessoas, mais de metade vênetos. Eles não foram para fazendas, mas para colônias imperiais, como as de Caxias do Sul, ou a colônia Garibaldi, formadas em 1875.
“A principal marca dos italianos do Sul era o orgulho de ser proprietário”, afirma o frei Rovívio Costa, um dos principais conhecedores da imigração nesta ponta do Brasil. “Nas cartas e relatos, eles diziam: ‘Na Itália, éramos empregados, aqui somos patrões de nós mesmos’. Falavam também na fome substituída pela mesa farta e diziam: ‘Aqui, se eu planto uma parreira, essa parreira é minha’”.
São comunidades moldadas também pelo forte catolicismo. Até hoje, não faltam na região das colônias o sinal-da-cruz e o nome-do-padre. “Até os anos 50, se viesse uma tempestade, o colono dizia que isso tinha acontecido porque alguém havia blasfemado muito”, conta o frei, cuja família saiu da Lombardia, em 1888.
Nas colônias do Sul fala-se, até hoje, o talian, dialeto que mistura o idioma do Vêneto com o português. “Nós já fizemos até cartilha e dicionário de talian”, diz, orgulhoso. “Os imigrantes daqui não cantam louvores à pátria que, por não ter comida, os expulsou. Que idéia sobrou? A de que é um país bonito e sagrado, por ser o país do papa.”
As diferenças entre São Paulo e o Rio Grande do Sul são exemplares dos matizes de uma imigração que, por vezes, é vista como uniforme. Foram muitas as Itálias que embarcaram nos navios do fim do século XIX e início do XX. “Ainda fala-se muita bobagem sobre os imigrantes”, lamenta Franzina. “Uma novela como Terra Nostra só piora isso. Eles colocavam camponeses do norte cantando cantigas napolitanas (do sul). As roupas retratadas em São Paulo, por exemplo, eram roupas que só os imigrantes do sul usavam.”
O professor Michael Hall, da Unicamp, norte-americano que estudava a imigração italiana nos EUA, mas há duas décadas vive no Brasil, observa que, apesar das diferenças profundas, alguns brasileiros chegam a associar os imigrantes daqui aos sicilianos de O Poderoso Chefão. “Nos Estados Unidos, não há imigração italiana, antes de 1900, ou seja, é uma geração depois da que chegou ao Brasil. Aqui, em sua primeira fase, foi agrícola. Lá, foram para as cidades. Aqui, também sofreram menos discriminação e a língua é mais parecida”, define Hall.
Não que aqui tenham sido só flores. Zuleika conta que alguns camponeses chegaram a enlouquecer. Brás, Mooca ou Bexiga (bairro de calabreses, campanos e de alguns puglieses) eram, muitas vezes, refúgio dos que não suportavam a vida no campo. Não custa lembrar também de uma alcunha como “carcamano”, nascida dos comentários sobre os açougueiros italianos que, ao pesar a carne, colocariam a mão na balança para ganhar uns gramas.
Ainda assim, foi nos EUA, e não aqui, que a máfia vingou. “Há uma grande discussão a esse respeito. Creio que seja uma combinação de experiências anteriores com a falta de acesso a outras oportunidades nos Estados Unidos. Aqui, os italianos encontraram caminhos para crescer e não se isolaram, de forma até secreta, como lá”, diz Hall. Que o digam os impérios erguidos pelas família Matarazzo, Crespi, Lunardelli e tantas outras.
Se as histórias de sucesso são várias, não apenas nos negócios, mas muito também na arte, com homens como Franco Zampari (TBC e Vera Cruz), Pietro Maria Bardi (Masp) ou Ciccillo Matarazzo (Bienal de São Paulo), foram anônimos quase todos os emigrantes. Privados de bens materiais, ele são, freqüentemente, privados também da história. Da identidade. É essa “brava gente” que A Grande Emigração recompõe.
Terra do Papa e da tarantela
“Para o Brasil, a Itália é um país homogêneo”, diz historiador
CartaCapital: Por que só agora o livro foi traduzido para o português? Emilio Franzina: Existe o problema do relacionamento entre as culturas italiana e brasileira. O Brasil olha mais para a França e para os Estados Unidos. A Itália é, no máximo, vista como o país do papa. A tradução havia sido proposta pelo professor Michael Hall no início dos anos 80, mas só agora saiu. Acredito que hoje exista uma sensibilidade maior nos ambientes intelectuais ao fenômeno das imigrações, até porque há uma imigração brasileira nos Estados Unidos e na Europa. Passa, portanto, a ser mais importante o conhecimento desse fenômeno. E não podemos esquecer que a presença de italianos em alguns estados brasileiros, como São Paulo, é imensa.
CC: Apesar disso, é grande a falta de conhecimento sobre a Itália. Existem muito mais descendentes de italianos do que de franceses aqui no Brasil, mas mais gente fala francês... EF: A imigração é geralmente composta de gente pobre, camponeses e trabalhadores, pessoas que não recebem honrarias na imprensa nem circulam pela alta cultura. A cultura francesa exerce maior fascínio sobre as classes altas brasileiras, que durante muito tempo colocaram Paris no coração da sua formação intelectual. Depois dos anos 60, a partir da ditadura militar, a cultura brasileira se volta para os Estados Unidos como ponto de referência. Por isso, a Itália permaneceu periférica por muito tempo.
CC: Mas hoje é grande a quantidade de estudos sobre a imigração italiana?EF: Os estudos sobre a imigração européia tornaram-se muito numerosos nos últimos 20 ou 30 anos. Quando escrevi o livro, não existia uma produção tão rica como a de agora. Hoje, em toda universidade brasileira, não somente na USP, na Unicamp ou nas grandes universidades federais, mas também nas pequenas universidades em zonas que tiveram a presença européia no Sul, têm teses sobre o assunto. Isso sem falar nas obras de literatura e de memória. São centenas de livros de diletantes, descendentes dos imigrantes, que tentam contar a história dos antepassados. São livros muito modestos, que, do ponto de vista científico, não possuem relevância. Mas, do ponto de vista cultural, são uma indicação desse interesse que continua a existir.
CC: Mas ainda se vê a imigração em bloco? EF: A confusão entre as diferentes regiões se assemelha à que existe na Europa entre aqueles que, fazendo turismo, estiveram em Natal ou na Bahia e não conseguem distinguir um local do outro. Vista do Brasil, a Itália é um país homogêneo onde está o papa e onde se tocam aquelas músicas napolitanas. E também se joga futebol.
Sinal dos temposIgreja voltada aos italianos hoje se dedica a latino-americanos e africanos
Dentre as muitas igrejas ligadas à comunidade italiana existentes em São Paulo, uma é especialmente importante quando se fala de imigração: a Nossa Senhora da Paz, no Glicério, pedaço degradado da região central da cidade. Inaugurado no início dos anos 40, o lindo templo (“Enclave de beleza”, CartaCapital Ed. 388) pertence à Congregação dos Scalabrinistas, destinada a cuidar dos imigrantes. E jamais se desviou da vocação inicial.
A história da congregação remonta a 1880. “No fim do século XIX, nossos padres já atendiam os órfãos urbanos e iam aos cafezais fazer batizados”, conta o padre Lírio Berwanger, responsável pela paróquia. Não foi o acaso que pôs a igreja no Glicério. É que ali na região tinha sido inaugurada, em 1887, a Hospedaria do Imigrante, destino de todos os que desembarcavam dos navios.
Se muitos partiam dali para as fazendas, outros tantos se espalhavam pelo Brás, Mooca, Cambuci e Glicério. “Os padres tinham de pensar nas pessoas que ocupavam essa região, que era a periferia dos italianos”, completa o padre Lírio. O tempo correu e, depois de muito tentar, a Ordem conseguiu, nos anos 70, erguer a própria Casa do Imigrante. Mas, a esta altura, os italianos já não precisavam de amparo.
“Esta igreja nasceu com os italianos, mas, à medida que eles foram se integrando, passamos a cuidar da nova imigração que chegava aqui”, diz o padre Mário Geremia, responsável pela Pastoral do Imigrante, que presta assessoria jurídica, espiritual e social com o apoio de 21 voluntários.
“A hospedaria, criada no fim do século XIX, era uma política de Estado. A partir dos anos 70, os imigrantes passam a chegar sozinhos e, mais do que isso, a imigração passa a ser um caso de Polícia Federal”, observa o padre Mário. Vieram primeiro os nordestinos, depois surgiram as ondas de vietnamitas, coreanos e, por fim, a dos latino-americanos. Recentemente, têm chegado também africanos em peso.
“Houve um tempo em que dávamos cursos profissionalizantes. Chegavam aqui homens do Nordeste que só sabiam trabalhar com a enxada e, em poucos dias, tentávamos prepará-los para a construção civil”, diz o padre Lírio. “Hoje, é mais difícil fazer um trabalho assim. A imigração também se globalizou. Chegam aqui pessoas com perfis totalmente diversos. Já tivemos africanos que falam sete idiomas, médicos etc. Mas eles não podem trabalhar porque não têm documentação.”
Entrar na Casa do Imigrante é encontrar um mundo estranhamente transitório. Tristemente apátrida. No almoço do sábado 27, era possível notar o desentendimento no olhar dos africanos que ouviam o padre Mário falar. E o desagrado dos bolivianos e peruanos diante do feijão-preto. “Vocês comem muito arroz e muito feijão, não?”, diz uma senhora, com o cenho franzido.
À comida, a boliviana Patrícia, de 27 anos, já se acostumou. Está há sete meses no Brasil e há cinco na Casa. É médica formada. Está falando português com fluência. Mas sente-se numa encruzilhada. “Vim para cá porque no meu país não temos oportunidades. Achei que aqui seria melhor. Mas está muito difícil. Mas também penso: voltar não é desistir sem ter tentado o bastante?” Pergunta de difícil resposta.
Patrícia não quis tirar foto. E pediu para ter o sobrenome preservado. “Não gostaria que você individualizasse o meu caso. Essa história que eu te contei não é só minha. É a de centenas de médicos bolivianos que estão aqui no seu país, muitos clandestinos.” Há ainda os bolivianos escravizados por coreanos, os tocadores de flauta, os que nem sabemos quem são.
Os latinos ao menos se comunicam. E os africanos? Isolados dos demais ocupantes da Casa – são cerca de 90 pessoas, ao todo –, eles falam francês ou inglês. E contam histórias difíceis de entender. Adama Sanogo, 32 anos, veio da Costa do Marfim há duas semanas. “Eu sou um rebelde no meu país. Eu fugi num barco que nem sabia para onde iria. E agora estou aqui no seu país”, diz, numa fala incessante, de quem tem palavras entaladas na garganta. “Se eu voltar para lá, sou assassinado. Meu país está em guerra. À noite, quando deito, lembro de lá e não consigo dormir. Eu tenho o medo dentro de mim. Agora estou aqui no seu país. É tudo o que eu sei.”
Quem chega à Casa foi, em geral, recomendado pelos consulados dos respectivos países. Em 2006, passaram por ali 580 imigrantes, 60% estrangeiros. “Quando chegam aqui é porque perderam toda a referência de comunidade, família e amigos. Procuramos manter neles a esperança, com uma comida boa e uma cama digna”, diz o padre Mário. “Antes, o imigrante era bem-vindo, era quase um herói que ajudaria a construir a pátria. Hoje, ele é visto como inimigo, como ameaça.” Mas, tal qual os italianos que fugiram do Vêneto, são apenas seres humanos em busca de um sonho que nem eles sabem qual é.
quarta-feira, maio 09, 2007
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