sexta-feira, novembro 10, 2006

UM NOCAUTE TÉCNICO


Os eleitores surraram republicanos em geral e neoconservadores em especial

Por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa




Gerald Herbert/AP
Men in black.
Gates, da CIA (à frente), toma o lugar de Rumsfeld, forçado a renunciar à Defesa
O poder do Congresso dos EUA é real se quiser exercê-lo. Raramente o fez desde que os republicanos, em 2001, assumiram o controle do Executivo e das duas casas do Legislativo ao mesmo tempo. Mesmo em maioria, o Partido Democrata dá espaço a debate, pois suas correntes sindicais, liberais e conservadoras divergem tanto entre si quanto as dos republicanos e raramente concordam quanto a uma política coerente. O Partido Republicano é mais homogêneo e não tem dificuldades em cerrar fileiras em torno dos interesses das grandes empresas.

Resultado: o poderoso Capitólio fez lembrar o Congresso do México dos anos de hegemonia do PRI ou do Brasil do general Médici – um cartório de luxo para ratificar atos do Executivo. Como apontou a revista The Economist, essa legislatura abriu mão de fiscalizar e questionar os desmandos do governo no Iraque e em Guantánamo e a transformação do superávit fiscal de mais de 200 bilhões de dólares em um déficit equivalente. O número de sessões foi o menor em 60 anos. Pacotes decisivos foram aprovados em madrugadas sonolentas. As emendas clientelistas ao Orçamento decuplicaram, incluindo 223 milhões de dólares para uma famosa ponte que atenderá uma ilha de 50 moradores no Alasca.

Embora o rosto de Bush júnior tenha aparecido bem mais na propaganda democrata que na republicana, as intenções de voto oscilaram bastante no final da campanha. Uma vantagem democrata de 10% a 15% das intenções de voto pareceu se firmar em março, depois da destruição da mesquita xiita de Samarra, e iniciar um ciclo de violência inaudita no Iraque. Mas, em agosto, os preços dos combustíveis caíram e as bolsas subiram, após o aparente relaxamento das tensões com o Irã, e essa margem recuou para um empate técnico que indicaria a manutenção da maioria republicana, ainda que reduzida.

Entre setembro e outubro, o caos piorou em Bagdá e – talvez mais decisivo – um deputado republicano tido como paladino da luta contra a pedofilia, Mark Foley, confessou assédio sexual a menores. A vantagem dos democratas saltou para mais de 20% e indicou vitória arrasadora nas duas casas do Congresso.

As últimas pesquisas, porém, sinalizavam recuperação dos republicanos, que no grande dia voltaram a alimentar a esperança de manter a maioria. A última pesquisa Gallup, fechada na antevéspera da eleição, 5 de novembro, dava aos democratas uma vantagem de 11% entre eleitores registrados, reduzida a 8% entre eleitores regulares (que costumam realmente votar) e 7% entre eleitores prováveis (que declararam a intenção de ir às urnas).

Nesse mesmo dia, Bush júnior jogou seu último trunfo: a condenação de Saddam Hussein à morte (texto abaixo). Mas o impacto da condenação do ex-ditador não foi o esperado.

O Congresso deixou de ser republicano, mas não quer dizer que tenha se tornado liberal e pacifista. O Partido Democrata, predominantemente neoliberal já nos anos Clinton, inclinou-se ainda mais à direita nos anos de Bush júnior para tentar atrair os eleitores republicanos, especialmente nesta eleição.

A grande maioria dos congressistas democratas, inclusive todos os senadores, aprovou a invasão do Iraque e o fiel da balança no Senado deverá ser Lieberman, o democrata que a apoiou com mais entusiasmo. Hoje, a maioria dos democratas inclina-se a uma retirada gradual. Também os republicanos já se movem nessa direção.

Não se deve esperar uma guinada brusca, mas o novo Congresso pode ser mais amigável para com as demandas populares, sindicais e ambientalistas e menos complacente para com a Casa Branca. Deve ser mais crítico em relação a iniciativas bélicas, às ameaças aos direitos civis e às violações de leis internacionais. Pode olhar as contas públicas com mais atenção e talvez reverter a atual tendência de deixar a previdência social e o sistema de saúde serem silenciosamente erodidos pelo déficit, levando a questão a debate público. Deve também tomar uma atitude mais positiva em relação à prevenção do aquecimento global – até porque muitos republicanos, como Arnold Schwarzenegger, já defendem e aprovam iniciativas nesse sentido.

É menos claro se haverá mudanças quanto à migração – a hostilidade aos imigrantes latinos é mais generalizada entre republicanos, mas muitos democratas assumem a mesma atitude. Certo é que permanecerá o apoio incondicional a Israel: os democratas dependem tanto do lobby sionista quanto os republicanos, ou mais, e o número de judeus no Congresso é recorde: 13 senadores e pelo menos 30 deputados. Também foi eleito o primeiro deputado muçulmano – o negro Keith Ellison, convertido na juventude –, mas isso não equilibra o jogo.

No campo do comércio exterior, o Brasil tem menos a recear: a maior oposição à renovação do Sistema Geral de Preferências que beneficia alguns de seus produtos vinha de republicanos dispostos a retaliar a oposição brasileira (e indiana) às propostas dos EUA na OMC. Mas, em geral, o protecionismo aumentará: para aprovar acordos de livre-comércio, os democratas devem exigir padrões trabalhistas e ambientais além da capacidade dos países periféricos.

Os acordos de livre-comércio pendentes – como os do Peru, da Colômbia e do Equador – estarão em risco se não forem ratificados até o fim do ano. O fast track, a autorização à Casa Branca para negociar acordos sem sujeitá-los à revisão item por item, dificilmente será renovado em julho de 2007. Será o último prego no caixão da Rodada de Doha, da OMC. Apesar de isso afastar as já reduzidas expectativas de abertura dos EUA a produtos agrícolas brasileiros, é politicamente uma boa notícia para o Mercosul, que terá menos dificuldades para manter o Uruguai e o Paraguai em suas fileiras e atrair novos parceiros entre seus vizinhos.

Decepcionados, muitos dos neoconservadores que apoiaram o governo Bush júnior agora o criticam e reconhecem a provável derrota no Iraque, como mostrou a revista Vanity Fair. Mas o título da reportagem, Neo Culpa, é enganoso. Segundo Richard Perle, ex-assessor da Defesa, “não foram tomadas as decisões certas na hora certa e as discussões foram infindáveis. O presidente é o responsável por não perceber a dimensão da oposição e deslealdade no seu próprio governo”. Entenda-se: não foi culpa nossa, a receita daria certo se aplicada até o fim com competência e decisão... como diziam os stalinistas após o colapso do Leste Europeu e os neoliberais depois do fracasso na América Latina.

Agora, os democratas têm chances de fazer o próximo presidente, que bem poderia ser a senadora reeleita Hillary Clinton, preferida dentro do partido, ou o senador afro-americano Barack Obama, mais popular entre eleitores independentes. Do lado republicano, o candidato mais forte (ainda favorito nas pesquisas) é John McCain, conhecido por confrontar Bush júnior em relação à tortura, seguido por outros de perfil relativamente liberal – Rudolph Giuliani, ex-prefeito de Nova York, e Mitt Romney, governador de Massachusetts em fim de mandato. Se algo parece certo, é que os neocons não farão o próximo governo.


ENTREGUE NA DATA MARCADA
Um veredicto encomendado pelos cúmplices da metrópole

Velhos amigos.
Rumsfeld cumprimenta Saddam em 1983, quando o iraquiano já cometera o crime pelo qual é agora condenado à forca
Um dos slogans que privaram Bush pai de sua reeleição perguntava aos eleitores, em uma conjuntura de crise econômica e desemprego: “Saddam Hussein ainda tem seu emprego. E você?” O momento da desforra dos Bush foi claramente ditado pelo calendário eleitoral da metrópole, onde foram pouco ouvidas as críticas de juristas internacionais à legitimidade e credibilidade do julgamento.

O assassinato de dois advogados de Saddam demonstra a ausência de condições de segurança para o exercício da defesa plena, disse Pedro Estevam Serrano, professor de direito constitucional da PUC-SP ao site jurídico Última Instância. “Julgar Saddam por violações de direitos humanos sem observar os seus direitos humanos é uma contradição. O modo como ele foi julgado e o tribunal pelo qual ele foi julgado foram absolutamente ilícitos sob o ponto de vista dos mesmos valores pelos quais ele está sendo julgado. O adequado seria ele ser julgado pelo Tribunal Penal Internacional, por ser um órgão independente, localizado em um país fora do ambiente do conflito e permanente.”

O relator especial da Comissão de Direitos Humanos da ONU, Leandro Despouy, é da mesma opinião: Saddam deveria ter direito a um tribunal internacional, pois a Corte iraquiana foi “estabelecida por uma ocupação que muitos consideram ilegal e composta por juízes selecionados durante a ocupação e financiados pelos Estados Unidos”.

Note-se a ironia: o crime pelo qual Saddam foi condenado à forca – o massacre de 148 xiitas em 1982 – deu-se mais de um ano antes de o líder iraquiano trocar um famoso aperto de mãos com o enviado presidencial de Washington, Donald Rumsfeld. Na época, seu regime enfrentava o Irã com dinheiro, armas e apoio de Ronald Reagan, que se esforçou por abafar as brutalidades do regime iraquiano – inclusive o uso de armas químicas – e impedir que a imprensa as destacasse.

A maioria das 150 mil a 300 mil vítimas atribuídas ao regime baathista morreu nesse período ou no final da primeira guerra do Golfo, depois que Bush pai e o britânico John Major incitaram xiitas e curdos contra Saddam e os traíram, por calcular que um regime xiita em Bagdá não conviria a seus interesses. Esses números, aliás, empalidecem ante o milhão de vítimas dos embargos impostos ao Iraque nos anos 90 – na maioria crianças – e os 601 mil mortos pela violência desencadeada no país desde 2003, pela invasão e ocupação anglo-americana.


Clique e confira o gráfico: Vantagem democrata nas intenções de voto (eleitores registrados)

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