sexta-feira, novembro 10, 2006

EM FOGO BRANDO


A imagem de prosperidade do Oriente mascara tensões que continuam a se acumular e podem deflagrar outra crise

Por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa

Há muitos anos, a imagem da Ásia Oriental vem sendo associada a crescimento econômico e a sociedades trabalhadoras e disciplinadas, em contraste com o barril de pólvora do Oriente Médio, o caos social latino-americano e o desolador quadro africano. Por baixo do estereótipo, porém, a região acumula tensões políticas e sociais que podem explodir quando menos se espera. O crescimento econômico não traz automaticamente a tranqüilidade política, especialmente quando é acompanhado de crescimento de desigualdades sociais e étnicas.

Eranga Jayawardena/AP
Sri Lanka.
Atentado suicida recorda ao mundo a guerra esquecida
Em Sri Lanka, de invejáveis 5,6% de crescimento econômico em 2005, 129 soldados do governo foram mortos e 515 feridos na luta contra os separatistas tâmeis pela Península de Jaffna, em 11 de outubro. No dia 16, um suicida jogou um caminhão-bomba contra um comboio naval e matou 98 marinheiros. Essa guerra esquecida matou 65 mil desde 1983.

Enquanto a maioria cingalesa da ilha de Sri Lanka é budista (com uma minoria muçulmana), os tâmeis, cerca de 26% da população, são, na maioria, hinduístas (com uma minoria cristã), mas lutam por uma causa social e étnica, não religiosa. Nem só muçulmanos são capazes de atos brutais quando acuados.

Metade dos tâmeis tem raízes muito antigas no país, mas a outra metade descende de indianos que foram trabalhar em plantações de chá, café e borracha a partir de 1823. Esses tiveram a cidadania cassada com a independência do Sri Lanka em 1948 e se viram privados de direitos civis e sociais pelo governo, receoso do peso eleitoral dessa comunidade de trabalhadores rurais inclinada ao marxismo.

Cerca de 600 mil tâmeis foram deportados para a Índia a partir dos anos 60, até o início da luta separatista em 1976. Em julho de 1983, uma incursão separatista que matou 13 soldados levou multidões de cingaleses – com participação de membros do partido do governo – a linchar e saquear tâmeis sem distinção. Causaram de mil a 3 mil mortes, destruíram 18 mil casas e estabelecimentos e fizeram 600 mil fugirem do país. Não houve punições ou indenizações.

A tragédia uniu as comunidades tâmeis, ampliou o apoio à causa separatista e deu início à guerra em grande escala. Em 2003, o Parlamento cingalês concedeu a cidadania a todos os tâmeis, mas o ressentimento pelo massacre de 1983 e a miséria continuam a impulsionar a luta pela independência. Os separatistas controlam, na prática, quase a metade do território que reivindicam, cerca de um terço da ilha.

Milhares de quilômetros ao norte, na encosta do Himalaia, o Nepal, paraíso de hippies e mochileiros nos anos 60 e 70, está à beira do caos. Um impasse ameaça a tensa trégua entre uma monarquia absolutista e anacrônica e uma guerrilha comunista que já controla a maior parte de seu território, tem considerável apoio popular e exige uma Assembléia Constituinte que deverá optar entre a manutenção da monarquia e a proclamação de uma república democrática.

Entre um e outro, a Índia enfrenta a ameaça permanente de atentados de grupos separatistas da Caxemira (majoritariamente muçulmana) com apoio mais ou menos discreto do Paquistão, que não perdoa a Nova Délhi ter respaldado o bem-sucedido separatismo do antigo Paquistão Oriental, hoje Bangladesh. Igualmente perigosas são as retaliações brutais vez por outra promovidas por fundamentalistas hindus contra a minoria muçulmana, que põem em risco a unidade da maior democracia do mundo.

Manish Swarup/AP
Pintura de guerra.
No Nepal, aldeões recebem a guerrilha em grande estilo
No Sudeste Asiático, a próspera Tailândia – foco inicial da crise asiática de 1997, mas com 4,5% de crescimento em 2005 – volta a surgir como fator de instabilidade. O golpe militar contra o governo “populista” da Tailândia, acusado de “comprar” apoio dos pobres, foi bem recebido pelos investidores, mas a oposição interna cresce. Em 1º de outubro, um motorista de táxi de 60 anos protestou lançando contra um tanque o próprio carro, coberto de inscrições onde se lia “mártir” e “destruidores do país”. Hospitalizado, disse a repórteres que “faria de novo se tivesse outra chance”. Várias escolas públicas do interior foram incendiadas, aparentemente em protesto contra o novo regime.

Apesar de a lei marcial proibir reuniões com mais de cinco pessoas, estudantes queimaram nas ruas cópias da “constituição provisória” decretada pelos militares e o Conselho pela Reforma da Mídia, uma organização de intelectuais, jornalistas e ativistas que lutava por mais liberdade de imprensa durante o governo de Shinawatra, também organizou uma manifestação para exigir a restauração da Constituição de 1997 e protestar contra a presença de censores militares nas estações de tevê.

Como em muitos países da América Latina, uma elite conservadora “culta” confronta massas de “aldeões ignorantes” cada vez menos propensos a mantê-la no poder sem receber nada em troca. Esses, a grande maioria, dificilmente respaldarão em referendo a constituição a ser redigida pela nova assembléia formada por militares, burocratas e membros da elite oposicionista, escolhidos a dedo pelos generais. Nesse país já agitado por uma guerrilha separatista no sul etnicamente malaio, o resultado poderá ser a volta do país à condição de ditadura militar aberta à qual retornava até 1992, incentivando o surgimento de oposições mais radicais.

Nas Filipinas, o governo neoliberal de Gloria Macapagal-Arroyo está em conflito com a Suprema Corte sobre uma emenda constitucional que adiaria as eleições de maio de 2007, as quais provavelmente perderia. Quer prevaleça o Judiciário, quer o Executivo, há risco de inquietação social, instabilidade política e fortalecimento do movimento separatista dos moros, muçulmanos da ilha de Mindanao. Pior ainda é a situação da Indonésia, mal recuperada da crise asiática, devastada pelo tsunami de 2004, foco da gripe aviária, agitada por vários movimentos separatistas e pelo terrorismo fundamentalista do grupo Jemaah Islamiyah, responsável por grandes ataques terroristas, repetidos anualmente desde 2002. Mas ambos os países cresceram mais de 5% em 2005.

Ahn Young-Joon/AP
Fera acuada.
A pequena Coréia do Norte põe em risco o equilíbrio estratégico, os investimentos e a economia do Extremo Oriente
Por fim, mas não com menor importância, há o impasse da recém-nuclearizada Coréia do Norte. É muito difícil tentar prever o futuro desse regime extremamente fechado, mas todas as alternativas preocupam. Se houver um confronto armado, o governo de Pyongyang pode ser varrido, mas o Japão corre o risco de um ataque nuclear, a economia da Coréia do Sul pode ser destruída em horas e o desfecho pode ser um perigoso confronto entre China e EUA.

Se o impasse se prolongar, o Japão – cujas atrocidades e pretensões imperiais na Segunda Guerra Mundial ainda inspiram desconfiança e ressentimento nas duas Coréias e na China – deve aproveitar o pretexto para se rearmar, instigando uma corrida armamentista com a China. Isto, por sua vez, aumentaria a tensão com Taiwan, onde continuam as pressões por uma declaração de independência inaceitável para os chineses. O risco percebido de investimento tenderia a aumentar em toda a região, o que agravaria as repercussões de uma provável recessão estadunidense e poderia servir de estopim a uma nova crise asiática.

Mesmo que, em vez de cair atirando, o regime da Coréia do Norte desmorone em silêncio, como sonham os neoconservadores de Washington, as conseqüências podem não ser tão agradáveis quanto parecem esperar. A Coréia do Sul terá um problema humano e econômico que, guardadas as proporções, será muito pior do que aquele que a Alemanha enfrenta desde 1990.

A Alemanha Oriental tinha mais de um terço da renda per capita da Ocidental e menos de um terço de sua população. Mas ainda hoje, 16 anos e 1,5 trilhão de euros em subsídios depois, sua reestruturação continua um problema social e um empecilho à recuperação econômica da Alemanha. Na Coréia, o Norte pesaria muito mais: tem (na melhor das hipóteses) um décimo da renda per capita do Sul e quase a metade de sua população – e o Sul, apesar de todo o seu crescimento, está longe de ter a solidez institucional e o poderio econômico que tinha a Alemanha Ocidental antes da unificação. Se ficar, o bicho come, se correr...

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