Por Márcia Pinheiro
A política econômica do primeiro mandato de Lula em muito se assemelhou à dos oitos anos de Fernando Henrique Cardoso. Com um agravante: aprofundou-se a ortodoxia, especialmente no que se refere ao manejo da taxa de juro pelo Banco Central. Essa é a principal conclusão a que chegaram 11 pesquisadores do Instituto de Economia da Unicamp, em um trabalho de três anos e meio, detalhado no livro A Supremacia dos Mercados e a Política Econômica do Governo Lula (348 páginas, editora Fundação Unesp).
Outras vozes. Belluzzo, Carneiro e Pereira discutemo futuro do País com leitores |
Segundo Carneiro, no governo Lula, houve algumas melhorias, como nas contas do setor externo e na distribuição de renda. Mas, provocou, “em que medida esses avanços são sustentáveis?” Na sua avaliação, o desempenho econômico dos últimos anos deveu-se ao “excepcional ciclo internacional” de farta liquidez, taxas de juros baixas e aceleração das economias asiáticas.
Ele lançou algumas questões que deveriam estar na mente da equipe econômica que vai assumir o Brasil a partir de janeiro de 2007. Em primeiro lugar, “o que é necessário fazer para que o País rompa esse círculo vicioso de baixo crescimento?” Em termos qualitativos, sustenta, não houve no primeiro mandato de Lula uma diferenciação da estrutura produtiva para que os bens finais tivessem maior conteúdo tecnológico. Em suma, seria preciso reorganizar o Estado brasileiro para uma mudança de rota. Carneiro admite que hoje ao menos existe uma política industrial, “uma inovação, que não consta do ideário liberal”. Contudo, não foi articulada com outras iniciativas. Ficou solta, com poucos resultados concretos.
A segunda questão levantada pelo economista diz respeito ao papel do Banco Central. Ele pontua que o BC esteve demasiadamente comprometido com a estabilidade de preços. Mais preocupante é que cabe somente ao BC definir os preços-chave de duas variáveis (câmbio e juro), o que foi “desfavorável ao desenvolvimento, incentivou o ganho financeiro, especulativo e desestimulou o setor produtivo”.
Também em conseqüência desses superpoderes do BC, agravou-se o problema fiscal brasileiro. “A ausência de crescimento engessou o Orçamento, por causa dos polpudos gastos com o juro da dívida mobiliária federal.” Por isso, diz Carneiro, é extremamente importante conferir qual será a nova diretoria do BC. “Houve uma captura de uma agência importante por parte do sistema financeiro”, lamenta.
O especialista lembra que “há um erro crucial que se chama terceiro e quarto trimestres de 2004. A economia vinha crescendo, com investimentos avançando por cinco trimestres consecutivos”. Em razão do choque dos preços das matérias-primas, houve aumento da taxa Selic e o “BC derrubou um ciclo de investimentos que não acontecia havia cinco anos”. “O BC tem muito poder e uma forma perversa de independência, pois não presta contas a ninguém”, diz.
Já o economista Edgard Pereira fez um convite, em seu texto, para olhar o Brasil a partir do que aconteceu no âmbito internacional. De acordo com ele, é preciso colocar claramente a questão da autonomia da política econômica em um cenário da supremacia dos mercados. Fundamental, ainda, é distinguir o fluxo de mercadorias, a partir da Ásia, dos centros de valorização financeira do capital, cujos principais atores são os fundos hedge, que arbitram taxas de câmbio e de juros de diferentes países.
Pereira avalia que, pelo modelo adotado desde a era FHC, a economia brasileira ficou “autocontida”. “Se expandir, cria problemas no balanço de pagamentos e na inflação”. Por isso, o BC pratica juros elevados, para manter a inflação sob controle, via câmbio. O que resulta em uma economia de desempenho medíocre, que exibe taxas baixas de crescimento.
O economista do Iedi apresentou três variáveis que caracterizam a armadilha da atual política econômica. Desde FHC, a taxa de juro real situa-se ao redor de 10% ao ano. O crescimento médio nos últimos 12 anos ficou em torno de 2,5%. E, calcula o BC, o chamado produto potencial (quanto o PIB pode crescer sem pressionar a inflação) é de 3,5%. “Parece que o BC faz 10% de juro real para atingir um crescimento de 3,5% e só consegue 2,5%”, afirma. “O BC tem errado sistematicamente.” E vai além: “Se não houver redução significativa do juro real, todo o resto será perfumaria”.
É evidente ainda, dizem esses economistas, que uma queda forte do juro real tenderá a provocar um desarranjo momentâneo no mercado financeiro. Ao recolocar o câmbio no lugar, ou desvalorizá-lo, haverá um repique da inflação. Mas aí entraria o que Belluzzo chama de maestria do cozinheiro, que tem em Alan Greenspan, ex-presidente do Federal Reserve (Fed), a sua mais perfeita imagem.
Greenspan costumava dizer que não acreditava em modelos para fixar o juro. Para comandar a política monetária, seria preciso ter habilidades de cozinheiro, e não de engenheiro, dosando de forma discricionária o custo do dinheiro. Discutir o regime de metas de inflação no Brasil, diz Belluzzo, tornou-se um exercício teológico, como se suas premissas fossem algo sacralizado, intocável.
O economista reforça que houve má administração da política monetária, sobretudo pela insistência em se usar o câmbio como âncora, vício que começou nos primeiros quatro anos de FHC. Sobrepôs-se sempre o medo da inflação. A diretoria do BC não se deu conta de que haviam mudado alguns paradigmas da economia global. “Os americanos retomaram o crescimento pelo consumo, as taxas de juro internacionais foram até negativas, caso do Japão, e a demanda chinesa por commodities minerais e agrícolas mostrou-se fortíssima.”
Essa mudança estrutural do capitalismo, com a China como correia de transmissão de um modelo de produção de baixíssimo custo e, agora, com qualidade, foi “tectônica”, diz Belluzzo. E, por não entender a alteração de cenário, o “Brasil foi mal, muito mal nesse jogo”. O economista alerta para o fenômeno de desindustrialização, que é o desmanche das cadeias produtivas. “Ficamos com os setores menos dinâmicos de produção, com baixa densidade tecnológica.”
Foi criado um cluster industrial global, a partir da China, cujas conseqüências ainda não estão totalmente mensuradas. E, alerta o economista, “com 1 trilhão de dólares em reservas, os chineses vão transformar a África em um centro produtor de commodities imbatível”, o que tornará o Brasil menos competitivo.
Quanto aos próximos quatro anos, os três especialistas mostram-se céticos. Belluzzo não aposta em uma guinada da política econômica. “Lula tenderá a continuar conservador porque, em uma visão superficial, seu primeiro mandato foi bem-sucedido”, afirma. Carneiro sugere que se abra o debate sobre o custo da estabilidade dos preços, sem haver estabilidade monetária, porque o País tornou-se refém do câmbio.
“A sociedade não é homogênea. Diferentes estratos têm graus de tolerância variados à inflação. A atual política privilegia interesses de quem possui ativos financeiros”, afirma. E Belluzzo complementa, ao citar o governador eleito de São Paulo, José Serra: “Mais dois anos com esse nível de câmbio e a indústria brasileira vai desaparecer”.
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