Mônica Vasconcelos
De Londres bbcO escritor paquistanês Tariq Ali acaba de lançar o seu mais recente livro, em que saúda um grupo de líderes latino-americanos que estaria desafiando o poderio do "império norte-americano" para criar uma força regional que defenda os interesses do sul.
Em Pirates of the Caribbean: Axis of Hope ("Piratas do Caribe: Eixo de Esperança", em tradução livre), a figura central é o presidente venezuelano Hugo Chávez. Para Ali, no entanto, o presidente Lula não faz parte do grupo.
Tariq Ali nasceu em Lahore, no Paquistão, em 1943, mas foi educado em Oxford, na Grã-Bretanha. No final da década de 1960, foi um dos estudantes radicais que lideraram um violento protesto contra a Guerra do Vietnã em frente à embaixada americana em Londres.
Apesar do ímpeto estudantil ter diminuído com o tempo, o escritor paquistanês ainda é um feroz crítico da política externa dos Estados Unidos e de Israel e uma voz ativa em protestos contra guerras, sejam os conflitos na Sérvia, no Afeganistão ou no Iraque.
Ali é autor de romances, roteiros para cinema, peças de teatro e inúmeros livros de não-ficção, incluindo obras como Confronto de Fundamentalismos, Bush na Babilônia e Conversations With Edward Said.
Leia abaixo a entrevista de Tariq Ali à BBC:
BBC - Chávez tem um bom relacionamento com Fidel Castro. Seria isso um retorno do marxismo?
Tariq Ali - Não acho. Encontrei Chávez sete vezes nos últimos anos e enquanto escrevia este livro. A julgar pelas políticas que ele está adotando, o que me parece que ele está fazendo é criar uma democracia social de esquerda, no modelo do governo trabalhista do pós-guerra britânico.
Usar o Estado para regular o país, gastar o dinheiro do petróleo em saúde, em educação, reforma agrária, construção de casas para os pobres, este é o programa do seu governo.
Ele tem muita clareza a respeito do que faz e diz que nós não estamos vivendo no século 20, estamos em um outro século e vamos funcionar de acordo, mas não vamos aceitar o Consenso de Washington, não vamos aceitar as políticas neoliberais e vamos desafiar os Estados Unidos.
BBC - Um dos argumentos contra Chávez é a maneira como ele parece disposto a se associar a qualquer um que seja antiamericano. Qualquer um que é inimigo de Washington é amigo de Chávez?
Ali - Isso é um certo exagero. Basicamente, o que ele está tentando fazer é criar um bloco no sul que possa resistir, desafiar e brigar por seus próprios interesses. Seu foco principal está na América do Sul.
Então, a vitória de Evo Moralles na Bolívia, Ortega na Nicarágua, as eleições adulteradas pelo Estado no México... O continente está agora polarizado entre os bolivaristas e os que apóiam o Consenso de Washington.
E o que é interessante é que não existe fundamentalismo religioso envolvido. Trata-se essencialmente de uma visão social que Chávez e seus seguidores estão tentando projetar.
BBC - O poder real de Chávez está no petróleo, não? Os chineses querem, os Estados Unidos querem também...
Ali - Bem, ele vende bastante para os Estados Unidos e o petróleo está no centro do programa de reformas que ele está fazendo. O que os Estados Unidos não gostam é que, se outros países tentarem fazer reformas como essa, ele está disposto a oferecer petróleo barato.
Está fazendo isso com a Bolívia, está fazendo isso com Cuba, provavelmente vai fazer isso com a Nicarágua. E isso é algo a que os americanos não estão acostumados, enfrentar esse tipo de oposição.
BBC - Quão democrático é esse movimento?
Ali - É totalmente democrático. Chávez deu ao povo venezuelano o poder de escolher sua nova Constituição. É a única Constituição no mundo, com exceção da Suíça, que inclui o direito de retirar o presidente.
A oposição se opôs e, depois, tentou usar esse direito para derrubar Chávez, mas ele venceu. Ele venceu abertamente, diante dos olhos do público e dos observadores internacionais.
Ele é constantemente atacado pelas redes particulares de televisão e a mídia privada. Nenhuma TV ou jornal foi proibido ou suprimido. Ele existe por causa do apoio dos pobres.
A Venezuela é um país onde a divisão de classes é refletida na divisão racial. Então, parte da hostilidade das oligarquias a Chávez acontece por que ele tem a pele escura.
BBC - O senhor acredita que esse movimento está se espalhando? Há grandes países sul-americanos contra o movimento. Um deles, na sua opinião, é o Brasil.
Ali - O Brasil está claramente contra. E tem havido grandes discussões dentro do PT a respeito do caminho a ser tomado. Vamos ver o que ele (Lula) faz no segundo mandato.
BBC - Por que o Brasil não está incluído no "Eixo da Esperança"?
Ali - Porque o primeiro mandato de Lula foi muito decepcionante. A decisão tomada por seu partido e por seus consultores próximos, e especialmente pelo ex-ministro (Antonio) Palocci, foi não fazer nada que questionasse a ordem econômica estabelecida no Brasil, o que significa manter tudo o que havia sido feito para agradar o FMI e as instituições financeiras globais.
Isso foi muito desapontador, não apenas para mim, mas para muitos no Brasil. Como resultado, o presidente Lula não ganhou as eleições no primeiro turno, seis milhões de eleitores votaram em um candidato à esquerda dele. Então, espero que, no segundo mandato, o Brasil se torne parte do eixo da esperança.
BBC - O senhor fala de Chávez dando dinheiro do petróleo para os pobres na Venezuela. No Brasil, existe o Bolsa Família. Alguns defendem a tese de que o Norte e o Nordeste do país vivem hoje um desenvolvimento econômico simplesmente porque existe mais dinheiro em circulação e que Lula foi eleito pelos pobres. O senhor vê similaridades entre Lula e Chávez nesse sentido?
Ali - Eu não vejo similaridades. As políticas radicais de distribuição de riqueza na Venezuela foram muito mais longe do que em qualquer outro país latino-americano. E a experiência brasileira foi decepcionante, uma visão que é compartilhada pela população brasileira.
E nem falamos em corrupção. A corrupção em grande escala e os escândalos que envolvem o PT, um depois do outro... foram muito desmoralizantes. Então, a questão é o que Lula é capaz de fazer no segundo mandato.
As publicações internacionais, como Financial Times e Economist mostram o Brasil como um modelo alternativo ao da Venezuela. Eles estão perfeitamente conscientes do que está acontecendo. Entretanto, eu não perdi a esperança.
Esse primeiro mandato deveria servir como uma lição para Lula e aquela facção do PT que quer seguir exatamente o que dizem as instituições financeiras globais. Então, vamos ver o que acontece. Mas, até agora, não foi bom.
O que eu gostaria de ver um governo progressista brasileiro fazer são duas coisas. Internamente, uma reforma agrária: distribuição de terras para os camponeses pobres. E, depois, tentar construir um sistema de educação no país.
E a terceira coisa é que Lula precisa criar uma política externa independente. Fiquei muito chocado quando ele decidiu apoiar a ocupação do Haiti pelos Estados Unidos: a operação franco-americana no Haiti. Tropas brasileiras foram enviadas para ocupar o país, um general brasileiro cometeu suicídio, outro renunciou, porque só o que ordenavam a eles é que matassem as pessoas pobres daquela ilha.
BBC - Chávez tem sido acusado de autoritarismo e o senhor o defende neste aspecto. É possível para um país ficar fora do consenso neoliberal e não apelar para o autoritarismo? O senhor foi a Cuba e falou da opressão e da homofobia no sistema cubano.
Ali - Esse foi o caso no passado. Eles estão tentando mudar agora. O homossexualismo agora foi legalizado, os autores proibidos nos anos 1970 e 1980 hoje estão sendo publicados. Eles perceberam que têm de mudar e uma das razões pelas quais estão mudando é por causa do impacto da Venezuela.
O que os latino-americanos estão mostrando é que é perfeitamente possível democraticamente, porque Chávez foi eleito cinco vezes, fazer mudanças sociais. E o povo quer que você faça isso. Estas pessoas estão usando o sistema democrático para fazer mudanças sociais.
No Ocidente, por exemplo, a democracia está se esvaziando, com pouquíssimas diferenças entre a centro-esquerda e a centro-direita.
BBC - Chávez não estaria tentando ser presidente vitalício?
Ali - Isso não é verdade. Ele foi eleito todas as vezes. E vai continuar sendo eleito. A oposição na Venezuela está uma bagunça porque eles apoiaram um golpe de Estado contra ele, organizaram uma greve da classe média contra ele, falam abertamente sobre derrubá-lo... Ou seja, não são muito inteligentes.
Eu detecto o autoritarismo nas sociedades ocidentais em que vivemos hoje. As mentiras que foram ditas para nos levar à guerra contra o Iraque, mentiras pelas quais os políticos não foram punidos ou julgados.
Na verdade, quando vou à América Latina hoje em dia, e comparo a vibrante democracia latino-americana com o que vemos hoje no Ocidente, acho muito encorajador.
Claro, não há garantias. Não sei o que vai acontecer daqui a dez anos, ninguém sabe. Mas acho que existe um eixo de esperança, e isso é muito encorajador. As pessoas estão envolvidas com a política, enquanto, no Ocidente, jovens com idades entre 16 e 26 anos sequer têm interesse em votar.
BBC - Não poderíamos ver a estratégia de Chávez como a velha política populista de dar dinheiro aos pobres em troca de votos?
Ali - Se fosse tão simples, a oligarquia venezuelana poderia ter feito a mesma coisa. Não acho que é tão simples, e acho que as pessoas já não sabem o significado de populismo, essa palavra já foi abusada demais.
O que Chávez está fazendo é usar os lucros do petróleo para ajudar os pobres. Você tem grandes investimentos em educação, em saúde, em habitações populares, algo que nunca aconteceu antes. Isso explica a popularidade dele, e é por isso que ele vai ser eleito de novo.
E porque ele está mostrando a outras partes do mundo que isso é possível, ele é odiado pela elite internacional. Você pode ler exatamente os mesmos ataques a Chávez em qualquer jornal do Ocidente. Praticamente todos os jornais falam exatamente da mesma maneira sobre ele. Inclusive parte da imprensa brasileira.
Isto é uma indicação de que algo está sendo feito. Não apenas para vencer as eleições. Este não é o objetivo. O objetivo é mudar a situação dos pobres.
BBC - Outra crítica feita pela oposição a Chávez é que, ao usar o dinheiro do petróleo dessa forma, ele não estaria protegendo o futuro da Venezuela. O que o senhor diz sobre isso?
Ali - Acho que o futuro da Venezuela é o povo venezuelano. E se ele está melhorando as condições de vida dos venezuelanos, a educação, a saúde, ele está tomando conta do futuro da Venezuela.
Você tem hoje programas de alfabetização para adultos no país, para garantir que todos possam ler e escrever. O fato de que ele tem de fazer isso no início do século 21 é uma indicação do que não foi feito antes.
Esqueça o que diz a oposição. Eles tiveram uma grande chance, durante os últimos 70 anos, e não fizeram nada.