Agência Carta Maior:
A história otomana e provas físicas de que, antes da criação do Estado de Israel, outro povo habitava aquela região, são sistematicamente apagadas pelo governo. Permanecem, porém, na memória da população árabe.
Fernanda Campagnucci* - Especial para a Carta Maior
JERUSALEM, 16/07/2007 - Depois de três dias de viagem, a palavra Nakba ganhou sentido para mim. É um fantasma que paira sobre as cidades israelenses. O termo quer dizer "a catástrofe", e se refere a criação do Estado de Israel em 1948, quando 60% da população palestina virou um povo exilado. Muitas cidades foram destruídas, e o sonho palestino do retorno é tão forte que algumas pessoas guardam as chaves de sua casa e os documentos que provam a sua possessão da época do império otomano. Podem-se ver seus traços mesmo em Tel Aviv, se soubermos enxergar.
Lod, no centro de Israel, por exemplo. Tentaram descrever como era a cidade ha 50 anos, mas me parece impossível de visualizar. Quando olho ao redor, escombros, casas abandonadas, lixo, não consigo reconstruir a imagem da capital econômica da Cisjordânia, com mansões otomanas e mamelucos de séculos atrás, onde árabes cristãos e muçulmanos partilhavam o mesmo espaço entre igrejas e mesquitas.
Troquei algumas palavras em inglês com o dono de um bar, que puxou conversa quando me viu olhar - com, digamos, especial atenção - o jogo Brasil x Argentina na televisão. Ele me estendeu um jornal árabe e disse que a edição daquela semana conta o que aconteceu ali há 59 anos. O título, Lod e Ramla: uma história de mortes. Com seus 35 anos, ele cresceu ouvindo esse caso: ali do lado havia uma mesquita, que foi reaberta ha apenas alguns anos e onde os habitantes afirmam ter havido um massacre de 250 árabes. A condição imposta pela administração israelense para reabri-la, ele me conta, foi limpar as paredes que guardaram as marcas de sangue e nunca mais falar sobre isso. Limparam, mas não esqueceram.
A propósito, uma cidade vizinha foi rebatizada com o nome da milícia que causou a tragédia, Beitar. Uma provocação intragável para eles.
O que sobrou de um hotel otomano e uma antiga fabrica de óleo de oliva acumula lixo. Se não está pior, explica uma voluntária da Associação "Lembrança da Nakba", é porque os estudantes fizeram um mutirão para remove-lo. Todos os pedidos feitos à administração israelense para restaurar e proteger o sitio foram ignorados. Alguém comentou ali que se a construção tivesse algum símbolo judeu, seria rapidamente cercado, limpo, protegido. O sentimento - que não foge muito aa realidade - é que se quer apagar da História tudo o que lembra que um outro povo vivia ali antes de 1948.
Alguns metros depois, mudamos de bairro. Mas parece que mudamos de mundo. No lugar da terra revirada e da falta de asfalto, do lixo nas ruas, do esgoto a céu aberto com óleo tóxico de uma refinaria ao lado, do trilho de trem sem proteção para os pedestres, das ruas sem calcada onde as crianças brincam e são atropeladas, no lugar disso tudo, um bairro limpo, arborizado e florido. Um bairro judeu.
Eles pagam os mesmos impostos, mas o Estado não esta presente da mesma maneira nos dois lugares. Eu me surpreendo com um muro que separa os dois mundos, e alguém me responde: não estamos na Cisjordânia, mas este é um muro de separação. Construído com dinheiro do Estado, pelos moradores judeus.
Em Ramla, não muito longe de Lod, os nomes das ruas foram todos rebatizados com nomes de pessoas e fatos da cultura judaica. Destruindo os símbolos - ou deixando que eles se destruam sozinhos, por degradação - o Estado de Israel promove a judaização de diversas cidades. O Centro Cultural Mosaico, que faz atividades contra a discriminação e pela diversidade, pediu ao prefeito que mudasse o nome de apenas algumas ruas para homenagear personagens árabes. A voluntária ali teve vergonha de me dizer o que ele respondeu. Eu também teria vergonha de escrever.
Uri Davis, um judeu israelense que trabalha ali, lembra que o racismo é regulado por lei no Estado de Israel. Ele diz que, segundo a Declaração Universal de Direitos Humanos, toda pessoa tem o direito de morar onde escolher, e se quiser deixar o país deve poder voltar. Se, apesar de tudo o que fazem para tornar a vida insuportável ali, os árabes resistem e decidam ficar, o trabalho dele é apoiar essas pessoas que escolheram um lugar "errado" para viver. E não é um trabalho fácil.
*Fernanda Campagnucci é jornalista e está na Palestina para escrever um livro-reportagem sobre a situação dos territórios ocupados
A história otomana e provas físicas de que, antes da criação do Estado de Israel, outro povo habitava aquela região, são sistematicamente apagadas pelo governo. Permanecem, porém, na memória da população árabe.
Fernanda Campagnucci* - Especial para a Carta Maior
JERUSALEM, 16/07/2007 - Depois de três dias de viagem, a palavra Nakba ganhou sentido para mim. É um fantasma que paira sobre as cidades israelenses. O termo quer dizer "a catástrofe", e se refere a criação do Estado de Israel em 1948, quando 60% da população palestina virou um povo exilado. Muitas cidades foram destruídas, e o sonho palestino do retorno é tão forte que algumas pessoas guardam as chaves de sua casa e os documentos que provam a sua possessão da época do império otomano. Podem-se ver seus traços mesmo em Tel Aviv, se soubermos enxergar.
Lod, no centro de Israel, por exemplo. Tentaram descrever como era a cidade ha 50 anos, mas me parece impossível de visualizar. Quando olho ao redor, escombros, casas abandonadas, lixo, não consigo reconstruir a imagem da capital econômica da Cisjordânia, com mansões otomanas e mamelucos de séculos atrás, onde árabes cristãos e muçulmanos partilhavam o mesmo espaço entre igrejas e mesquitas.
Troquei algumas palavras em inglês com o dono de um bar, que puxou conversa quando me viu olhar - com, digamos, especial atenção - o jogo Brasil x Argentina na televisão. Ele me estendeu um jornal árabe e disse que a edição daquela semana conta o que aconteceu ali há 59 anos. O título, Lod e Ramla: uma história de mortes. Com seus 35 anos, ele cresceu ouvindo esse caso: ali do lado havia uma mesquita, que foi reaberta ha apenas alguns anos e onde os habitantes afirmam ter havido um massacre de 250 árabes. A condição imposta pela administração israelense para reabri-la, ele me conta, foi limpar as paredes que guardaram as marcas de sangue e nunca mais falar sobre isso. Limparam, mas não esqueceram.
A propósito, uma cidade vizinha foi rebatizada com o nome da milícia que causou a tragédia, Beitar. Uma provocação intragável para eles.
O que sobrou de um hotel otomano e uma antiga fabrica de óleo de oliva acumula lixo. Se não está pior, explica uma voluntária da Associação "Lembrança da Nakba", é porque os estudantes fizeram um mutirão para remove-lo. Todos os pedidos feitos à administração israelense para restaurar e proteger o sitio foram ignorados. Alguém comentou ali que se a construção tivesse algum símbolo judeu, seria rapidamente cercado, limpo, protegido. O sentimento - que não foge muito aa realidade - é que se quer apagar da História tudo o que lembra que um outro povo vivia ali antes de 1948.
Alguns metros depois, mudamos de bairro. Mas parece que mudamos de mundo. No lugar da terra revirada e da falta de asfalto, do lixo nas ruas, do esgoto a céu aberto com óleo tóxico de uma refinaria ao lado, do trilho de trem sem proteção para os pedestres, das ruas sem calcada onde as crianças brincam e são atropeladas, no lugar disso tudo, um bairro limpo, arborizado e florido. Um bairro judeu.
Eles pagam os mesmos impostos, mas o Estado não esta presente da mesma maneira nos dois lugares. Eu me surpreendo com um muro que separa os dois mundos, e alguém me responde: não estamos na Cisjordânia, mas este é um muro de separação. Construído com dinheiro do Estado, pelos moradores judeus.
Em Ramla, não muito longe de Lod, os nomes das ruas foram todos rebatizados com nomes de pessoas e fatos da cultura judaica. Destruindo os símbolos - ou deixando que eles se destruam sozinhos, por degradação - o Estado de Israel promove a judaização de diversas cidades. O Centro Cultural Mosaico, que faz atividades contra a discriminação e pela diversidade, pediu ao prefeito que mudasse o nome de apenas algumas ruas para homenagear personagens árabes. A voluntária ali teve vergonha de me dizer o que ele respondeu. Eu também teria vergonha de escrever.
Uri Davis, um judeu israelense que trabalha ali, lembra que o racismo é regulado por lei no Estado de Israel. Ele diz que, segundo a Declaração Universal de Direitos Humanos, toda pessoa tem o direito de morar onde escolher, e se quiser deixar o país deve poder voltar. Se, apesar de tudo o que fazem para tornar a vida insuportável ali, os árabes resistem e decidam ficar, o trabalho dele é apoiar essas pessoas que escolheram um lugar "errado" para viver. E não é um trabalho fácil.
*Fernanda Campagnucci é jornalista e está na Palestina para escrever um livro-reportagem sobre a situação dos territórios ocupados
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