Apenas durante o mês de agosto deste ano, uma em cada 416 famílias norte-americanas viram seus imóveis serem hipotecados. Apenas no estado da Califórnia, foram mais de 101 mil processos, 40% a mais do que em julho e 75% a mais do que em agosto de 2007.
Em meio às cifras bilionárias do atual cenário econômico, muitas vezes os dados que afetam diretamente a população (os mais pobres, principalmente) passam desapercebidos. Em artigo publicado no jornal norte-americano Workers World, o escritor e jornalista Fred Goldstein atenta para esse e outros aspectos da crise que assola o país.
Leia abaixo o texto:
O colapso capitalista
Com a ajuda governamental de US$ 85 bilhões da AIG, a gigante dos seguros, o Federal Reserve e o Departamento do Tesouro fizeram outra tentativa desesperada para sustentar uma estrutura financeira global em processo de colapso. Essa última tentativa de resgatar uma enorme firma financeira vem no mesmo rumo da ajuda de US$ 200 bilhões dada aos dois maiores bancos hipotecários do mundo, a Fannie Mae e o Freddie Mac, há apenas dez dias.
Acordos secretos enviam a conta para os trabalhadores
O presidente do Federal Reserve Bank of New York, Timothy Geithner, e o secretário do Tesouro, Henry Paulson, têm estado assoberbados em reuniões ininterruptas, articulando acordos. Isso tem sido efetuado em segredo, por trás das costas dos trabalhadores e das camadas médias, para quem será remetida a conta. Eles têm desenvolvido esses acordos com os mesmos tubarões dos empréstimos da alta finança cujas orgias de especulação, jogo e fraude na busca do lucro levaram à crise.
A farra especulativa da Wall Street levou a uma crise mundial realmente formidável. Ao longo dos últimos três dias, a AIG, a maior companhia seguradora do mundo, com US$ 1 bilhão em ativos, esteve a poucas horas da bancarrota.
A Lehman Brothers, um prestigiado banco de investimento com 158 anos de idade, com US$ 639 bilhões em ativos e US$ 613 bilhões em dívidas, caiu na maior bancarrota da história dos Estados Unidos.
A Merrill Lynch, outro pilar dos bancos de investimento com mais US$ 1 bilhão em ativos, conseguiu evitar a bancarrota só depois de ser engolida pelo Bank of America.
O Washington Mutual, a maior caixa econômica dos EUA, teve a classificação dos seus títulos reduzida a lixo e está encostada às cordas.
Quando a crise da bancarrota estava em desenvolvimento, na quinta-feira 11 de Setembro, Paulson disse aos banqueiros que o governo não iria intervir e que eles teriam de resolver o problema entre si próprios. Isso foi na semana passada. Agora o governo dos EUA providenciou mais US$ 85 bilhões para o salvamento dos bancos. É um sinal de crise e de fraqueza.
Apesar de o salvamento da Fannie Mae e do Freddie Mac ter dado alívio aos possuidores de bilhões de dólares de dívidas que possuíam junto aos dois bancos hipotecários, isso também colocou uma enorme tensão sobre o sistema financeiro e foi mais um sinal de fraqueza e fragilidade profunda. Novos resgates foram excluídos, disse o governo. Esse limite foi como traçar uma linha na areia.
Mas as declarações de Paulson e Geithner não tiveram impacto sobre os banqueiros. Eles buscavam os seus próprios interesse imediatos e jogaram na defesa frente ao seu próprio governo. No fim, apesar de Washington deixar a Lehman Brothers fracassar, a AIG era uma outra história. O Federal Reserve Board e o Tesouro fizeram uma meia volta humilhante e intervieram no último minuto, "temendo uma crise financeira em escala mundial" (New York Times, 17/9).
O salvamento da AIG pelo Fed é instrutivo quanto à profundidade da crise. A AIG nem sequer é um banco. Ela não é regulamentada pelo governo federal. O Fed teve de utilizar poderes de emergência para intervir, os quais são considerados necessários não só porque a AIG emite apólices de seguros para milhões de indivíduos e empresas comerciais, como também porque ela segurou mais de US$ 400 bilhões em títulos apoiados por hipotecas e outros investimentos de risco de jogadores e especuladores por todo o globo.
A AIG tomou dinheiro emprestado de muitos dos grandes bancos e jogou seus ativos a fim de fazer maiores lucros. Quando as hipotecas começavam a cair e os possuidores dos títulos apoiados por hipotecas começavam a pedir seus pagamentos dos seguros, a posição financeira da AIG se deteriorava rapidamente.
A imprudência financeira do sistema pode ser medida pelo fato de uma companhia de seguros, que é supostamente regulamentada para se manter conservadora, precisamente porque é a guardiã de fundos que devem estar disponíveis para cumprir as necessidades de emergência dos segurados, fosse livre para participar no cassino global.
A AIG opera em mais de cem países, tem 116 mil empregados — 62 mil na Ásia — e tem instalações bancárias privadas para gente rica. Ela faz corretagem de negócios em ações, administra fundos mútuos, possui 900 aviões no seu negócio de leasing e em geral alavancou seu negócio de seguros numa operação especulativa globalizada.
Crise dos trabalhadores e oprimidos é ignorada
A crise dos banqueiros produziu manchetes sensacionais, com relatos hora a hora da agonia de um punhado de milionários e bilionários na Wall Street. Mas a mídia capitalista deixou de lado o drama real da massa de hipotecas que afeta as vidas de milhões de trabalhadores.
Centenas de bilhões de dólares foram repartidos entre banqueiros que caíram numa crise em grande parte devido a empréstimos hipotecários predatórios e à revenda daquelas hipotecas no mercado capitalista global. Nenhum alívio está previsto para as vítimas da indústria hipotecária da banca.
Foi dada pouca atenção à notícia de que em agosto houve 303.879 pedidos de hipotecas — um aumento de 12% em relação ao mês anterior e um acréscimo de 27% em relação ao ano passado. Uma em cada 416 famílias nos EUA recebeu um aviso de hipoteca no mês de agosto. Só na Califórnia houve 101.714, mais de 40% em relação ao mês anterior e 75% mais do que um ano atrás.
Enquanto derrama lágrimas sobre as agruras dos banqueiros, a imprensa capitalista não apresenta manchetes acerca de um estudo recente intitulado "Estado do sonho: hipotecado", que mostrava que a crise das hipotecas resultara na maior destruição de riqueza pessoal na história das comunidades afro-americanas e latinas.
Segundo o estudo, mutuários afro-americanos perderam entre US$ 71 e US$ 92 bilhões devido aos empréstimos contraídos ao longo dos últimos oito anos. O número para a população latina, o qual é ainda mais elevado do que para a população afro-americana, mostra perdas entre os US$ 75 e os US$ 98 bilhões.
Juntamente com a crise financeira está a crise crescente da economia capitalista geral, pois a super-produção resulta em subida do desemprego. Mais de 84 mil trabalhadores perderam o emprego em agosto, elevando o total anual a mais de 605 mil. Mais de dois milhões de pessoas foram acrescentadas ao desemprego nos últimos 12 meses, elevando o total oficial a 9,4 milhões. O desemprego a longo prazo também aumenta.
O desemprego dos trabalhadores negros atingiu 10,6%, devido principalmente a perdas de emprego entre mulheres negras. O desemprego entre mães solteiras e a juventude também cresce. E esses números governamentais não incluem milhões de trabalhadores desencorajados que desistiram de procurar emprego.
Em meio à crise do crédito, foi anunciado que a produção industrial – a base do emprego e do rendimento – em agosto caiu no máximo de três anos. Houve uma diminuição de 1,1% na produção das fábricas, minas e serviços públicos. A produção automóvel caiu 12%, a maior queda numa década.
Uma coisa está clara com a presente crise: nem a classe capitalista, que possui toda a riqueza produtiva, nem o governo capitalista, que supervisiona o sistema, tem o controle da situação econômica ou financeira.
Cada medida que eles tomam para deter a crise do crédito é seguida por outra erupção de pânico. Cada vez que o mercado de ações sobe, ele rapidamente perde todos os seus ganhos e ainda mais. E por muito que os sábios declarem não haver recessão, o crescimento firme do desemprego e o declínio da produção continua, sem consideração por quaisquer dos chamados "estímulos econômicos".
Mudança na psicologia da classe dominante
A intervenção do governo capitalista na crise bancária provocou uma mudança súbita na psicologia da classe dominante pois esta observa o seu sistema a girar descontroladamente. Depois de o sistema capitalista ter ultrapassado a crise da década de 1930, os patrões nos EUA começaram a esquecer-se das razões por que o presidente Roosevelt havia tomado medidas sem precedentes para resgatar a economia. Eles começaram a desdenhar qualquer intervenção do governo nos seus assuntos.
Naturalmente, eles sempre estiveram prontos para receber esmolas sob muitas formas — subsídios, gastos militares, legislação especial, isenções fiscais, etc. Mas sentiam-se os altos e poderosos dominadores corporativos do mundo.
Intervenção do governo, dizem eles, era para a Europa e social-democratas. As classes dominantes européias haviam sido sacudidas pelos trabalhadores e pela luta de classe, pela divisão e pela guerra. Porque os dominadores europeus eram fracos e precisavam ser apoiados pelos governos capitalistas, tinham de submeter-se ao monitoramento estatal dos seus assuntos. Tal caminho, entretanto, era fortemente rejeitada pela Wall Street e os gigantes da indústria.
Esta crise de agora é uma enorme degradação para o capital financeiro estadunidense, o qual costumava dar lições a outros governos capitalista sobre os males da intervenção governamental. Subitamente, contudo, os banqueiros e os patrões estão todos unidos, desde a extrema direita até os moderados e os liberais, no aplauso ao Tesouro e ao Federal Reserve Board pela sua "oportuna" intervenção. Eles estão a submeter-se, em meio a resmungos mas com clareza, à supervisão e monitoramento do governo a fim de salvar o seu sistema do colapso.
Com esta crise, a estrutura do capitalismo estadunidense está a entrar numa nova etapa. O governo capitalista começou, numa base gradual a princípio mas talvez mais sistematicamente no futuro, a absorver os passivos e as dívidas podres dos jogadores e da oligarquia da especulação financeira. Isto pode apenas aprofundar a crise a longo prazo, tornando-a mais profunda no organismo do capitalismo dos EUA.
Isto determina que haja não só repercussões econômicas como também políticas por todo o mundo quando imperialistas rivais virem a vulnerabilidade dos dominadores nos EUA. Isto determina o enfraquecimento do imperialismo estadunidense e ao mesmo tempo torna-o mais perigoso quando ele procura sair da sua crise.
A contradição básica do capitalismo
Os democratas querem lançar culpas sobre Bush e pedem por mais regulamentação. Naturalmente os financeiros pediram ao governo para eliminar a maior parte das regulamentações, as quais datavam da Depressão, que estabeleciam restrições às suas operações de jogo. Essa desregulamentação começou com a administração Reagan e atingiu um ponto alto na administração Clinton. Por instigação do Citicorp e de Robert Rubin, que deixou o Goldman Sachs para se tornar secretário do Tesouro, o Glass-Steagall Act foi revogado em 1998, sob o patrocínio do atual conselheiro econômico de McCain, Phil Gramm. A lei proíbe aos bancos comerciais que se envolvam na banca de investimentos, subscrevam ações e operações em bolsa de valores, subscrições e outras atividades que facilitam a hiper-especulação generalizada do tipo que antecedeu a Depressão.
E naturalmente a administração Bush minou todas as tentativas de inibir a concessão de empréstimos hipotecários predatórios e deu liberdade de ação total a toda espécie de especulação não regulamentada de bilhões de dólares de jogo especulativo, a qual aumentou o risco geral no sistema financeiro global. Mas, apesar da demagogia do Partido Democrata, a administração Bush não é a causa da crise.
A intervenção do governo, a regulamentação mais forte dos monopólios e as práticas mais "prudentes" não podem ultrapassar a contradição fundamental do capitalismo: a propriedade privada dos meios de produção sociais, globalizados.
É uma contradição irreconciliável que uma minúscula minoria controle a produção da riqueza do mundo para seu próprio proveito. É uma contradição irreconciliável que este aparelho global pare de funcionar quando há uma crise de lucratividade para os patrões. E tais crises ocorrem sempre, mais cedo ou mais tarde, devido à anarquia da produção capitalista.
Nenhum capitalista sabe onde aquilo que é produzido poderá ser vendido. Mas na corrida por "fatia de mercado" para o lucro máximo, cada agrupamento capitalista é obrigado a expandir a produção.
Em simultâneo, as leis do capitalismo obrigam cada capitalista a reduzir os salários dos trabalhadores tanto quanto possível. Nas últimas três décadas, a classe capitalista criou um sistema de baixos salários que contrapõe trabalhadores uns contra outras numa base global. Isto apenas agrava e acelera a contradição do sistema do lucro.
Sob o capitalismo, a produção é anárquica e finalmente expande-se a um ponto em que os trabalhadores não podem comprar o que foi produzido a um preço que dê lucro aos patrões. Essa anarquia da produção está a ser refletida na anarquia do sistema financeira na crise atual.
Na crise atual, multimilionários no topo da sociedade capitalista podem perder parte da sua riqueza, a qual realmente existia apenas no papel, mas eles mantêm suas mansões, serviçais, limusines e Lear jets. São os trabalhadores que sentem a crise econômica.
A única saída é o caminho da resistência — como o movimento para travar hipotecas, o qual vem ganhando força por todo o país
Tradução reproduzida do Resistir.info, com adaptações ao português do Brasil
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