terça-feira, março 04, 2008

Fidel e o roteiro de um panfleto da AbrilFidel e o roteiro de um panfleto da Abril

Agência Carta Maior: "Fidel e o roteiro de um panfleto da AbrilFidel e o roteiro de um panfleto da Abril"

Gilson Caroni Filho

Se, por dever de ofício, um professor precisar demonstrar como parcela da imprensa está colonizada por um jornalismo de extrema-direita, não terá grandes dificuldades pela frente.



Prometi a mim mesmo não escrever sobre publicações que não merecem sequer leitura de capa. Cansei de fazer isso em outros lugares. Mas como novas gerações de leitores surgem em breves espaços de tempos, quebro a promessa, sob risco de me condenar à repetição. O que escrevo aqui é mais um plano de aula que qualquer outra coisa. Ou talvez um roteiro para colegas de magistério.

Se, por dever de ofício, um professor precisar demonstrar como parcela da imprensa está colonizada por um jornalismo de extrema-direita, não terá grandes dificuldades pela frente. Se o aluno for preguiçoso ou pouco inteligente, o trabalho pode ser bem menos exaustivo do que parece à primeira vista.

Evite publicações que, pela diversidade ideológica dos colaboradores, tenham alguns campos conflitantes a dificultar a percepção de seus perfis editoriais. Procure algo mais tosco, que não se preocupe em disfarçar quem tem como aliados e, por conseguinte, quem elege como inimigos. Uma revista que da primeira à última página seja uniforme, sem sobressaltos, totalmente previsível.

Dê preferência àquela com melhor resolução gráfica e pasteurização dos temas abordados. Não hesite: em nome do aprendizado mais rápido, vá à banca mais próxima, tape o nariz e adquira um exemplar de Veja. Seu sucesso pedagógico está assegurado. E você terá em mãos a mais pusilânime das publicações semanais. A que não solicita grandes abstrações para a apreensão de sua dinâmica. A que conta com a simpatia da classe média protofascista do país.

Das notinhas plantadas da seção Radar ao "colunista-biógrafo-de-ex-presidente, na última página", reina a mais perfeita harmonia ideológica. Sempre raivosos, os colaboradores atacam os desafetos sem qualquer preocupação com a inconsistência dos próprios argumentos. Mas isso não é problema. Afinal, o objetivo ali é apenas atualizar o repertório de insultos encomendados e sistematizar o que vai n’alma da direita nativa. Se não conhecem patavina sobre o que escrevem, isso não inviabiliza o embuste. O importante é explorar o nicho conquistado.

Reinaldo Azevedo e Diogo Mainardi, dupla folclórica do fascismo de frases curtas, dão mostra da infinita capacidade involutiva do panfleto da Editora Abril, desenvolvendo uma espécie de darwinismo de contramão. Vale a leitura se houver necessidade de reforçar noções rudimentares de ecossistema editorial.

A parte mais interessante do pasquim dos Civita está guardada para o final da publicação, uma espécie de fecho de ouro do soneto panfletário. Nosso ex-colunista de palácio, Roberto Pompeu de Toledo, é o mais famoso escriba pela capacidade de prestidigitação. Espécie de consciência cívico-crítica do leitor, não foram poucas as semanas, durante o desgoverno tucano, em que a uma crise envolvendo o governo em escândalos corresponderam colunas que tratavam da "importância antropológica do elevador" ou do "escasso repertório de piadas de botequim nos dias contemporâneos".

E não são raros os seus admiradores, a se dar crédito à seção de cartas. O que nos remete à máxima de Paulo Francis nos anos 70: "A história é monótona, a cada minuto nasce um leitor idiota". E cúmplice, acrescentaríamos.

Estamos diante de um aluno estupefato e uma publicação "tipo-ideal"? Então vale a pena ler o que escreve Pompeu, na edição 2049, aquela que traz na capa a chamada " Já vai tarde – o fim melancólico do ditador que isolou Cuba e hipnotizou a esquerda durante 50 anos". É um belo exercício de falseamento histórico.

Judicativo, o nobre colunista escreve: "Muitos acreditaram na notícia da renúncia de Fidel Castro. Talvez até o próprio Fidel tenha acreditado. Eis, no entanto, algo que nem querendo ele poderia realizar, pelo simples motivo de que, tirante a hipótese de suicídio, está fora de seu alcance renunciar a si mesmo".

Peça a seu aluno que leia esse parágrafo com atenção, pois nele coabitam sofismas e uma verdade dolorosa para a extração ideológica dos que pontificam nas páginas de Veja. A mensagem da renúncia ao cargo da Presidência do Conselho de Estado foi anunciada no Granma, jornal do Partido Comunista Cubano. O que Fidel, de fato, não pode renunciar é ao papel que já lhe cabe na história. E, paradoxalmente, é essa impossibilidade que desnorteia seus detratores da Avenida das Nações Unidas, 7221, Pinheiros, São Paulo.

Dois parágrafos depois, Roberto Pompeu de Toledo continua sua peroração: "A visão que se tem de Fidel Castro estará sempre prejudicada para quem não tem presente a distorção de escala que envolve sua figura. Ela não é apenas maior do que os cargos que ocupa. É também maior do que Cuba. E, no plano internacional, maior do que deveria ser a do líder de um país de pouco mais 100 000 quilômetros quadrados, 11 milhões de habitantes e PIB de 45 bilhões de dólares.

"Se adotarmos a definição de escala da Intenacional Cartographic Association, a distorção de Veja ultrapassa qualquer limite admissível de redução para mostrar a superfície cubana sobre a configuração geopolítica do mapa internacional. O que o colunista finge ignorar é uma realidade que lhe incomoda.

A revolução liderada por Fidel, Che Guevara e Camilo Cienfuegos promoveu avanços notáveis em áreas como educação e saúde pública. Mas, acima disso, modificou a cartografia imperialista, mostrando que onde os mapas coloniais desenhavam precipícios existiam trilhas alternativas para uma América Latina soberana. É no rastro dessa descoberta que avançam Evo Morales (ler entrevista publicada em Carta Maior) e Rafael Correa. É na direção dela que aponta a artilharia militar-midiática do Império e das oligarquias locais temporariamente desalojadas do poder.

Concluindo, o jornalista afirma que "o inflado espaço que ocupa se deve em parte à mística do guerrilheiro, semeada na época romântica em que se acreditava que tudo era possível, e em parte às peculiaridades da política americana, cujos terrores infantis acabaram por emprestar-lhe importância maior do que tinha". Aqui, didaticamente, explique que a intenção do autor, ao chamar de "época romântica" o tempo em que se acreditava na possibilidade de projetos coletivos, é apresentar como "realismo” a vida decantada de sonhos. O servilismo e alinhamento incondicional como restauração do senso prático..

Se sobrar tempo, peça ao estudante que ouça a introdução do podcast de Diogo Mainardi, em 19/02/2008. Nele, a agressividade confundida com contundência, descreve Fidel como “mais uma figura grotesca que some da nossa frente” Alguém que “depois de renunciar ao mandato, quer se dedicar apenas ao seu trabalho como colunista da imprensa. É o lugar ideal para ele: o colunismo está cheio de zumbis”.Será interessante analisar um raro momento. Aquele em que, ao tentar definir alguém cuja estatura lhe foge à compreensão rasteira, um colunista se autodefine com precisão.Boa aula, caro colega.

Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, e colaborador do Jornal do Brasil e Observatório da Imprensa.

http://www.agenciacartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3833

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