SÉRGIO RUBENS DE ARAÚJO TORRES
Segundo comemorou a “Veja”, em reportagem de 15 páginas, na edição 2.030, o maior mérito de “Tropa de Elite” é que ao lado de “Cidade de Deus” o filme se constitui numa exceção dentro da cinematografia brasileira, porque não aborda a realidade pela “ótica do bandido”.
Daí deriva, inclusive, ainda segundo a revista, o seu êxito de público, pois o espectador não quer saber como, nem por que, os monstros são criados. O que lhe interessa é ver que serão castigados e exterminados, para que ele possa, enfim, usufruir o merecido sono tranqüilo.
Moral da história: quem quiser fazer sucesso filmando no Brasil deve renunciar à crítica e especializar-se em copiar os filmes americanos do gênero, onde os “justiceiros” não vêem outra alternativa para defender a sociedade que não a de passar por cima das leis e barbarizar os criminosos, o que acabam fazendo, via de regra, com requintes de sadismo.
O problema desse enfoque é que, além de ser tipicamente fascista, vende uma ilusão ao espectador menos atento: a de que os monstros deixarão de assombrá-lo se forem tratados com um teor de crueldade e covardia igual ou maior ao que devotam às suas vítimas.
Não vão.
Primeiro porque enquanto a explosiva combinação de miséria, desigualdade social, desestruturação familiar, abandono e ignorância, que engendra a criminalidade em escala nas grandes cidades brasileiras, não for erradicada a fábrica de bandidos estará despejando diariamente no mercado novos e mais abundantes modelos. É natural que “Veja”, no intuito de fortalecer sua posição de porta-voz dos que amealham fortunas produzindo e aprofundando essa situação, procure ocultar tal fato. Mas nem por isso ele deixa de ser óbvio.
Segundo porque há uma enorme diferença entre tratar o criminoso com a dureza correspondente ao seu grau de periculosidade e tratá-lo com perversidade. A perspectiva de um tratamento perverso, longe de intimidá-lo e dissuadi-lo, apenas o torna mais desesperado e brutal. E, o que é ainda mais grave, reduz a zero a autoridade moral de quem apela para os métodos de “conduta informal” – eufemismo empregado por “Veja”, conforme o padrão da CIA, para designar a tortura e execução de prisioneiros.
Que autoridade pode ter um torturador ou um policial que mata a sangue frio bandidos rendidos? Que diferença esse tipo de detrito humano acha que tem do homicida sádico? Como ele, também está agindo à margem da lei, com a diferença de que é pago para respeitá-la - condição primeira de quem tem como profissão fazer com que os outros a observem. Aliás, para conservar um mínimo de respeito às suas pessoas, essas almas penadas costumam ocultar as façanhas até dos vizinhos e mesmo dos próprios familiares.
Que sono tranqüilo poderia ter o nosso espectador se a autoridade que deveria protegê-lo baixasse ao nível dos monstros que o atormentam? De que serviria uma autoridade despida de legitimidade moral? Até na guerra, já dizia Bonaparte, os fatores morais estão para os materiais assim como três está para um.
“Tropa de Elite” é contido em relação aos modelos americanos da estética da barbárie nos quais se inspirou. Produzidos aos borbotões por Hollywood, a partir da escalada no Vietnã, esses filmes tem o objetivo de levar o espectador a considerar natural que num conflito todo e qualquer meio seja empregado contra o inimigo. A idéia subjacente é a de que já que o adversário é invariavelmente um bárbaro que não se detém diante de nada o remédio é sermos mais bárbaros do que ele, do contrário a derrota será líquida e certa. O bom mocinho não é mais aquele que oferece ao bandido a chance de sacar primeiro. É o que o impede de fazê-lo atirando antes, de preferência pelas costas.
Em “Tropa de Elite” não há, como em “Direito de Matar-3”, a profusão de execuções - mais de uma centena - realizadas pelo “justiceiro” que diante da inércia policial resolve limpar o bairro. Há apenas duas. Numa, porém, o traficante, já ferido, rendido e sabendo que iria ser morto, pede que não lhe atirem na cara, “para não estragar o velório”. O vice-mocinho, num plano bem marcado, troca então sua arma por uma calibre 12 e dispara – adivinhem aonde. Uma edificante execução, para americano nenhum botar defeito.
Torturas também não há muitas, mas é sintomático que os heróis do Bope – Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar - considerem válido empregar a asfixia por saco plástico não só contra traficantes, mas também contra mulher de traficante, para que esta delate o seu esconderijo. A extensão do tratamento perverso a inocentes, honra seja feita, não é advogada em quaisquer casos, somente naqueles em que a recusa a colaborar com as diligências torne isso inevitável.
Quanta magnanimidade!
Tudo se explica, segundo o filme, porque na Polícia Militar só há duas alternativas: “tornar-se corrupto ou assumir a guerra”. E guerra para eles é assim que se trava.
Um ex-capitão do Bope, que participou da confecção do roteiro de “Tropa de Elite”, disse que por se tratar de uma obra de ficção houve exageros e na realidade as coisas não se passam exatamente do jeito que foram apresentadas.
Esperamos que sim e que o macabro símbolo do batalhão - real e não imaginário, a caveira com as pistolas substituindo as tíbias e o punhal atravessado - não passe de uma bazófia de mau gosto.
O fato é que quando a autoridade policial acha bonito apresentar-se diante da sociedade com um símbolo que tomou emprestado aos bandidos ela corre o risco de confundir-se com eles e pode, mais dia menos dia, se ver na desagradável contingência de ter que acertar contas com a lei.
E nessa hora, podem estar certos: “Veja” e outros que açularam seus baixos instintos não vão aparecer em sua defesa. Que o digam os azes da Scuderie Le Coq.
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