Em entrevista ao HP, Oswaldo Peredo, parlamentar do Movimento Ao Socialismo (MAS - partido do presidente Evo Morales) e presidente da Fundação Che Guevara, faz uma análise sobre o momento político boliviano, os avanços do processo revolucionário em seu país e a postura progressista e solidária do governo brasileiro nas negociações que levaram à nacionalização dos hidrocarbonetos. Irmão de Inti e de Coco Peredo, que lutaram ao lado de Che, Oswaldo foi escolhido - após a queda em combate dos três - chefe do Exército de Libertação Nacional no início dos anos 70, sendo uma referência para todos os nacionalistas e revolucionários bolivianos desde então
HP - Quais as principais mudanças realizadas pelo governo Evo Morales?
Peredo - No Primeiro de Maio de 2006, poucos meses depois do presidente Evo Morales ter assumido o executivo, se dá a nacionalização dos hidrocarbonetos. Este negócio, que é uma das principais fontes de ingressos da Bolívia, significava a entrada de US$ 1,5 bilhão por ano, o que para nosso país é uma cifra astronômica. Porém, desse total, ficavam nominalmente US$ 300 milhões para o Estado e US$ 1,2 bilhão para as transnacionais. Com a nacionalização, invertemos esta situação. Mas digo algo mais: estas transnacionais não deixavam esses US$ 300 milhões no país, pois sugavam desses recursos, por meio de mecanismos como subsídios pela importação de diesel. A Repsol vendia, a si mesma, diesel para a Repsol da Bolívia. Assim, o Tesouro Geral da nação recebia apenas US$ 78 milhões ao ano. Hoje, com a nacionalização, que não é confisco, nosso país recebe anualmente US$ 2 bilhões. Ou seja, a retomada pelo país de seus recursos naturais, fundamentalmente do petróleo e do gás, por si só, já significou um salto monumental no plano econômico. Antes, os estrangeiros levavam 82% dos recursos do petróleo enquanto que os 18% que ficavam no país ainda eram malversados pela oligarquia. Eram contratos lesivos ao interesse nacional, mas completamente desconhecidos do povo boliviano. A bancada do MAS os trouxe à tona, nós mudamos as regras do jogo, invertemos os percentuais e por isso estamos vivendo este novo momento. A direita dizia que as transnacionais iriam embora. Não foram, porque seguem lucrando.
HP - Recursos que começam a ser utilizados para o desenvolvimento nacional e para redistribuir renda.
Peredo - Isso se sente, particularmente nos municípios, com a entrada de recursos provenientes da nacionalização. Sou parlamentar do MAS em Santa Cruz de la Sierra e posso citar um dado: em 2005, pelo imposto direto dos hidrocarbonetos o município recebia 2 milhões de bolivianos ao ano. Hoje, recebemos cerca de 300 milhões de bolivianos ao ano. É evidente que a oligarquia não está convencida de que isso deva ser conduzido pelo povo. Então, erguem a bandeira da autonomia, pois querem descentralizar o governo apenas e tão somente para reforçar o centralismo nas regiões, para desperdiçar todos esses recursos. Mas há boas notícias também na mineração, onde se firmaram convênios com grandes empresas internacionais para exploração das jazidas de ferro. E há uma avaliação do quanto a Bolívia pode arrecadar com o ferro. No primeiro ano serão US$ 60 milhões, chegando a US$ 400 milhões em dez anos, ingressos para o Estado boliviano. Essa mineração é em Santa Cruz, somente. No resto do país, o estanho se valorizou o que significa o ingresso de mais US$ 2 bilhões.
HP - Quais são as medidas adotadas para ampliar o acesso da população aos alimentos básicos?
Peredo - O governo se vê na necessidade de coibir a exportação para que possa ter uma cesta básica que caiba no bolso da população. Os grandes latifundiários, que são donos das fábricas de azeite, de beneficiamento de arroz, desviavam produtos do mercado interno para a exportação, ocultavam para especular, contrabandeavam, para que o preço subisse e ganhassem mais. Assim, encareciam os produtos no mercado interno, o que fez com que o governo colocasse um freio nestas práticas. Recentemente, começamos a permitir novamente a exportação, mas na medida em que baixam os preços de produtos. Também foram criados vários tipos de entidades financeiras como o Banco de Desenvolvimento Produtivo, onde o crédito vai direto para os pequenos e médios produtores. Isso também tem produzido um choque com a direita, com os grandes donos de terras e de indústrias alimentícias. Estamos avaliando uma parceria com investidores árabes, que querem incrementar a produção alimentária em US$ 2 bilhões. Por um lado combatemos a especulação, por outro ampliamos os incentivos à agricultura familiar.
HP - Como a eleição de Evo impactou na auto-estima nacional?
Peredo - O impacto foi substancial, mas vai além da auto-estima do povo boliviano majoritariamente indígena. De acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas, 62% da nossa população é indígena, mas a realidade aponta que são mais, pois há muitas pessoas que pelo preconceito racial, pela intensa discriminação de que foram historicamente objeto, não declaram sua condição indígena. A auto-estima de todo o povo boliviano tem se elevado, porque éramos conhecidos como um país produtor de droga, de cocaína, que estava entre os últimos lugares na fila do desenvolvimento, totalmente submetido ao estrangeiro. Agora que o governo é comandado por um indígena revolucionário, que está propondo e produzindo transformações imprescindíveis, isso tem forte impacto não apenas para o nosso país, mas para toda a América Latina.
HP - Qual sua avaliação da postura do governo brasileiro nas negociações quando do decreto de nacionalização?
Peredo - O governo brasileiro teve um papel destacado na garantia desta transição não ter sido traumática, principalmente pelas duras negociações estabelecidas com a Petrobrás, onde encontramos, juntos, uma saída positiva. Tudo foi bem graças à ação do presidente Lula que, arriscando uma situação política interna difícil, sustentou que era preciso atuar com justiça com o povo boliviano. Nosso agradecimento ao presidente Lula.
HP - Uma postura solidária.
Peredo - Claro, uma solidariedade que tem representado uma importante base de sustentação. Por exemplo: com a cooperação cubana, em menos de dois anos, construímos 60 hospitais de qualidade. São dois mil médicos cooperando conosco. Este ano, graças à cooperação Cuba-Venezuela, nosso país será declarado pela Unesco livre do analfabetismo. Há pouco mais de dois anos, tínhamos 32% de analfabetos, um dos maiores índices da América Latina. Com a ajuda venezuelana, abrimos uma grande planta de perfuração de gás e petróleo no Altiplano, o que contribuirá cada vez mais para a nossa soberania energética e para a integração de nossos países e povos. Assim, vamos avançando. Lula, Chávez, Cristina Kirchner, Rafael Correa, Daniel Ortega, Lugo. Todos são componentes de uma mesma corrente, com suas variantes, porque cada povo tem a sua fortaleza. É uma diversidade e amplitude que nos dá força.
HP - Mas há obstáculos de peso contra a integração.
Peredo - Um dos graves empecilhos à integração é a avalanche desinformativa, a tirania midiática, pois os meios de comunicação privados adotam uma postura terrorista em nossos países. No caso da Bolívia, controlados pela direita, exacerbam o racismo. Afinal, ‘como um índio ignorante pode governar um país?’, perguntam. Por isso queremos conclamar aos companheiros para que acompanhem de perto o processo boliviano, que é de todos os latino-americanos, para evitar que haja confrontação, pois os fascistas querem a guerra civil. Há grupos paramilitares dessa direita que agridem as pessoas apenas pela diferença da cor de sua pele. Esses setores, confiantes na sua própria mentira, propuseram um projeto de lei para o referendo revogatório dos mandatos. Quando o governo encarou o desafio, eles tentaram fugir das urnas. O povo não quer violência, quer resolver estes problemas politicamente. Precisamos de todo apoio internacional, particularmente do povo brasileiro, para que a vitória no referendo signifique um aprofundamento do processo revolucionário e da integração.
HP - Como iniciou sua militância?
Peredo - Me inscrevi na Juventude Comunista aos 13 anos. Meus irmãos eram, claro, os que me influenciavam politicamente: Antonio, Inti e Coco. Então veio a revolução cubana, que foi mais um poderoso estímulo, oxigenando nossa determinação. De fato, quando Che chega na Bolívia são muitos os jovens comunistas que se incorporam à guerrilha.
HP - Estavas lá?
Peredo - Eu estava em Moscou estudando medicina, quando me foi dada a tarefa de recrutar jovens bolivianos e latino-americanos que estudavam em países socialistas. O Che em seu diário diz: ‘se incorporaram 20 estudantes de países socialistas’. Esta tarefa estava sendo desenvolvida por mim. Os desdobramentos disso são conhecidos pela história. Coco cai numa emboscada. Inti sobrevive e quando estamos organizando um novo contingente para voltar à montanha, assassinam Inti numa emboscada na cidade de La Paz, dois anos depois da guerrilha. Então, em 1970, os remanescentes - éramos 12 - me elegem chefe do Exército de Libertação Nacional, fundado por Che, e começamos a reestruturar a nossa coluna guerrilheira. Em 1970, dez meses depois da queda em combate de Inti, tínhamos uma coluna de 67 homens e voltamos à montanha, mas já com ramificações na cidade. Há um compromisso com o sangue de Che.
LEONARDO SEVERO
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