quarta-feira, junho 18, 2008

União Européia: a democracia em questão

DEBATE ABERTO

União Européia: a democracia em questão

Decisão do eleitorado irlandês, rejeitando o Tratado de Lisboa, que dá mais poderes ao parlamento europeu, esquenta debate sobre a democracia dentro da União Européia. Dezessete dos vinte e sete membros aprovaram o Tratado. Mas pelas regras do jogo, basta a não adesão de um para, na prática, anular os seus efeitos.

A rejeição do "Tratado de Lisboa" pelo eleitorado irlandês na semana passada jogou a União Européia numa discussão acalorada sobre o que, afinal, é e não é, pode e não pode ser a democracia dentro dela.
Explicando a questão:

1) Em 2005 a projetada Constituição Européia foi rejeitada pelos eleitorados da França e da Holanda, o que jogou a União na sua primeira "crise existencial" desde que começou a ser projetada em plena Guerra Fria.

2) Apesar disso, o barco (talvez seja melhor dizer a carruagem...) foi andando adiante, com a instalação progressiva das instituições dessa nova União em Bruxelas, sede do Parlamento Europeu e da Comissão Européia, uma espécie de órgão executivo.

3) Mais países, sobretudo do Leste europeu, foram aderindo à União Européia. Esta tem uma regra de ouro: suas instituições e regras devem ser aprovadas por todos os países membros para funcionarem. Hoje eles já são mais de vinte.

4) Depois do impasse de 2005, sob a liderança da França e da Alemanha, criou-se uma nova versão do projeto de Constituição, que foi chamada de "Tratado de Lisboa", nome mais brando para o mesmo pacote.

5) Mas só o nome é mais brando. Na verdade, o "Tratado de Lisboa" dá mais poderes para o Parlamento e para a Comissão Européia, tornando-os mais autônomos em relação às instituições semelhantes de cada país. Também centralizava mais a Comissão Européia o que, segundo comentaristas mais críticos, diminuiria o peso de países pequenos e periféricos (como a Irlanda) e aumentaria o dos "peso-pesados", como França e Alemanha. Além disso, ele cria o cargo de presidente da União Européia, com mandato de dois anos e meio (atualmente a presidência é rotativa entre os países-membro, e sua duração é de seis meses). Também cria um cargo ou função semelhante a de um Ministro de Relações Exteriores, o que dotaria a União de uma política externa própria, aumentando-lhe consideravelmente o poder político e a concentração de funções.

6) Dezessete dos vinte e sete membros aprovaram o Tratado. Mas pelas regras do jogo, basta a não adesão de um para, na prática, anular os seus efeitos. Essas aprovações se deram de modo peculiar. Depois do fracasso dos referendos na França e na Holanda quanto à aprovação da Constituição, houve uma espécie de "pacto silencioso" quanto a evitar referendos e plebiscitos. Daí o nome de "Tratado": a rigor, um tratado precisa ser aprovado pelos colégios de representantes dos países, como câmaras e senados, por exemplo, o que tornou mais fácil seu trâmite do que uma "Constituição".

7) Acontece que a Constituição irlandesa exige um referendo popular também nesse caso, pois a questão mexe ou vai mexer com a estrutura de impostos, além dos poderes dentro do país. Daí a realização dessa votação, no dia 12/06, que deu no que deu.

Passemos agora ao desenho político. Em primeiro lugar, esse "deu no que deu" deu no quê mesmo? Antes de mais nada, como ressalta o comentarista Hans Jurgen Schlamp, no Der Spiegel (O Espelho) alemão, deu na fúria dos dirigentes de Bruxelas, que na imprensa vez por outra aparecem com o nome nada elogioso de "eurocratas". Diz ele:

"No dia em que os irlandeses rejeitaram o Tratado de Lisboa [por 53,5% a 46,5%] num referendo, os Eurocratas (sic) em Bruxelas enlouqueceram de fúria. Esta é a última vez, eles devem estar pensando com seus botões, que esses irlandeses terão permissão para votar alguma coisa. Vamos acabar com esses referendos. Eles são complicados demais para pessoas comuns".

Em segundo lugar, alçou o sentimento dos (assim chamados na imprensa) "eurocéticos", aqueles que, como na Polônia, curvam-se ante a necessidade de adesão à União Européia, mas sem muito entusiasmo. Em terceiro lugar, alçou mais ainda a bandeira no mastro dos opositores à União. Existem duas tendências de oposição. Uma é conceitual, e é de direita, como no caso de muitos dos apoiadores do primeiro ministro Berlusconi, na Itália. Para esses a União facilita a imigração interna e a externa na e em direção à Europa, e diante da visão xenófoba que têm, põe em perigo a integridade política dos países membros. Na Itália, hoje, depois da nova vitória de Berlusconi, recrudesceu a campanha contra romis e sintis (mais comumente conhecidos como "ciganos", nome que eles rejeitam) e de tabela contra os romenos de um modo geral, inclusive com atos violentos, como incêndios criminosos de seus acampamentos.

Outra é de esquerda, e é de avaliação política sobre para onde o barco está indo. Acontece, para essa visão, que a União Européia foi plantada durante a Guerra Fria, mas em tempos de quase hegemonia européia da social-democracia e do estado do bem estar social. Mas foi colhida depois do fim da Guerra Fria com a derrota e o fim da União Soviética, do desfazimento do bloco comunista euro-asiático por ela liderado, da rendição dos partidos social-democratas e socialistas Europa à fora e a dentro às balizas do neo-liberalismo e do bastante violento estado da desregulamentação social. Ou seja, o barco (ainda penso que carruagem seria melhor) adernou a estibordo, ou seja à direita, e muito.

Bandeiras ambientais, como uma regulamentação mais severa sobre o tamanho e a emissão de gases nocivos por parte de automóveis e veículos assemelhados vêm patinando na curva (enquanto se discute furiosamente a Amazônia e se põe em questão a soberania brasileira sobre esta parte de seu território, nos momentos mais exaltados).

Cresce a pressão para que os poderes de Bruxelas aumentem no que se refere à determinação de uma política tarifária unificada na Europa, o que equivale a dizer que se quer uma redução de impostos reguladores, por parte dos estados nacionais, às importações e exportações (análises dizem que este foi um item decisivo no caso irlandês, pois uma parte da classe média, além dos trabalhadores, votou contra o tratado). No momento, a União Européia preocupa-se e investe muito numa espécie de programa para "ensinar" capitalismo nos países do Leste europeu que vêm aderindo aos magotes à União, diante da possibilidade de receberem investimentos em euro. Mas também há questões internas nos outros países. O fantasma chinês assombra porões e sótãos em todas as partes, com a ameaça de perda de mercados, de empregos e de oportunidades de trabalho. Nesse quadro, e depois já de mais de vinte anos de galope neo-liberal pelo mundo, as questões de seguridade social, de seguridade saúde, de previdência social, estão retornando às pautas de discussão, mesmo que veladamente, e contribuindo para abalar as coalizões lideradas pelos conservadores, como está acontecendo agora na Alemanha.

Mas há questões mais amplas envolvidas. Por exemplo, reclama-se, e muito, de que na verdade apenas os referendos na França e agora na Irlanda teriam sido de fato "democráticos" no sentido pleno, político, e não apenas formal da palavra. Na França todos os cidadãos eleitores receberam em casa um exemplar da projetada Constituição, em 2005. Isso pode ter sido, quem sabe, um tiro pela culatra, quanto à aprovação. Mas o procedimento foi muito elogiado. Na Irlanda a discussão foi ampla e intensa.
Na Alemanha, por exemplo, os colegiados de representantes de todos os estados aprovaram as mudanças. Apenas um, o de Berlim (Berlim, como Hamburgo e Bremen, é uma cidade estado) as rejeitaram, num movimento surpreendente de união entre os social-democratas do SPD e os parlamentares da Linke, o novo partido de esquerda). Mas na verdade havia uma certa curiosidade perplexa sobre o quê, afinal, se estava votando, que pairava pelas ruas.

Há uma outra questão, mais delicada ainda. Vem-se falando e discutindo, mais em surdina do que de público, embora isso já tenha aparecido, na criação de um "Exército Europeu". O que isso significa não se sabe muito bem, nem quem o comandará. Mas em discussões matutinas nas rádios, por exemplo, já se aventou a possibilidade de que ele poderia muito bem servir para "missões de paz na África". Ora, sabemos muito bem, nós, os de debaixo da mesa, o que isso pode significar.

Ele tem o anteparo também na sensação de desamparo que percorreu exércitos e governos europeus quando das intervenções lideradas pelos norte-americanos e pela OTAN no Afeganistão, no Iraque e no Kossovo. A desproporção de armamentos, de tecnologia e de capacidade cirúrgica entre os exércitos norte-americanos e os outros ficou demais de evidente, o que trouxe junto a sensação de que a Europa pode muito bem se tornar uma província de ultra-mar sob proteção (e controle e vigilância) da OTAN. Ainda mais nesse momento em que se recondiciona a passada Guerra Fria, com a Rússia aumentando seu poder econômico e seu poderio militar, e os chineses comendo pelas bordas territórios e mais territórios africanos, nas barbas das empresas européias e norte-americanas que ali imperavam quase absolutas.

A ameaça de uma nova Guerra Fria é muito quente. Exemplo: desde setembro de 2007 o degelo, que vem atingindo proporções dramáticas no Pólo Norte, reabriu a chamada "Passagem do Noroeste", uma ligação marítima entre os oceanos Atlântico e Pacífico por um caminho que bordeja a Groenlândia, o Canadá, o Alaska (dos Estados Unidos) e a Rússia, tendo do outro lado o gelo (ou o que dele restar) flutuante do mundo polar.

Assanhados, todos os países da região ou com interesse nela (além da Rússia, os Estados Unidos, o Canadá, a Noruega, a Dinamarca – de que a Groenlândia é território – e a inevitável China já declararam sua reivindicação na nova "partage" dessa reaberta fronteira. A Rússia já colocou sua bandeira em alguma parte da passagem, dizendo que dali ninguém a tira. Por ora, não há ainda interesses militares escancarados, sendo os mais ativos os que dizem respeito a transporte e navegação comercial (hoje vitais, veja-se a crise de alimentos). Mas pode haver. A uma Europa unida no papel e na moeda, mas de sentimento frágil no poderio de enfrentamento, isso pode parecer demasiado perigoso.

Mas isto é tema para futuro artigo, que este já vai longo demais. Por ora, discutem-se alternativas diante do "impasse irlandês":

1) O filósofo Jurgen Habermas lançou um apelo para que haja plebiscitos como o irlandês em todos os países da Europa, sobre o "Tratado de Lisboa" e a Europa que se quer; a proposta recebeu críticas conservadoras que batiam no bordão de que são assuntos demais de delicados e complexos para "caírem" em terreno tão escorregadio quando à vontade (e a soberania, nem falar!) popular. Cheguei a ouvir no rádio um historiador (cujo nome infelizmente me escapou) dizendo que Habermas podia entender de filosofia, mas não de política, o que mostra, pelo menos, o que significa política para quem pode dizer uma coisa dessas.

2) Em Bruxelas levantou-se a possibilidade entre os dirigentes da União Européia de fazer-se um novo plebiscito na Irlanda (quem sabe dessa vez eles "acertam") ou de simplesmente expulsa-la (o que seria muito grave) da União, ou de congela-la (mandar para o quartinho, de castigo), criando dois tipos de membros, os plenos e os parciais, o que seria menos grave mais tão antipático quanto a primeira alternativa.

3) O Partido Verde (com assento no Parlamento Europeu) propôs que se fizesse um plebiscito simultâneo em todos os países-membro, como modo de atenuar as diferenças e particularidades nacionais e ressaltar o caráter internacional e de futuro da União Européia, vista (e muitos da esquerda concordam) como a única alternativa viável para erradicar de vez da região o fantasma das guerras que a destroçaram no século passado, e continuaram destroçando suas bordas.

4) Deixar tudo como está para ver como é que fica. Não é improvável esta alternativa, pois ela abre campo para novas negociações de bastidor, onde, parece, as decisões de fundo vêm sendo tomadas, em que pesem os referendos.

De qualquer modo, o que está em jogo é a democracia nessa nova União.


Flávio Aguiar é editor-chefe da Carta Maior.




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Cordialmente,

Profº Jeferson Pitol Righetto
http://profjefersongeo.blogspot.com/

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