Mentir, deformar e falsificar informação para perpetrar golpe de Estado é atentado contra a liberdade de informação. Canais de televisão e emissoras de rádio são concessão do Estado e não capitania hereditária
Não existe, talvez, maior evidência da hipocrisia da grita contra a não-renovação da concessão da RCTV (Radio Caracas Television), do que a animada comemoração, ao vivo, no dia seguinte do golpe de abril de 2002 contra o governo legítimo de Hugo Chávez, conduzida pelo seu apresentador Napoleón Bravo, cercado de golpistas, “comentaristas” e “jornalistas”, que se parabenizavam mutuamente pelo papel de cada qual. Sem se aperceber da avalanche humana prestes a se derramar sobre Caracas, Napoleón é visto se jactando do próprio papel no golpe e revelando que a entrevista, transmitida pela RCTV com os chefes militares golpistas, e elemento chave da trama, havia sido feita na casa dele, para, dizia, forçar Chávez a “não viajar para a Costa Rica”, e assim estar disponível, no Palácio Miraflores.
FRACASSOS
Não se sabe se eles teriam algum pudor se desconfiassem que o golpe de 2002 ia passar para a história como um dos mais breves já vistos. Provavelmente não. Depois de seis anos convocando, e fracassando, a derrubada do governo, agora, nos estertores, a RCTV pregou publicamente, como denunciou Chávez, “o magnicídio” – o assassinato do presidente. Em operação conjunta com a Globovisión, sob o pretexto de entrevistar o dono da RCTV, Marcel Granier, foi embutida, a título de mostrar as ‘imagens históricas’ do canal, a repetição do atentado contra o papa João Paulo II, com uma frase de uma música de Ruben Blades de fundo, que diz que “isso não termina aqui”. Assim, a não-renovação não se deve ao fato de a RCTV “fazer oposição”, mas por reincidir em tentar derrubar o governo legítimo.
Outros episódios da atuação da RCTV no golpe de 2002 são bastante conhecidos. Quando os chefes golpistas desviaram a marcha dos esquálidos, para conduzi-la até o Palácio Miraflores, então cercado de manifestantes chavistas, a RCTV exibiu sobre a imagem da turba um letreiro: “Ni uno paso atras”. Lembremos que essa alteração de roteiro não tinha como objetivo apenas produzir uma confrontação com os defensores do governo legítimo, mas criar o cenário para os assassinatos, por franco-atiradores previamente dispostos em prédios da área, de chavistas principalmente, mas até mesmo esquálidos e transeuntes. A deflagração do golpe visou impedir que o governo assumisse o controle da principal riqueza do país, o petróleo, nomeando uma diretoria da estatal PDVSA disposta a atender à determinação de Chávez de colocar o petróleo para desenvolver a Venezuela e enfrentar a pobreza, ao invés de servir às Sete Irmãs e à compra de mansões em Miami.
MANUAIS DA CIA
Uma peça típica dos manuais de golpes da CIA. Os golpistas matam civis, culpam o governo constitucional pelos assassinatos que eles próprios cometeram, e com a ajuda da mídia que controlam e/ou pagam, deflagram o golpe dizendo “não poderem aceitar” a inexistente ordem de disparar contra a população. A imputação do governo legítimo serve para dois fins, paralisar a população e os setores leais das forças armadas. Uma questão determinante para os golpistas, dada a imensa popularidade de Chávez e seu prestígio entre os militares. Não havia como ser um golpe “a seco”. Como de praxe, havia navios de guerra ianques ao largo do litoral venezuelano, boletim da CIA anunciou o golpe dias antes, adidos militares de Washington sequer tentavam ser discretos e a Casa Branca apoiou na hora. E o primeiro-ministro espanhol Aznar. Só. Mais ninguém no planeta inteiro.
O papel da RCTV nessa parte do golpe é bastante claro: manipular as imagens e os fatos para responsabilizar os defensores do governo legítimo pelos assassinatos cometidos pelos próprios golpistas. Essa manipulação foi repetida por todos os canais privados, ao mesmo tempo em que os golpistas agiram para tirar do ar o único canal estatal. O documentário “A Revolução não será televisionada” mostrou a seqüência completa das imagens de Ponte Laguno, de onde supostamente os chavistas “teriam atirado”. Com a sequência, se vê que os chavistas respondem, tentando defender seus manifestantes, ao fogo dos franco-atiradores, que atiravam do alto. E que a rua diante da ponte estava vazia, nenhum opositor de Chávez.
A RCTV prosseguiria, junto com outros canais privados mancomunados com o golpe. Mentiram dizendo que “Chávez tinha renunciado”, quando tinha sido seqüestrado e estava em local ignorado. Quando o procurador-geral do governo Chávez, Isaías Rodriguez, se disse disposto a confirmar ao vivo a “renúncia”, e já no ar passou-lhes a perna, gritando ao povo que “Chávez não renunciara” e denunciando a violação da constituição, tiraram a transmissão do ar. A reação popular começou, mas nada aparecia nos canais de televisão venezuelanos. A canalhice fez o novo diretor do principal telejornal do país, o da RCTV, Andrés Izarra, se demitir, e, depois, se tornar uma importante testemunha do crime. “O golpe de Estado de 2002 foi um ‘golpe midiático’. Os conspiradores, na euforia do triunfo, revelaram seus segredos, contaram tudo ou quase tudo”, confirmou Izarra. “Foi uma operação montada pela e com a televisão”.
Enquanto pôde, a mídia golpista cantou em prosa e verso a democracia de Pedro Carmona: decretação do fechamento da assembléia nacional e cassação dos deputados, fechamento da suprema corte e cassação dos juízes e supressão da justiça eleitoral. Um portento. Iam preparando o clima para uma caça às bruxas. Mas o povo venezuelano passou por cima de todas as mentiras, falsificações e manipulações.
MIRAFLORES
Um milhão de pessoas cercou o palácio Miraflores, depois o forte Tiuna, QG das forças armadas, e rapidamente os representantes do governo constitucional voltaram à recém libertada sede presidencial. Carmona, o Breve, teve de fugir às carreiras, junto com outros golpistas, enquanto os comandos legalistas exigiam a rendição dos golpistas e a imediata soltura de Chávez, até que este foi localizado e trazido de volta. Quando a situação começou a virar, e ficou evidente o fracasso do golpe, a RCTV e congêneres trocou de ação, para continuar apoiando os golpistas. Não dava uma só notícia, só filmes e desenhos animados.
Mas a folha corrida da RCTV vai além. Inclui, segundo recente pronunciamento do Tribunal Supremo de Justiça, “promoção ilegítima e imoral de prostituição”, o que era feito com anúncios na RCTV de prostitutas oferecendo “serviços” e com telefones de atendimento. Também está sendo processada por sonegação fiscal entre 1999 e 2003 e outros delitos. Bem antes de Chávez, a RCTV já havia, em 1976, sido tirada do ar por três dias por veicular notícias falsas. Em 1980, mais 36 horas por “programação sensacionalista”. Outras 24 horas por transmitir pornografia. Também o programa La Hojilla, da rede venezuelana VTV, exibiu, no dia 22 de maio, documentos desclassificados do Departamento de Estado dos EUA, que revelam que vários jornalistas da RCTV receberam dinheiro da embaixada norte-americana, assim como da Globovisión e o diretor do Noticiero Digital e editor do Tal Cual, em 2003 e 2004.
Portanto, a não-renovação da concessão, não apenas está respaldada na constituição, como ocorre no interesse da liberdade de informação. Liberdade do povo ser informado, liberdade de acesso à verdade, liberdade de consciência, versus a pretensa “liberdade” de deformação, mentira e falsificação, de invasão de privacidade, que um monopólio de mídia subserviente se arroga, agindo em conluio com os serviços secretos dos EUA e os mais apodrecidos círculos internos. Trata-se, essencialmente, que canais de televisão e emissoras de rádio são uma concessão do Estado, isto é, é do povo venezuelano, não uma capitania hereditária.
AP
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