sexta-feira, julho 02, 2010

O discurso que permanece gravado nos corações e nas mentes dos congoleses

Patrice Lumumba

Oferecemos aos nossos leitores a íntegra, traduzida do texto em francês, do discurso de Patrice Lumumba no dia da independência do Congo, 30 de junho de 1960.
O Movimento Nacional Congolês (MNC), preocupado com a unidade política do país, estabelecera, para formar o governo após a independência, aliança com outros partidos - o principal deles era a ABAKO (Alliance des Bakongo), apesar de, ao contrário do MNC, que tinha como programa a superação das divisões tribais, esse outro partido, sempre bastante conciliador em relação ao colonialismo belga, ser, até mesmo no nome, um grupo tribal.
Ao líder da ABAKO, Joseph Kasavubu, caberia a Presidência do Congo, enquanto o MNC, com sua maioria parlamentar, indicaria o primeiro-ministro - Patrice Lumumba.
No entanto, o primeiro-ministro foi excluído da lista de oradores na cerimônia oficial, com a presença do rei Baudoin, da Bélgica. Apenas Kasavubu falaria – e, após o arrogante pronunciamento do rei, fez o que alguém já chamou de “discurso de lacaio”.
Então, Lumumba levantou-se e ninguém o impediu de falar. Pronunciou o que é um dos grandes monumentos oratórios da Humanidade. Ao contrário de Kasavubu, não dirigiu-se ao rei, exceto ao final, tratando-o pelo genérico “Sire”, ao invés de “Majestade”. Preferiu dirigir-se aos seus compatriotas.
O discurso de Lumumba não é, em nenhum momento, histérico ou inábil politicamente – inclusive, como o leitor verá, em relação à Bélgica. Mas, também, nem por um momento é submisso.
Nesta página, republicamos, ao lado desse discurso, o último escrito de Lumumba, sua carta à esposa, Pauline, quando já estava preso e sob quase constante tortura.
Não faremos mais comentários sobre estes documentos, pois o leitor poderá fazer por si próprio o seu julgamento.
Resta, ainda, contar, embora muito sucintamente, o final – até agora - desta epopeia:
1) Kasavubu pagaria muito caro pela traição a Lumumba: depois de ceder completamente aos colonialistas belgas e imperialistas norte-americanos, foi deposto em 1965 por Mobuto, apoiado e instrumentalizado pela CIA. Kasavubu passaria quatro anos numa terrível “prisão domiciliar” e morreria por falta de cuidados médicos.
2)  Pierre Mulele, ministro da Educação de Lumumba, terceiro nome na lista da CIA para ser eliminado, liderou, a partir do final de 1963 até 1968, a luta armada conhecida como a Revolta dos Simbas (leões, na língua swahili). Exilado em Brazzaville, na República do Congo (ex-Congo francês), foi obrigado a voltar a Kinshasa, depois que Mobuto assinou um acordo com esse país, garantindo “anistia” para Mulele e seus companheiros. O próprio ministro do Exterior de Mobuto foi a Brazzaville para acompanhar Mulele em seu retorno, como suposta demonstração de que a anistia seria respeitada. Ao chegar a Kinshasa, Mulele foi preso, torturado publicamente e, ainda vivo, esquartejado. Apesar dos sofrimentos inauditos, que nos poupamos de descrever, Mulele manteve até a morte aquela rara dignidade referida por todos aqueles que o conheceram. Hoje, a avenida principal de Kinshasa tem o nome de Pierre Mulele.
3) A ditadura de Mobuto foi derrubada em 1997, pelo levante liderado pelo presidente Laurent Kabila.
4) Pauline Lumumba e seus filhos voltaram ao Congo depois da derrubada da ditadura e hoje participam da vida política congolesa.
5) Antoine Gizenga, vice-primeiro-ministro de Lumumba e segundo na lista de eliminação da CIA, liderou a resistência logo após o assassinato, saindo do país após a queda de Stanleyville (hoje, Kisangani). Depois de derrubada a ditadura, Gizenga voltou ao Congo e foi primeiro-ministro do presidente Joseph Kabila; hoje é líder do Partido Lumumbista Unificado (PALU) e herói nacional do país.
6) As ideias de Lumumba são hoje a principal referência do movimento de independência nacional dos países africanos.
7)  O Congo, apesar de todas as dificuldades, após a derrubada de Mobuto, resistiu à recolonização – e continua a trajetória daquela “luta sublime” que Lumumba apontou em seu discurso do dia da independência.
C.L. - Hora do Povo
PATRICE LUMUMBA
Congoleses e congolesas,
Combatentes hoje vitoriosos da independência,
Eu vos saúdo em nome do governo congolês.
A todos vocês, meus amigos, que lutaram sem descanso ao nosso lado, peço que façam deste 30 de junho de 1960 uma data ilustre e que a guardem indelevelmente gravada em seus corações, uma data que vocês ensinarão, com orgulho, aos seus filhos o significado, para que eles façam conhecer aos seus filhos a história gloriosa da nossa luta pela liberdade.
Pois esta independência do Congo, se hoje é proclamada com a concordância da Bélgica, país amigo com quem tratamos de igual para igual, nenhum congolês digno deste nome jamais poderá esquecer, foi conquistada pela luta, uma luta de todos os dias, uma luta ardente e idealista, uma luta na qual não poupamos nem nossas forças, nem nossas privações, nossos sofrimentos, nem nosso sangue.
Desta luta, que foi de lágrimas, fogo e sangue, estamos orgulhosos até ao mais profundo de nós mesmos, pois foi uma luta nobre e justa, uma luta indispensável para por fim à humilhante escravidão que nos era imposta pela força.
Qual foi a nossa sorte durante 80 anos de regime colonial, as nossas  feridas estão ainda muito frescas e muito dolorosas para que nós possamos removê-las da nossa memória; nós conhecemos o trabalho exaustivo, exigido em troca de salários que não nos permitiam nem comer para matar a nossa fome, nem nos vestir ou morar decentemente, nem criar nossos filhos como seres amados.
Nós conhecemos as ironias, os insultos, as pancadas que devíamos suportar, de manhã, de tarde e de noite, porque éramos negros.
Quem esquecerá que a um negro se dizia “tu”, certamente não como se diz a um amigo, mas porque o respeitável “vous” era reservado somente aos brancos?
Nós conhecemos a pilhagem de nossas terras, espoliadas em nome de textos pretensamente legais que não faziam mais do que reconhecer o direito do mais forte.
Nós conhecemos o que era a lei não ser a mesma, caso se tratasse de um branco ou de um negro, confortável para uns, cruel e desumana para os outros.
Nós conhecemos os sofrimentos atrozes dos que foram degredados por opiniões políticas ou por crenças religiosas, exilados em sua própria pátria, com sorte pior do que a morte.
Nós conhecemos o que era haver casas magníficas para os brancos e palhoças miseráveis para os negros, ou, nas lojas ditas europeias, um negro nem poder entrar, ou, nas barcaças, um negro viajar como um galináceo, aos pés do branco em sua cabine de luxo.
Quem esquecerá, enfim, os fuzilamentos onde pereceram tantos de nossos irmãos, as masmorras onde foram brutalmente atirados aqueles que não queriam mais se submeter ao regime de injustiça, opressão e exploração?
Tudo isso, meus irmãos, nós temos sofrido profundamente. Mas, também, tudo isso, nós, que fomos escolhidos, pelo voto dos seus representantes eleitos, para governar o nosso amado país, nós, que sofremos em nosso corpo e em nosso coração a opressão colonialista, dizemos a vocês, em voz alta: tudo isso finalmente acabou.
A República do Congo foi proclamada e o nosso querido país está agora nas mãos dos seus próprios filhos. Juntos, meus irmãos, minhas irmãs, começaremos uma nova luta, uma luta sublime que levará o nosso país à paz, à prosperidade e à grandeza.
Juntos, nós vamos estabelecer a justiça social e assegurar que cada um receba a justa remuneração por seu trabalho.
Mostraremos ao mundo o que pode fazer o homem negro quando trabalha em liberdade, e faremos do Congo o centro de iluminação de toda a África.
Nós vigiaremos para que as terras de nossa pátria tragam benefícios verdadeiramente para seus filhos.
Nós vamos rever todas as leis de outrora e fazer novas, que serão justas e nobres. Nós vamos pôr fim à opressão do pensamento livre e fazer com que todos os cidadãos gozem plenamente das liberdades fundamentais previstas na Declaração dos Direitos do Homem.
Nós vamos suprimir eficazmente toda discriminação, seja ela qual for, e dar a cada um o justo lugar que merece sua dignidade humana, seu trabalho e sua dedicação ao país.
Nós faremos reinar, não a paz dos fuzis e das baionetas, mas a paz dos corações e da boa vontade.
Para tudo isto, queridos compatriotas, podem estar seguros de que poderemos contar não somente com as nossas enormes forças e as nossas imensas riquezas, mas também com a ajuda de numerosos países estrangeiros, cuja colaboração, sempre que for leal e não procurar nos impor uma política, seja ela qual for, aceitaremos sempre.
Nesse domínio, a Bélgica, que compreende enfim o sentido da História, não tentando opor-se à nossa independência, está disposta a conceder-nos sua ajuda e amizade, e um tratado foi assinado nesse sentido entre nossos dois países iguais e independentes.
Essa cooperação, estou seguro, será vantajosa para os dois países. De nosso lado, mantendo-nos alertas, saberemos respeitar os compromissos livremente consentidos.
Assim, tanto interna quanto externamente, o Congo, nossa querida república que meu governo irá criar, será um país rico, livre e próspero.
Mas, para que cheguemos sem atraso a esse objetivo, peço a todos, legisladores e cidadãos congoleses, que me ajudem com todas as suas forças.
Peço a todos que esqueçam as querelas tribais que nos esgotam e que nos fazem correr o risco de sermos desprezados no exterior. Peço à minoria parlamentar que ajude meu governo com uma oposição construtiva, ficando estritamente dentro das vias legais e democráticas.
Peço a todos que não recuem diante de nenhum sacrifício para assegurar o ressurgir da nossa grandiosa tarefa. Peço a todos, finalmente, que respeitem incondicionalmente a vida e os bens de seus concidadãos e dos estrangeiros estabelecidos em nosso país.
Se a conduta desses estrangeiros deixar a desejar, a nossa Justiça estará pronta a expulsá-los do território da República; se, pelo contrário, sua conduta é boa, é preciso deixá-los em paz, pois também eles trabalham para a prosperidade de nosso país.
A independência do Congo é um passo marcante para a libertação de todo o continente africano.
Eis o que, Sire, Excelências, minhas senhoras e meus senhores, meus queridos compatriotas, meus irmãos de minha raça, meus irmãos de luta, eu queria dizer-lhes, em nome do governo, neste dia magnífico de nossa independência completa e soberana.
Nosso governo forte, nacional, popular, será a salvação deste país. Convido todos os cidadãos congoleses, homens, mulheres e crianças, a irem resolutamente ao trabalho para criar uma economia nacional próspera que consagrará nossa independência econômica.
Homenageemos os combatentes da liberdade nacional!
Viva o Congo independente e soberano!

O testamento de Lumumba
Carta escrita da prisão à sua mulher Pauline Lumumba
Minha querida companheira, escrevo-te estas palavras sem saber se receberás e se ainda estarei vivo quando as receberes.
Durante toda a minha vida, pela independência do nosso país, nunca duvidamos um instante do triunfo final por causa sagrada a que os meus companheiros e eu consagramos a nossa vida. Mas o que queríamos para o nosso país, o direito a uma vida honrada, a uma dignidade sem compromissos, a uma independência sem restrições, o colonialismo belga e os seus aliados ocidentais, que encontraram apoio direto nas Nações Unidas, esse organismo em que depositamos toda a nossa confiança uma vez que tínhamos apelado para a sua assistência, nunca o quiseram.
Corromperam alguns dos nossos compatriotas, compraram outros, contribuíram para a deformação da verdade e para sabotar a nossa independência. Que mais posso fazer? Que eu esteja morto ou vivo, livre ou prisioneiro por ordem dos colonialistas, não é a minha pessoa que conta, mas o Congo, o nosso pobre país, cuja independência transformaram numa triste farsa. Mas a minha fé permanecerá inabalável.
Sei e sinto do fundo do meu ser que cedo ou tarde o meu povo se desembaraçará de todos os seus inimigos internos e externos, que levantará como um só homem para dizer «NÃO» ao colonialismo degradante e humilhante e para instaurar a sua dignidade sob um sol brilhante.
Nós não estamos sós. A África, a Ásia e os povos livres e libertados de todos os cantos do Mundo estarão sempre ao lado dos milhões de congoleses que não terminarão a sua luta enquanto os colonialistas e os seus mercenários se mantiverem no nosso país.
Aos meus filhos, que deixei, para talvez não os tornar a ver, quero que digam que o futuro do Congo é belo e que espera deles e de todos os congoleses a realização do seu dever sagrado de reconstruir a nossa independência e a sua soberania, porque sem dignidade não há liberdade; sem justiça não há dignidade e sem independência não há homens livres.
A brutalidade, as sevícias, as torturas nunca me levaram a implorar pela vida, porque prefiro morrer de cabeça levantada, com a fé indestrutível e a confiança profunda no destino do nosso país, a morrer na submissão, tendo renegado os princípios que nos são sagrados.
A história pronunciará um dia o seu julgamento, mas não será a história que se ensinará em Bruxelas, em Paris, em Washington ou nas Nações Unidas; será a que se ensinará nos países humilhados pelo colonialismo e pelos seus fantoches.
A África escreverá a sua própria história e esta será do norte ao sul do Saara, uma história de glória e de dignidade.
Não chores, companheira. Eu sei que o meu país que tanto sofre saberá defender a sua independência e liberdade.
VIVA O CONGO!
VIVA A ÁFRICA!
Prisão de thysville (Atual Mbanza–Ngungu).
Patrice Lumumba.



O assassinato de Patrice Lumumba 
“Nous ne sommes plus vos singes” (“Nós não somos mais vossos macacos”), disse o primeiro-ministro do Congo, Patrice Lumumba, ao rei Baudoin, da Bélgica, no dia da independência do país, 30 de junho de 1960.
Baudoin, nesse dia, proferira um dos mais arrogantes discursos já ouvidos de um colonizador. Na então Leopoldville (hoje, Kinshasa), o rei belga fizera uma elegia à “genialidade” de seu tio-avô, Leopoldo II – que em 1885, por cima até do Estado belga, tornara o Congo uma fazenda pessoal, com sua população como escravos.
O discurso de Lumumba foi um dos mais irrecorríveis libelos já pronunciados contra a escravidão, o racismo e o colonialismo – que em breve iremos publicar.
Assim nascia, há 50 anos, a República Democrática do Congo. Um país que teve a independência liderada por um homem como Patrice Lumumba – um dos maiores que já existiram – e que conseguiu sobreviver aos colonialistas belgas, aos imperialistas norte-americanos, e a Mobuto, está, certamente, destinado a um grande papel na História da Humanidade.
O texto que publicamos nesta página saiu originalmente em nossa edição de 7 de novembro de 2003. Para a republicação de agora, reescrevemos, para maior clareza, alguns trechos, revisamos a base documental, acrescentamos algumas informações e corrigimos um problema factual – a verdadeira identidade de Joseph Scheider, agente da CIA que depôs na Comissão Church, enviado a Leopoldville para envenenar Lumumba.


CARLOS LOPES 


Até hoje o conjunto dos documentos sobre a ação do governo dos EUA para assassinar o líder da independência do Congo e primeiro-ministro do país, Patrice Lumumba, não foram liberados. No entanto, em 1975, o relatório da comissão presidida pelo senador Frank Church revelou o conteúdo da maior parte deles.
Após Watergate e o arrombamento do consultório do psicanalista de Daniel Ellsberg - que havia divulgado a documentação secreta sobre o Vietnã conhecida como “Papéis do Pentágono” - o escândalo da ação ilegal da CIA dentro dos EUA fez com que Gerald Ford, que sucedera Nixon, instalasse uma comissão de inquérito, sob a chefia de Nelson Rockefeller. Era uma investigação de fancaria – Rockefeller, durante o governo Eisenhower, tinha sido o mentor das operações encobertas da CIA.
Porém, as informações começaram a vazar. Daí, a investigação do Congresso, que levou à demissão de William Colby, diretor-geral da CIA (e à nomeação de seu sucessor, George H. Bush, indicado por Nelson Rockefeller).
Colby fora um dos maiores assassinos da CIA durante quase 30 anos. Após sua demissão da CIA, tornou-se pacifista – em especial, ativista anti-guerra nuclear. Em 1996, Colby desapareceu, durante um trajeto de caiaque. Seu corpo foi encontrado nove dias depois – o inquérito subsequente concluiu que ele sofrera um infarto enquanto remava, caindo fora do caiaque e afogando-se.
No início de seus vários depoimentos no Congresso, Colby parecia querer reconhecimento pelos crimes da agência. Bem antes da Comissão Church, em 1971, ao lhe ser perguntado se era verdade que o Programa Phoenix - concebido e dirigido por ele no Vietnã - assassinara 60 mil “suspeitos” de serem “ativistas comunistas”, Colby respondeu que não, que os assassinados tinham sido “entre janeiro de 1968 e maio de 1971”, precisamente, 20.587 vietnamitas.
O deputado Ogden Reid, então republicano de Nova Iorque, um ex-embaixador dos EUA, perguntou: “Você está seguro de que sabemos distinguir uma pessoa leal ao Vietcong da coletividade de cidadãos do Vietnã do Sul?”.
Colby: “Não”.
Reid insistiu: “Você declararia peremptoriamente que o [Programa] Fenix nunca perpetrou matança premeditada de civis não-combatentes?”.
Resposta de Colby: “Não, eu não poderia dizer isso... Eu certamente jamais diria isso”.
Em suas memórias – que têm o título de “Homens de Honra” - Colby afirma que “a CIA nunca matou alguém por si própria”, isto é, sem ordem superior – sem ordem do presidente dos EUA, única autoridade acima da CIA. Todas as provas mostram que a afirmação é verdadeira. Naturalmente, com uma exceção: quando a vítima foi o próprio presidente. 

EISENHOWER

O assassinato de Lumumba é o primeiro dos assassinatos de líderes políticos pela CIA relatado pela Comissão Church:
A comissão coletou sólida evidência de uma conspiração para assassinar Patrice Lumumba. A forte hostilidade para com Lumumba, proclamada pelos mais altos níveis do governo, pode ter tido a intenção de iniciar uma operação de assassinato; no mínimo, ela engendrou tal operação. A evidência indica que é provável que a forte inquietação que o presidente Eisenhower expressou sobre Lumumba na reunião do Conselho de Segurança Nacional de 18 de agosto de 1960 foi tomada por Allen Dulles[diretor da CIA e irmão do secretário de Estado de Eisenhower, Foster Dulles] como uma autorização para assassinar LumumbaNota da Comissão Church: “De fato, um membro do Conselho presente à reunião de 18 de agosto acredita que testemunhou uma ordem presidencial para assassinar Lumumba” (United States Senate, Select committee to study governmental operations with respect to intelligence activities, “Interim Report: III. Alleged Assassination Plots Involving Foreign Leaders”, pág. 13).
Realmente, não se tratava de uma “autorização”, eufemismo adotado, como outros - segundo as memórias de Colby - devido à pressão da CIA. Todos os testemunhos constantes do relatório demonstram que Eisenhower ordenou o assassinato de Lumumba.
Patrice Lumumba viajara a Washington no mês anterior à ordem de Eisenhower. Recebera algumas “ofertas de ajuda” do governo americano. No entanto, o primeiro-ministro do Congo não estava disposto a ver - num dos países de maiores riquezas naturais do mundo, inclusive a maior reserva de urânio da Terra - a exploração belga, contra a qual lutara por longos anos, ser substituída pela dos norte-americanos.
Nos seus 67 dias de governo, Lumumba não fez nenhuma nacionalização ou restrição aos interesses americanos. No entanto, era óbvio que o negro - e pobre, líder de um povo pobre - Lumumba não era daqueles que se submetiam. Daí o ódio de Eisenhower, no qual era evidente o elemento racista.
Na semana que se seguiu à reunião de 18 de agosto”, prossegue o relatório Church, “um conselheiro do presidente frisou ao Grupo Especial – a subcomissão do Conselho responsável por planejar as operações encobertas - ‘a necessidade de ação muito direta’ contra Lumumba e incitou a uma decisão que não descartasse a consideração de ‘qualquer tipo de atividade que possa contribuir para livrar-se de Lumumba’. No dia seguinte, Dulles telegrafou ao Funcionário da Base da CIA em Leopoldville, República do Congo, que ‘nos altos escalões’ a ‘remoção’ de Lumumba era ‘um urgente e prioritário objetivo’. Logo depois, o serviço clandestino da CIA formulou uma trama para assassinar Lumumba” (III. “Assassination Planning and the Plots, A. Congo”, pág. 13). 

DULLES 

O partido de Lumumba, o Movimento Nacional Congolês (MNC), vencera por ampla margem as eleições que precederam a declaração de independência, no dia 30 de junho de 1960.
Logo em seguida, a CIA enviou à sua base no Congo um novo membro, Victor Hedgman. É este que o relatório Church designa como o “Funcionário da Base”. A razão é que ele tinha contato direto com a direção da CIA, sem subordinar-se ao chefe da base, Larry Devlin.
Hedgman, ao depor na comissão Church “disse que o assassinato de Lumumba não foi discutido em seus comunicados à CIA anteriores à sua partida do Congo, nem durante seu breve retorno ao quartel-general em conexão com a visita de Lumumba a Washington em julho”.
Realmente, os telegramas entre a CIA e sua base em Leopoldville (atual Kinshasa) só começaram a se referir diretamente ao assassinato a partir de agosto, ou seja, depois da reunião em que Eisenhower “expressou” sua “forte inquietação”.
Mas a CIA já estava conspirando: um telegrama do mesmo dia da reunião, do Congo para a sede da CIA, depois de mostrar dúvidas sobre se Lumumba era ou não comunista, fala em “ação para evitar outra Cuba” e que “o objetivo operacional da base é substituir Lumumba pelo grupo pró-ocidental”.
No mesmo dia, o chefe da Divisão África da CIA, Bronson Tweedy, respondeu que “estava procurando a aprovação do Departamento de Estado para a operação proposta, baseada na ‘sua e nossa crença de que Lumumba deve ser removido’”.
Logo no dia seguinte, já depois da reunião com Eisenhower, “o diretor do ramo de operações encobertas da CIA, Richard Bissell, assinou um telegrama para Leopoldville, dizendo que ‘você está autorizado a prosseguir com a operação’” (rel. cit. pág. 15).
 Cinco dias depois, em 24 de agosto, Hedgman enviou o seguinte relatório ao diretor da CIA, Allen Dulles, sobre os congoleses que a CIA estava subornando: “abordaram Kasavubu [presidente do Congo] com plano de assassinar Lumumba. Kasavubu recusou concordar, dizendo-se relutante [quanto] ao recurso à violência[por] não existir outro líder com suficiente estatura para substituir Lumumba” (rel. cit. Pág. 15).
No dia posterior, Dulles foi a uma reunião do Grupo Especial. As minutas da reunião descrevem que depois de Dulles expor o “esboço de alguns planos da CIA para ações políticas contra Lumumba, tais como arranjar um voto de não-confiança no parlamento congolês, Gordon Gray, o Assessor Especial do Presidente para Assuntos de Segurança Nacional, relatou que o presidente ‘expressou sentimentos extremamente fortes sobre a necessidade de uma ação sem rodeios’”.
Dulles não tinha escrúpulos quanto a assassinatos. Mas não era um idiota. Evidentemente, ele sabia que os tais “planos de ação política” eram inviáveis, porque o MNC tinha maioria ampla no parlamento. Portanto, seu objetivo ao apresentá-los era obter uma confirmação explícita, por parte de Eisenhower (representado, na reunião, por Gray), da ordem de assassinato. E conseguiu.
No dia seguinte, ele mesmo enviou um telegrama à base da CIA em Leopoldville:
Nos altos escalões aqui é agudamente clara a conclusão de que se Lumumba continua a ocupar alto cargo o inevitável resultado será no melhor dos casos o caos e no pior a pavimentação do caminho para a tomada do Congo pelos comunistas, com desastrosas consequências para o prestígio da ONU e para os interesses do mundo livre. Consequentemente, nós concluímos que sua remoção deve ser um primeiro e urgente objetivo e que sob as condições existentes isso deve ser uma alta prioridade de nossa ação encoberta”.
Sobre a suposta preocupação quanto à ONU, nesse momento ela (e, sobretudo, o seu secretário geral, Dag Hammarskjold) apoiava Lumumba, que exigia a saída das tropas belgas do país, enviando, a pedido do primeiro-ministro, forças de paz para o Congo. Hammarskjold seria morto um ano depois, num suspeito acidente aéreo, quando tentava um acordo na guerra civil que ensanguentou o Congo, após o assassinato de Lumumba.
No mesmo telegrama, Dulles dá à sua base no Congo “irrestrita autoridade (....)incluindo mesmo a mais agressiva ação se ela puder ser mantida encoberta. Nós imaginamos que os alvos de oportunidade devem estar presentes por si próprios a você”. (pág. 16). 

GOLPE 

Se é possível dúvida a respeito do significado desse telegrama, elas foram tiradas pelo depoimento, na Comissão Church, do então diretor de operações encobertas da CIA, Richard Bissell. Segundo Bissell, “o telegrama era um meio de indicar, através de um circunlóquio, que o presidente queria Lumumba assassinado (Nota da Comissão Church: Bissell depôs que Dulles teria usado a frase ‘altos escalões’ para referir-se ao presidente)”.
O mesmo disse Bronson Tweedy, o diretor da Divisão África da CIA. Tweedy – que redigiu a mensagem que Dulles assinou - disse que “o telegrama indicava que Dulles tinha recebido autorização do ‘nível político’”, isto é, Eisenhower.
No dia 5 de setembro de 1960, Kasavubu, a soldo da CIA, demitiu o primeiro-ministro Lumumba, passando por cima do parlamento. No dia 14, Mobutu, o cão de fila, perpetrou um sanguinário golpe de Estado, tramado e apoiado pela CIA.
Lumumba foi detido em sua residência. As tropas da ONU impediram o seu assassinato naquele momento.
No entanto, mostra a Comissão Church, “a evidência indica que o afastamento de Lumumba não aliviou as preocupações a respeito dele no governo dos Estados Unidos. Durante esse período, funcionários da CIA no Congo aconselharam e ajudaram contatos congoleses conhecidos pela intenção de assassinar Lumumba. Os funcionários também instaram alguns desses contatos congoleses ao ‘permanente descarte’ de Lumumba. Além disso, a CIA se opôs à reabertura do parlamento depois do golpe por causa da probabilidade de que o parlamento quisesse Lumumba de volta ao poder” (pág. 16).
Sete dias antes do golpe – e dois dias após a demissão de Lumumba - um telegrama de Leopoldville para Dulles dizia, ao relatar um encontro com “políticos congoleses de alto nível em estreito contato com a base da CIA”:
Lumumba na oposição é quase tão perigoso quanto no cargo [o que] indica e implica a conclusão [que] deve ser eliminado fisicamente”.
No telegrama, a “conclusão” é atribuída aos congoleses. Mas era a CIA que “instava ao permanente descarte” de Lumumba. Na véspera do golpe, o diretor da Divisão África, Bronson Tweedy, telegrafou à sua base: “Talentos e dinamismo de Lumumba aparecem [como] fator esmagador no restabelecimento de sua posição a cada vez que parece meio perdido. Em outras palavras, a cada momento Lumumba tem a oportunidade de ter a última palavra. Ele pode influenciar os acontecimentos em seu proveito”. 

GOTTLIEB 

Transcrevemos um dos parágrafos do Relatório da Comissão Church:
Um dia depois do golpe de Mobutu, o ‘funcionário da base’ [Hedgman] relatou que estava servindo como consultor de um esforço congolês para ‘eliminar’ Lumumba, devido ao seu ‘medo’ de que Lumumba podia, na verdade, ter se fortalecido ao colocar-se sob a custódia da ONU, o que permitia uma base segura de operações. Hedgman concluía: ‘A única solução é removê-lo da cena rapidamente’ (Leopoldville para o Diretor [Dulles], 15/09/60)”.
No entanto, os traidores congoleses não tinham coragem de assassinar Lumumba, o que fez com que a CIA redobrasse a instigação. No dia 17, o “funcionário da base” relatou outro encontro, com um “senador congolês”: “[o senador] relutantemente concordou que Lumumba deve ir permanentemente. Desconfia [de outro líder congolês] mas deseja fazer a paz com ele para os propósitos de eliminação de Lumumba (Leopoldville ao Diretor, 17/09/60)”.
Os traidores tinham medo de Lumumba, ou seja, do povo. A CIA, então, que tinha tramado o golpe de Mobutu, inventou um golpe de Estado... liderado por Lumumba: “o ‘funcionário da base’ advertiu a um líder-chave congolês sobre a trama de golpe articulada por Lumumba e dois correligionários, e ‘instou à prisão ou outro mais permanente descarte de Lumumba, Gizenga e Mulele’ (Leopoldville para o Diretor, 20/09/60).
Gizenga e Mulele eram os principais líderes do MNC, depois de Lumumba.
Nessa situação, Washington mandou um enviado ao Congo: “Bissell pediu a um cientista da CIA, Joseph Scheider, para fazer preparados para assassinar ou incapacitar um ‘líder africano’. De acordo com [o depoimento de] Scheider, Bissell disse que o encargo vinha da ‘mais alta autoridade’. Scheider procurou materiais biológicos tóxicos e recebeu ordem de Tweedy para entregar esses materiais ao funcionário da base em Leopoldville. Em setembro, Scheider entregou as substâncias letais ao funcionário da base em Leopoldville e instruiu-o para assassinar Patrice Lumumba. O funcionário da base testemunhou que foi dito por Scheider que o presidente Eisenhower tinha ordenado o assassinato de Lumumba”.
Joseph Scheider, sabe-se hoje, era um pseudônimo utilizado no relatório da Comissão Church para encobrir Sidney Gottlieb, o chefe do MKultra – o notório departamento de “controle de mentes” da CIA. Mais tarde, o chefe da base da CIA, Larry Devlin, relatou (ver seu depoimento no documentário “Who Killed Lumumba?”, de David Akerman, da BBC) que, quando Lumumba ainda estava sob a proteção da ONU, recebeu ordens para esperar um enviado, e que este era o sinistro Gottlieb, que entregou-lhe um tubo de pasta de dente envenenada, para que a introduzisse no banheiro da residência de Lumumba.
Scheider, aliás, Gottlieb, segundo o seu depoimento e o de Hedgman, partiu do Congo em 30 de outubro. A prisão domiciliar de Lumumba ainda duraria até 27 de novembro.
No entanto, baseado no fracasso das tentativas da CIA, o relatório Church conclui por sua inocência e a do governo americano.
Para chegar a essa conclusão, os membros da comissão ignoraram a ação da CIA na perseguição a Lumumba, quando este tentou chegar a Stanleyville, onde seus partidários se concentraram após o golpe de Estado, a ação americana para impedir que as tropas da ONU o protegessem e evitassem sua prisão e tortura pública e, sobretudo, o incitamento da CIA (documentado, entre outros, por Akerman) para que Mobutu o entregasse ao psicopata Moise Tshombe - e aos mercenários belgas que o sustentavam em Katanga.

Hora do Povo

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