segunda-feira, julho 12, 2010

BP: Operação Bota ainda em marcha

 

Não é possível contar toda a história de canalhices da British Petroleum em poucas páginas, nem as conseqüências de seus negócios na geopolítica, na balança da guerra e da paz, na economia, no meio ambiente e no mundo em geral, envolvendo desde a política do Oriente Médio até pessoas sem posses, às vezes assassinadas em comunidades remotas. Este artigo oferece apenas um vislumbre da enormidade de crimes cometidos por essa empresa. A BP não representa nenhuma exceção entre as empresas petroleiras nem entre as grandes corporações. Sua história, além do vazamento de petróleo no Golfo do México, constitui um exemplo de enorme poder e impunidade. O artigo é de Julie Wark, do SinPermiso.

Julie Wark - SinPermiso

O primeiro golpe de estado da British Petroleum, na ocasião chamadaAnglo-Iranian Oil Company, foi executado com a ajuda da CIA em 1953. Cento e cinqüenta e sete anos mais tarde, seus golpes de estado consistem em usurpar, comprar ou driblar as funções do Estado. Hoje oMineral Management Service (Serviço de Administração de Minerais), do Departamento do Interior dos Estados Unidos parece estar sob seu mando. Apenas onze dias antes da catástrofe do Golfo do México, a BP conseguiu para esta operação a “exclusão categórica” do estudo de impacto ambiental da National Environment Policy (Política Nacional Ambiental) (1).
Com sede em Londres e escritório central nos EUA localizado em Houston, a BP é a maior corporação do Reino Unido e uma das maiores do mundo. Os negócios da primeira empresa a explorar petróleo no Oriente Médio remontam a 1901 e a um “bon vivant” londrino, William Knox D’Arcy, que negociou direitos de exploração com Mozzafar al-Din Xá Qajar, da Pérsia (Irã). O negócio passou por vários nomes: Anglo-Persian Oil Company (1908), Anglo-Iranian OilCompany (1935), British Petroleum (1954), BP Amoco (1998) e, em 2000, BP. Em 1913, o governo britânico adquiriu a participação majoritária, mas com a campanha privatista de Margaret Thatcher, a totalidade de seus ativos foi vendida entre 1979 e 1987.
O delírio de riqueza do “bon vivant” de Londres transformou-se em pesadelo para milhões de pessoas em todo o mundo, começando pelo Irã. Nas cláusulas contratuais da primeira exploração, além das condições de trabalho dos operários iranianos roçando a escravidão, descartou-se desde o início a soberania do país. Em agosto de 1941, a Grã Bretanha e a União Soviética ocuparam o Irã e rapidamente forçaram o repressor Xá Reza a abdicar em nome de seu filho Mohammed Reza Pahlevi, inaugurando assim um novo regime de repressão, corrupção, brutalidade e luxo extremo. Em 1951, o Majlis (parlamento) votou unanimemente pela nacionalização e, pouco depois, tomou posse no cargo de primeiro ministro o respeitado estadista Mohammed Mossadegh. A reação dos ingleses foi draconiana e, hoje em dia, fartamente familiar: bloqueio militar, fim da exportação de bens vitais, congelamento de contas bancárias na Inglaterra, e articulações nas Nações Unidas para aprovar resoluções contra o Irã. Mossadegh buscava uma solução negociada, mas os ingleses já tinham optado pela força e, em 1952, alegando o perigo do comunismo no debilitado Estado, obtiveram o respaldo do presidente Eisenhower. Em 1953, com políticos, militares, criminosos, prostitutas e jornalistas bem comprados, e informada pela embaixada britânica e seus espiões, a CIA conseguiu executar seu primeiro golpe de Estado, pro meio do qual reinstalou no poder o Xá Reza Pahlevi.
A tirania do Xá preparou o terreno para a revolução islâmica de 1979. Com o endurecimento do regime do Irã formou-se uma rede global anti-ocidental cada vê mais dependente das táticas do terror. O que os ingleses batizaram como Operation Boot (Operação Bota) e os estadunidenses “Operation Ajax” “(...)ensinou aos tiranos e aos déspotas que os governos mais poderosos do mundo estavam dispostos a tolerar a opressão sem limites sempre e quando os regimes opressivos tratassem bem o Ocidente e suas empresas petroleiras. Isso ajudou a mudar o equilíbrio político contra a liberdade e a favor da ditadura” (2).
Há poucos lugares no mundo a salvo da espoliação da BP. Na Colômbia, a empresa é acusada de beneficiar-se do regime de terror dos paramilitares que protegiam os 730 quilômetros do oledoduto Ocensa, e foi obrigada a pagar uma indenização multimilionária a um grupo de camponeses. O oleoduto causou desmatamento, deslizamento de terras, contaminação do solo e diminuição do lençol freático. Colheitas foram perdidas, criações de peixes foram arruinadas e muito gado morreu. Em 1992, a BP firmou um contrato com a empresa inglesa Defence Systems Ltda (DSL) que estabeleceu a Defence Systems Colômbia (DSC) (3) para suas operações colombianas. Três anos mais tarde, a BP firmou acordos com o Ministério da Defesa da Colômbia segundo os quais a BP pagaria ao governo US$ 2,2 milhões que seriam utilizados em sua maior parte para a Brigada XVI do exército proteger as instalações da BP.
A Brigada introduziu na zona de Casanare a guerra suja ou, como diz o povo, a tática de deixar o peixe fora d’água. A DSC ensinava estratégias militares e de contrainsurgência à polícia encarregada de proteger o perímetro das instalações. A população aterrorizada a considerava com razão mais uma força militar na zona. Além disso, um empregado da DSC revelou a jornalistas ingleses que havia trabalhado para coordenar uma rede de espiões nos povoados da zona do oleoduto para controlar os líderes sindicais e comunitários. O departamento de Segurança da empresa Ocensa pagava delatores e compartilhava informações com o Ministério da Defesa e com a brigada local do exército (4). Em resumo, a BP criou uma zona de exceção na Colômbia.
Na Ásia Central, a BP é um membro destacado do consórcio Baku-Tbilisi-Ceyhan (BTC) que controla o oleoduto que passa pelo Azerbaijão, Geórgia e Turquia, o qual, fortemente financiado pelo Banco Mundial e por outras agências estatais, foi inaugurado em junho de 2005. Demandas judiciais contra o governo da Turquia relativas a abusos de direitos humanos foram apresentadas no Tribunal de Justiça da União Européia e no Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Não obstante, o governo turco concedeu a BTC poderes sobre o corredor do oleodouto que anulam as leis de direitos humanos, ambientais e sociais, e despojam os povos da região de seus direitos civis. BTC tem acesso limitado à água e está isento de responsabilidade no caso de um derramamento de petróleo. O oleoduto requer um corredor militarizado que põe em perigo o frágil acordo de trégua de hostilidades entre Turquia e grupos curdos. Mesmo antes de ser concluído, o oleoduto BTC já influía na geopolítica petroleira. Ele é de enorme importância estratégica na Transcaucasiana e, graças a BTC, os EUA e outros poderes ocidentais podem intervir muito mais nos assuntos da região.
Nem os Estados Unidos estão imunes. Os dados do inventário de emissões tóxicas da Environmental Protection Agency (Agência de Proteção Ambiental) identificam a BP como a empresa mais contaminadora do país. Em 1999, uma filial, a BP Exploration Alaska, teve que pagar US$ 22 milhões por danos provocados pelo vazamento de resíduos tóxicos em Endicott Island. Em agosto de 2006, foi obrigada a fechar as instalações da Bahia Prudhoe em conseqüência de um derramamento de petróleo e diesel. Na Califórnia, a BP é um dos patrocinadores mais generosos de uma iniciativa legislativa para eliminar a lei de Unfair Business Competition (Lei de Competição Desleal) usada por grupos ambientalistas para processar empresas petroleiras pela contaminação de água potável por éter-metil-tert-butílico (MTBE). No Canadá, a BP extrai petróleo de areias de alcatrão, um processo que consume enormes quantidades de água e produz quatro vezes mais emissões de dióxido de carbono do que a perfuração convencional. O povo indígena Cree denuncia que a empresa está destruindo o velhíssimo bosque boreal, degradando o território com suas minas a céu aberto, contaminando tanto a água como a cadeia alimentar e pondo em perigo a fauna silvestre e sua forma de vida (5).
Os tentáculos da BP se estendem também no ensino superior. Em fevereiro de 2007, em meio a uma forte oposição de professores e alunos, a administração da Universidade da Califórnia, em Berkeley (UCB), anunciou um convênio entre a UCB e a BP, pelo qual a empresa financiaria com US$ 500 milhões durante dez anos o Instituto de Biociências da Energia, dedicado à investigação de biocombustíveis e biologia sintética. Com essa demonstração de poder em uma universidade pública, com esta vontade de privatizar o trabalho intelectual e de comercializar os resultados da investigação, a BP faz com que “(...) os trabalhadores dos países desenvolvidos mais influentes subvencionem a exploração de mais bens ecológicos do mundo em vias de desenvolvimento para servir às elites, aqueles que não se importam em tirar a comida da boca do povo para encher seus bolsos de ouro. Socializar os gastos para benefício privado não é nada novo no sistema capitalista. Não obstante, esse caso dá outra volta no parafuso com a combinação de ciência desacreditada, imperialismo ecológico e o sofisma do desenvolvimento sustentável” (6). Com este golpe, a BP consegue o controle de cientistas universitários, de alunos e de laboratórios além de dotar seus projetos supostamente sustentáveis de um verniz acadêmico.
A BP tem um negócio de bilhões de dólares com o governo dos EUA na forma de contratos de defesa anuais e como fornecedor principal de combustível ao maior consumidor mundial de gás e petróleo: o Pentágono. Segundo o Center for Responsive Politics, a BP ocupa o centésimo lugar entre os doadores mais importantes das campanhas políticas: mais de US$ 5 milhões desde 1990 repartidos entre republicanos e democratas, com os percentuais de 72% e 28%, respectivamente. O Centro aponta o presidente Obama como o destinatário que mais se beneficiou durante os últimos 20 anos das doações do comitê de “ação política” da BP ($77.051) (7). A BP, seus comitês de “ação política” e seus empregados contribuíram com mais de US$ 3,5 milhões aos candidatos federais durante os últimos cinco anos, fora o dinheiro destinado ao lobby. Em 2009, liberou US$ 15,9 milhões em seus esforços por influir na política energética nacional (8). Desta maneira, com uma gestão bem azeitada, consegue-se a “exclusão categórica” da política ambiental.
Evidentemente, a BP não trabalha sozinha. Um rápido olhar sobre algumas de suas conexões corporativas e governamentais é educativo, para não dizer alucinante. O presidente do Goldman Sachs Internacional, Peter Sutherland – que, com oito outros gerentes do Goldman Sachs, recebeu mais de US$ 12 milhões em honorários em 2009 – (9) e presidente da BP até que muito astutamente demitiu-se em dezembro de 2009, tem um currículo fascinante na página da Comissão Trilateral (10): “(...) É também presidente do Goldman Sachs International (1995 – até agora). Nomeou-se presidente da London School of Economics em 2008. Atualmente é representante especial da ONU para a Migração e o Desenvolvimento. Anteriormente era diretor-geral fundador da Organização Mundial do Comércio (OMC) e diretor-geral do Acordo Geral Sobre Comércio e Tarifas (GATT) desde julho de 1993, além de desempenhar um papel decisivo nos acordos da Rodada Uruguai, do GATT. É membro do comitê diretor do grupo Bilderberg e também assessor financeiro do Vaticano”.
Igualmente astuta foi sua empresa Goldman Sachs quando vendeu 44% de suas ações da BP no primeiro trimestre de 2010, embolsando cerca de US$ 266 milhões e economizando US$ 96 milhões a preços atuais (11). As cifras apontadas pelo Center for Responsive Politics demonstram que o comitê de “ação política” do Goldman Sachs e empregados individuais doaram US$ 994.795 durante 2007 e 2008 para a campanha de Obama. Outro homem da BP com agudo senso de oportunidade é o chefe executivo Tony Hayward – anteriormente membro da junta consultiva do Citibank – que vendeu ações da BP avaliadas em US$ 2.130.000, um terço de sua participação, somente algumas semanas antes do desastre do Golfo do México (12). Já os aproximadamente 18 milhões de acionistas ingleses não foram tão bem informados, especialmente muitos pensionistas, já que os fundos de aposentadoria britânicos dependem de lucros na Bolsa que pagam 1 libra de cada 7 que recebem anualmente. A queda livre do preço das ações de “rentabilidade segura” da BP até mais de 50% de seu valor em abril e o fato de que a empresa terá que pagar cerca de US$ 13,5 bilhões para um fundo de compensação significam que o pagamento de dividendos ficará suspenso até, no mínimo, 2011.
Demandada juntamente com a BP na maioria das 150 ações judiciais provocadas pelo desastre do Golfo do México, está a Halliburton Energy Services, a empresa contratada para a parte técnica da operação, encarregada da injeção de cimento no subsolo. Esta equipe foi forjada há anos durante o planejamento da invasão do Iraque. A BP foi encarregada, então, pelo Ministério do petróleo inglês de realizar estudos técnicos e de fornecer assessoria, análise e formação para o campo petrolífero de Rumaila. Nas palavras de Ethical Consumer:
“(...) antes da invasão, a BP treinava as tropas inglesas para manter e dirigir os campos petrolíferos que tinham sido apoderados no sul do Iraque. A gigante estadunidense Halliburton, que fornece serviços às empresas para a exploração, o desenvolvimento e a produção de petróleo e gás, foi encarregada de restaurar e reconstruir a infraestrutura petroleira e, nesta condição, acompanhava as tropas aos campos petrolíferos” (13).
Há alguns dias, um consórcio dirigido pela BP conseguiu o contrato para desenvolver o maior campo petrolífero do Iraque, Rumaila.
Não é possível contar toda a história de canalhices da BP em poucas páginas, nem as conseqüências de seus negócios na geopolítica, na balança da guerra e da paz, na economia, no meio ambiente e no mundo em geral, envolvendo desde a política do Oriente Médio até pessoas sem posses, às vezes assassinadas em comunidades remotas. Essas notas oferecem apenas um vislumbre da enormidade de crimes cometidos por essa empresa. A BP não representa nenhuma exceção entre as empresas petroleiras nem entre as grandes corporações. Sua história, além do vazamento de petróleo no Golfo do México, constitui um exemplo mais de seu enorme poder e impunidade. E não há nada reconfortante na notícia da semana anterior que nos informa que o novo governo de coalizão britânico considera conveniente nomear o antigo chefe executivo da BP (1995-2007), também antigo diretor não executivo de Goldman Sachs e “O Rei Sol”, Lord Browne, como o novo superdiretor de Whitehall, encarregado de difundir, no coração do governo, o espírito de valores comerciais” (14). Enquanto isso, a linguagem dos impunes delata bastante a continuada presença da bota. Em junho, um porta-voz da Casa Branca afirmou que a tarefa do presidente Obama é apertar a bota no pescoço da BP, enquanto que o jornal inglês The Telegraph (15) diz que a bota de Obama aperta o pescoço dos pensionistas ingleses. Na verdade, os impunes diretores e funcionários fabulosamente bem remunerados da BP estão calçando as mesmíssimas botas e pisoteiam gente indefesa.


Notas:
1. Juliet Eilperin, 2010 “U.S. Exempted BP’s Gulf of Mexico Drilling from Environmental Impact Study”, The Washington Post, 5 de mayo.
2. Stephen Kinser, 2003, All the Shah’s Men: An American Coup and the Roots of Middle East Terror, John Wiley and Sons, p.204.
3. Con respecto a DSC, véase http:www.sourcewatch.org/index.php?title=Defence Systems Limited#Colombia.
4. Véase el informe de la ONG Platform, Greg Muttitt and James Marriott, 2002, “Line of Fire: BP and Rights Abuses in Colombia”, http://www.platformlondon.org/carbonweb/documents/chapter11.pdf.
5. Terry Macalister, “Cree Aboriginal Group to Join London Climate Camp Protest over Tar Sands”, The Guardian, 23 de agosto de 2010.
6. Hannah Holleman y Rebecca Clausen, 2008, “Biofuels, BP-Berkeley and the New Ecological Imperialism”, http://mrzine.monthlyreview.org/2008/hc160108.html.
7. John Byrne, 2010 “Obama Is Biggest Recipient of BP’s Politicap Action Cash in the Last Twenty Years”, The Raw Story, 5 de mayo, http://rawstory.com/rs/2010/0505/obama-biggest-recipient-bp-political-action-money-20-years/.
8. Erica Lovley, 2010, “Obama Biggest Recipient of Bp Cash”, Politico, 5 de mayo, http:www.politico.com/news/stories/0510/36783.html.
9. Nick Webb, 2010, “Goldman Directors Reap Fees of €9.5m”, Sunday Independent, 23 de mayo de 2010.
10. Véase http://www.trilateral.org/membship/bios/ps.htm
11. Véase http://rawstory.com/rs/2010/0602/month-oil-spill-goldman-sachs-sold-250-million-bp-stock/.
12. John Swaine and Robert Winnett, 2010, “BP Chief Tony Hayward Sold Shares Weeks Before Oil Spill”, The Telegraph, 5 de junio.
13. Véase http://www.ethicalconsumer.org/CommentAnalysis/CorporateWatch/IraqWarProfits.aspx.
14. Polly Curtis y Terry Macalister, “Former BP Chief John Browne Gets Whitehall Role”, The Guardian, 30 de junio de 2010.
15. Louise Armitstead y Myra Butterworth, 2010, “Barack Obama’s Attacks on BP Hurting British Pensioners”, The Daily Telegraph, 9 June http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/northamerica/usa/barackobama/7815713/Barack-Obamas-attacks-on-BP-hurting-British-pensioners.html.
(*) Julie Wark é integrante do Conselho Editorial de SinPermiso.
Tradução: Katarina Peixoto

sexta-feira, julho 02, 2010

Senado deixa 2 milhões sem auxílio desemprego nos EUA

 

A obstrução da bancada republicana impede a prorrogação do auxílio desemprego dos americanos há mais tempo desempregados e deixa também os estados sem US$ 50 bilhões em verbas federais

Até este fim de semana – o 4 de Julho, data da independência dos EUA – a obstrução da bancada republicana no Senado já deixou sem a prorrogação do auxílio-desemprego a 1,7 milhão dos norte-americanos há mais tempo desempregados, e esse total ultrapassará os 2 milhões até o dia 12, quando o Congresso retoma as atividades após o recesso de meio de ano.

Deixou, também, os estados – até mesmo os governados por eles, como a combalida Califórnia - sem US$ 50 bilhões em verbas federais de emergência, inadiáveis para manter em funcionamento o Medicaid, a assistência médica aos miseráveis, e para evitar que milhares de professores sejam demitidos.

A lei que prorroga o auxílio-desemprego até novembro para esses trabalhadores está em tramitação há 11 semanas, mas a situação ficou crítica a partir de 1º de junho, dia seguinte ao “Memorial Day” – o feriado nacional em homenagem aos caídos na guerra -, quando expirou a extensão de emergência decretada por Obama em 2009. A extensão, que complementa o auxílio-desemprego pago pelos estados por 26 semanas (com variações), é bancada pelo governo federal em caráter de emergência com recursos do Tesouro. Apenas nos números oficiais – subestimados – o total de desempregados há mais de seis meses é de 7 milhões.

AJUDA SÓ A BANCO

Os mesmos republicanos que fabricaram um déficit monstruoso cortando impostos dos ricos por oito anos, se metendo em duas guerras e, depois, salvando Wall Street com trilhões de dólares, agora gritam que não dá para dar um modesto cheque de US$ 300 semanais a um cidadão, sem emprego há seis meses ou mais, para que possa alimentar sua família, comprar um tênis, e não ir para debaixo de uma ponte.

“Ninguém está pondo em questão o valor desses programas muito importantes”, asseverou o republicano de Massachusets, senador Scott Brown. Mas, acrescentou cinicamente, “precisamos viver dentro das nossas posses”, e é hora de “fazer escolhas difíceis”.

Mas a cruzada do “déficit first” e do “nenhum cent para a gentalha” não é composta só por republicanos; conta com a adesão de vários democratas. A extensão por mais seis meses do seguro-desemprego custa cerca de US$ 40 bilhões, para um país com PIB de US$ 13 trilhões. Aliás, menos, porque os republicanos “moderados”, para emprestar 1 ou 2 votos, sem os quais a lei não passa, cobram caro. Assim, os US$ 40 bilhões previstos já caíram para US$ 33 bilhões, após subtração do diminuto adicional de US$ 25 semanais que Obama havia instituído no ano passado para todos os desempregados que recebiam o auxílio.

Nas duas votações anteriores, os paladinos do “controle do déficit” nas costas dos desvalidos, haviam feito os desempregados, nos termos de editorial do “New York Times”, de “reféns” de seu pleito para derrubar item da lei que aumentava o imposto pago por gerentes de fundos especulativos (alíquota 15%) para o mesmo patamar (35%) dos demais norte-americanos de mesma faixa de renda.

EXCOMUNHÃO

O mesmo Scott do “viver conforme nossas posses” e das “difíceis escolhas” - anunciou depois ao líder democrata no Senado, Harry Reid, que não iria mais votar a favor da lei da reforma financeira por causa de uma taxa sobre os bancos de US$ 19 bilhões, em dez anos, para prevenir bailouts. Como se sabe, banco pagar imposto, para essa gente, é pecado mortal, caso de excomunhão.

No mesmo raciocínio, reforço de caixa do Pentágono, especialmente dotação para as guerras, não piora déficit. Jamais. É certa a aprovação de US$ 60 bilhões, e só com a parcela diretamente voltada para o Afeganistão – US$ 37 bilhões - já dava para cobrir aqueles seis meses de seguro-desemprego que os republicanos insistem em tentar garfar.

Na última tentativa de votar a extensão do benefício, na quarta-feira dia 30 de junho, ficou faltando um voto para superar a barreira dos 60 votos, necessários para derrubar a obstrução. Duas senadoras republicanas, Olympia Snowe e Susan Collins votaram com os democratas. O senador democrata Ben Nelson manteve o voto “não”. O líder Reid anunciou que só voltará a colocar a lei em votação quando tiver assumido o substituto do senador Robert Byrd, que faleceu esta semana.

ANTONIO PIMENTA Hora do Povo

O discurso que permanece gravado nos corações e nas mentes dos congoleses

Patrice Lumumba

Oferecemos aos nossos leitores a íntegra, traduzida do texto em francês, do discurso de Patrice Lumumba no dia da independência do Congo, 30 de junho de 1960.
O Movimento Nacional Congolês (MNC), preocupado com a unidade política do país, estabelecera, para formar o governo após a independência, aliança com outros partidos - o principal deles era a ABAKO (Alliance des Bakongo), apesar de, ao contrário do MNC, que tinha como programa a superação das divisões tribais, esse outro partido, sempre bastante conciliador em relação ao colonialismo belga, ser, até mesmo no nome, um grupo tribal.
Ao líder da ABAKO, Joseph Kasavubu, caberia a Presidência do Congo, enquanto o MNC, com sua maioria parlamentar, indicaria o primeiro-ministro - Patrice Lumumba.
No entanto, o primeiro-ministro foi excluído da lista de oradores na cerimônia oficial, com a presença do rei Baudoin, da Bélgica. Apenas Kasavubu falaria – e, após o arrogante pronunciamento do rei, fez o que alguém já chamou de “discurso de lacaio”.
Então, Lumumba levantou-se e ninguém o impediu de falar. Pronunciou o que é um dos grandes monumentos oratórios da Humanidade. Ao contrário de Kasavubu, não dirigiu-se ao rei, exceto ao final, tratando-o pelo genérico “Sire”, ao invés de “Majestade”. Preferiu dirigir-se aos seus compatriotas.
O discurso de Lumumba não é, em nenhum momento, histérico ou inábil politicamente – inclusive, como o leitor verá, em relação à Bélgica. Mas, também, nem por um momento é submisso.
Nesta página, republicamos, ao lado desse discurso, o último escrito de Lumumba, sua carta à esposa, Pauline, quando já estava preso e sob quase constante tortura.
Não faremos mais comentários sobre estes documentos, pois o leitor poderá fazer por si próprio o seu julgamento.
Resta, ainda, contar, embora muito sucintamente, o final – até agora - desta epopeia:
1) Kasavubu pagaria muito caro pela traição a Lumumba: depois de ceder completamente aos colonialistas belgas e imperialistas norte-americanos, foi deposto em 1965 por Mobuto, apoiado e instrumentalizado pela CIA. Kasavubu passaria quatro anos numa terrível “prisão domiciliar” e morreria por falta de cuidados médicos.
2)  Pierre Mulele, ministro da Educação de Lumumba, terceiro nome na lista da CIA para ser eliminado, liderou, a partir do final de 1963 até 1968, a luta armada conhecida como a Revolta dos Simbas (leões, na língua swahili). Exilado em Brazzaville, na República do Congo (ex-Congo francês), foi obrigado a voltar a Kinshasa, depois que Mobuto assinou um acordo com esse país, garantindo “anistia” para Mulele e seus companheiros. O próprio ministro do Exterior de Mobuto foi a Brazzaville para acompanhar Mulele em seu retorno, como suposta demonstração de que a anistia seria respeitada. Ao chegar a Kinshasa, Mulele foi preso, torturado publicamente e, ainda vivo, esquartejado. Apesar dos sofrimentos inauditos, que nos poupamos de descrever, Mulele manteve até a morte aquela rara dignidade referida por todos aqueles que o conheceram. Hoje, a avenida principal de Kinshasa tem o nome de Pierre Mulele.
3) A ditadura de Mobuto foi derrubada em 1997, pelo levante liderado pelo presidente Laurent Kabila.
4) Pauline Lumumba e seus filhos voltaram ao Congo depois da derrubada da ditadura e hoje participam da vida política congolesa.
5) Antoine Gizenga, vice-primeiro-ministro de Lumumba e segundo na lista de eliminação da CIA, liderou a resistência logo após o assassinato, saindo do país após a queda de Stanleyville (hoje, Kisangani). Depois de derrubada a ditadura, Gizenga voltou ao Congo e foi primeiro-ministro do presidente Joseph Kabila; hoje é líder do Partido Lumumbista Unificado (PALU) e herói nacional do país.
6) As ideias de Lumumba são hoje a principal referência do movimento de independência nacional dos países africanos.
7)  O Congo, apesar de todas as dificuldades, após a derrubada de Mobuto, resistiu à recolonização – e continua a trajetória daquela “luta sublime” que Lumumba apontou em seu discurso do dia da independência.
C.L. - Hora do Povo
PATRICE LUMUMBA
Congoleses e congolesas,
Combatentes hoje vitoriosos da independência,
Eu vos saúdo em nome do governo congolês.
A todos vocês, meus amigos, que lutaram sem descanso ao nosso lado, peço que façam deste 30 de junho de 1960 uma data ilustre e que a guardem indelevelmente gravada em seus corações, uma data que vocês ensinarão, com orgulho, aos seus filhos o significado, para que eles façam conhecer aos seus filhos a história gloriosa da nossa luta pela liberdade.
Pois esta independência do Congo, se hoje é proclamada com a concordância da Bélgica, país amigo com quem tratamos de igual para igual, nenhum congolês digno deste nome jamais poderá esquecer, foi conquistada pela luta, uma luta de todos os dias, uma luta ardente e idealista, uma luta na qual não poupamos nem nossas forças, nem nossas privações, nossos sofrimentos, nem nosso sangue.
Desta luta, que foi de lágrimas, fogo e sangue, estamos orgulhosos até ao mais profundo de nós mesmos, pois foi uma luta nobre e justa, uma luta indispensável para por fim à humilhante escravidão que nos era imposta pela força.
Qual foi a nossa sorte durante 80 anos de regime colonial, as nossas  feridas estão ainda muito frescas e muito dolorosas para que nós possamos removê-las da nossa memória; nós conhecemos o trabalho exaustivo, exigido em troca de salários que não nos permitiam nem comer para matar a nossa fome, nem nos vestir ou morar decentemente, nem criar nossos filhos como seres amados.
Nós conhecemos as ironias, os insultos, as pancadas que devíamos suportar, de manhã, de tarde e de noite, porque éramos negros.
Quem esquecerá que a um negro se dizia “tu”, certamente não como se diz a um amigo, mas porque o respeitável “vous” era reservado somente aos brancos?
Nós conhecemos a pilhagem de nossas terras, espoliadas em nome de textos pretensamente legais que não faziam mais do que reconhecer o direito do mais forte.
Nós conhecemos o que era a lei não ser a mesma, caso se tratasse de um branco ou de um negro, confortável para uns, cruel e desumana para os outros.
Nós conhecemos os sofrimentos atrozes dos que foram degredados por opiniões políticas ou por crenças religiosas, exilados em sua própria pátria, com sorte pior do que a morte.
Nós conhecemos o que era haver casas magníficas para os brancos e palhoças miseráveis para os negros, ou, nas lojas ditas europeias, um negro nem poder entrar, ou, nas barcaças, um negro viajar como um galináceo, aos pés do branco em sua cabine de luxo.
Quem esquecerá, enfim, os fuzilamentos onde pereceram tantos de nossos irmãos, as masmorras onde foram brutalmente atirados aqueles que não queriam mais se submeter ao regime de injustiça, opressão e exploração?
Tudo isso, meus irmãos, nós temos sofrido profundamente. Mas, também, tudo isso, nós, que fomos escolhidos, pelo voto dos seus representantes eleitos, para governar o nosso amado país, nós, que sofremos em nosso corpo e em nosso coração a opressão colonialista, dizemos a vocês, em voz alta: tudo isso finalmente acabou.
A República do Congo foi proclamada e o nosso querido país está agora nas mãos dos seus próprios filhos. Juntos, meus irmãos, minhas irmãs, começaremos uma nova luta, uma luta sublime que levará o nosso país à paz, à prosperidade e à grandeza.
Juntos, nós vamos estabelecer a justiça social e assegurar que cada um receba a justa remuneração por seu trabalho.
Mostraremos ao mundo o que pode fazer o homem negro quando trabalha em liberdade, e faremos do Congo o centro de iluminação de toda a África.
Nós vigiaremos para que as terras de nossa pátria tragam benefícios verdadeiramente para seus filhos.
Nós vamos rever todas as leis de outrora e fazer novas, que serão justas e nobres. Nós vamos pôr fim à opressão do pensamento livre e fazer com que todos os cidadãos gozem plenamente das liberdades fundamentais previstas na Declaração dos Direitos do Homem.
Nós vamos suprimir eficazmente toda discriminação, seja ela qual for, e dar a cada um o justo lugar que merece sua dignidade humana, seu trabalho e sua dedicação ao país.
Nós faremos reinar, não a paz dos fuzis e das baionetas, mas a paz dos corações e da boa vontade.
Para tudo isto, queridos compatriotas, podem estar seguros de que poderemos contar não somente com as nossas enormes forças e as nossas imensas riquezas, mas também com a ajuda de numerosos países estrangeiros, cuja colaboração, sempre que for leal e não procurar nos impor uma política, seja ela qual for, aceitaremos sempre.
Nesse domínio, a Bélgica, que compreende enfim o sentido da História, não tentando opor-se à nossa independência, está disposta a conceder-nos sua ajuda e amizade, e um tratado foi assinado nesse sentido entre nossos dois países iguais e independentes.
Essa cooperação, estou seguro, será vantajosa para os dois países. De nosso lado, mantendo-nos alertas, saberemos respeitar os compromissos livremente consentidos.
Assim, tanto interna quanto externamente, o Congo, nossa querida república que meu governo irá criar, será um país rico, livre e próspero.
Mas, para que cheguemos sem atraso a esse objetivo, peço a todos, legisladores e cidadãos congoleses, que me ajudem com todas as suas forças.
Peço a todos que esqueçam as querelas tribais que nos esgotam e que nos fazem correr o risco de sermos desprezados no exterior. Peço à minoria parlamentar que ajude meu governo com uma oposição construtiva, ficando estritamente dentro das vias legais e democráticas.
Peço a todos que não recuem diante de nenhum sacrifício para assegurar o ressurgir da nossa grandiosa tarefa. Peço a todos, finalmente, que respeitem incondicionalmente a vida e os bens de seus concidadãos e dos estrangeiros estabelecidos em nosso país.
Se a conduta desses estrangeiros deixar a desejar, a nossa Justiça estará pronta a expulsá-los do território da República; se, pelo contrário, sua conduta é boa, é preciso deixá-los em paz, pois também eles trabalham para a prosperidade de nosso país.
A independência do Congo é um passo marcante para a libertação de todo o continente africano.
Eis o que, Sire, Excelências, minhas senhoras e meus senhores, meus queridos compatriotas, meus irmãos de minha raça, meus irmãos de luta, eu queria dizer-lhes, em nome do governo, neste dia magnífico de nossa independência completa e soberana.
Nosso governo forte, nacional, popular, será a salvação deste país. Convido todos os cidadãos congoleses, homens, mulheres e crianças, a irem resolutamente ao trabalho para criar uma economia nacional próspera que consagrará nossa independência econômica.
Homenageemos os combatentes da liberdade nacional!
Viva o Congo independente e soberano!

O testamento de Lumumba
Carta escrita da prisão à sua mulher Pauline Lumumba
Minha querida companheira, escrevo-te estas palavras sem saber se receberás e se ainda estarei vivo quando as receberes.
Durante toda a minha vida, pela independência do nosso país, nunca duvidamos um instante do triunfo final por causa sagrada a que os meus companheiros e eu consagramos a nossa vida. Mas o que queríamos para o nosso país, o direito a uma vida honrada, a uma dignidade sem compromissos, a uma independência sem restrições, o colonialismo belga e os seus aliados ocidentais, que encontraram apoio direto nas Nações Unidas, esse organismo em que depositamos toda a nossa confiança uma vez que tínhamos apelado para a sua assistência, nunca o quiseram.
Corromperam alguns dos nossos compatriotas, compraram outros, contribuíram para a deformação da verdade e para sabotar a nossa independência. Que mais posso fazer? Que eu esteja morto ou vivo, livre ou prisioneiro por ordem dos colonialistas, não é a minha pessoa que conta, mas o Congo, o nosso pobre país, cuja independência transformaram numa triste farsa. Mas a minha fé permanecerá inabalável.
Sei e sinto do fundo do meu ser que cedo ou tarde o meu povo se desembaraçará de todos os seus inimigos internos e externos, que levantará como um só homem para dizer «NÃO» ao colonialismo degradante e humilhante e para instaurar a sua dignidade sob um sol brilhante.
Nós não estamos sós. A África, a Ásia e os povos livres e libertados de todos os cantos do Mundo estarão sempre ao lado dos milhões de congoleses que não terminarão a sua luta enquanto os colonialistas e os seus mercenários se mantiverem no nosso país.
Aos meus filhos, que deixei, para talvez não os tornar a ver, quero que digam que o futuro do Congo é belo e que espera deles e de todos os congoleses a realização do seu dever sagrado de reconstruir a nossa independência e a sua soberania, porque sem dignidade não há liberdade; sem justiça não há dignidade e sem independência não há homens livres.
A brutalidade, as sevícias, as torturas nunca me levaram a implorar pela vida, porque prefiro morrer de cabeça levantada, com a fé indestrutível e a confiança profunda no destino do nosso país, a morrer na submissão, tendo renegado os princípios que nos são sagrados.
A história pronunciará um dia o seu julgamento, mas não será a história que se ensinará em Bruxelas, em Paris, em Washington ou nas Nações Unidas; será a que se ensinará nos países humilhados pelo colonialismo e pelos seus fantoches.
A África escreverá a sua própria história e esta será do norte ao sul do Saara, uma história de glória e de dignidade.
Não chores, companheira. Eu sei que o meu país que tanto sofre saberá defender a sua independência e liberdade.
VIVA O CONGO!
VIVA A ÁFRICA!
Prisão de thysville (Atual Mbanza–Ngungu).
Patrice Lumumba.



O assassinato de Patrice Lumumba 
“Nous ne sommes plus vos singes” (“Nós não somos mais vossos macacos”), disse o primeiro-ministro do Congo, Patrice Lumumba, ao rei Baudoin, da Bélgica, no dia da independência do país, 30 de junho de 1960.
Baudoin, nesse dia, proferira um dos mais arrogantes discursos já ouvidos de um colonizador. Na então Leopoldville (hoje, Kinshasa), o rei belga fizera uma elegia à “genialidade” de seu tio-avô, Leopoldo II – que em 1885, por cima até do Estado belga, tornara o Congo uma fazenda pessoal, com sua população como escravos.
O discurso de Lumumba foi um dos mais irrecorríveis libelos já pronunciados contra a escravidão, o racismo e o colonialismo – que em breve iremos publicar.
Assim nascia, há 50 anos, a República Democrática do Congo. Um país que teve a independência liderada por um homem como Patrice Lumumba – um dos maiores que já existiram – e que conseguiu sobreviver aos colonialistas belgas, aos imperialistas norte-americanos, e a Mobuto, está, certamente, destinado a um grande papel na História da Humanidade.
O texto que publicamos nesta página saiu originalmente em nossa edição de 7 de novembro de 2003. Para a republicação de agora, reescrevemos, para maior clareza, alguns trechos, revisamos a base documental, acrescentamos algumas informações e corrigimos um problema factual – a verdadeira identidade de Joseph Scheider, agente da CIA que depôs na Comissão Church, enviado a Leopoldville para envenenar Lumumba.


CARLOS LOPES 


Até hoje o conjunto dos documentos sobre a ação do governo dos EUA para assassinar o líder da independência do Congo e primeiro-ministro do país, Patrice Lumumba, não foram liberados. No entanto, em 1975, o relatório da comissão presidida pelo senador Frank Church revelou o conteúdo da maior parte deles.
Após Watergate e o arrombamento do consultório do psicanalista de Daniel Ellsberg - que havia divulgado a documentação secreta sobre o Vietnã conhecida como “Papéis do Pentágono” - o escândalo da ação ilegal da CIA dentro dos EUA fez com que Gerald Ford, que sucedera Nixon, instalasse uma comissão de inquérito, sob a chefia de Nelson Rockefeller. Era uma investigação de fancaria – Rockefeller, durante o governo Eisenhower, tinha sido o mentor das operações encobertas da CIA.
Porém, as informações começaram a vazar. Daí, a investigação do Congresso, que levou à demissão de William Colby, diretor-geral da CIA (e à nomeação de seu sucessor, George H. Bush, indicado por Nelson Rockefeller).
Colby fora um dos maiores assassinos da CIA durante quase 30 anos. Após sua demissão da CIA, tornou-se pacifista – em especial, ativista anti-guerra nuclear. Em 1996, Colby desapareceu, durante um trajeto de caiaque. Seu corpo foi encontrado nove dias depois – o inquérito subsequente concluiu que ele sofrera um infarto enquanto remava, caindo fora do caiaque e afogando-se.
No início de seus vários depoimentos no Congresso, Colby parecia querer reconhecimento pelos crimes da agência. Bem antes da Comissão Church, em 1971, ao lhe ser perguntado se era verdade que o Programa Phoenix - concebido e dirigido por ele no Vietnã - assassinara 60 mil “suspeitos” de serem “ativistas comunistas”, Colby respondeu que não, que os assassinados tinham sido “entre janeiro de 1968 e maio de 1971”, precisamente, 20.587 vietnamitas.
O deputado Ogden Reid, então republicano de Nova Iorque, um ex-embaixador dos EUA, perguntou: “Você está seguro de que sabemos distinguir uma pessoa leal ao Vietcong da coletividade de cidadãos do Vietnã do Sul?”.
Colby: “Não”.
Reid insistiu: “Você declararia peremptoriamente que o [Programa] Fenix nunca perpetrou matança premeditada de civis não-combatentes?”.
Resposta de Colby: “Não, eu não poderia dizer isso... Eu certamente jamais diria isso”.
Em suas memórias – que têm o título de “Homens de Honra” - Colby afirma que “a CIA nunca matou alguém por si própria”, isto é, sem ordem superior – sem ordem do presidente dos EUA, única autoridade acima da CIA. Todas as provas mostram que a afirmação é verdadeira. Naturalmente, com uma exceção: quando a vítima foi o próprio presidente. 

EISENHOWER

O assassinato de Lumumba é o primeiro dos assassinatos de líderes políticos pela CIA relatado pela Comissão Church:
A comissão coletou sólida evidência de uma conspiração para assassinar Patrice Lumumba. A forte hostilidade para com Lumumba, proclamada pelos mais altos níveis do governo, pode ter tido a intenção de iniciar uma operação de assassinato; no mínimo, ela engendrou tal operação. A evidência indica que é provável que a forte inquietação que o presidente Eisenhower expressou sobre Lumumba na reunião do Conselho de Segurança Nacional de 18 de agosto de 1960 foi tomada por Allen Dulles[diretor da CIA e irmão do secretário de Estado de Eisenhower, Foster Dulles] como uma autorização para assassinar LumumbaNota da Comissão Church: “De fato, um membro do Conselho presente à reunião de 18 de agosto acredita que testemunhou uma ordem presidencial para assassinar Lumumba” (United States Senate, Select committee to study governmental operations with respect to intelligence activities, “Interim Report: III. Alleged Assassination Plots Involving Foreign Leaders”, pág. 13).
Realmente, não se tratava de uma “autorização”, eufemismo adotado, como outros - segundo as memórias de Colby - devido à pressão da CIA. Todos os testemunhos constantes do relatório demonstram que Eisenhower ordenou o assassinato de Lumumba.
Patrice Lumumba viajara a Washington no mês anterior à ordem de Eisenhower. Recebera algumas “ofertas de ajuda” do governo americano. No entanto, o primeiro-ministro do Congo não estava disposto a ver - num dos países de maiores riquezas naturais do mundo, inclusive a maior reserva de urânio da Terra - a exploração belga, contra a qual lutara por longos anos, ser substituída pela dos norte-americanos.
Nos seus 67 dias de governo, Lumumba não fez nenhuma nacionalização ou restrição aos interesses americanos. No entanto, era óbvio que o negro - e pobre, líder de um povo pobre - Lumumba não era daqueles que se submetiam. Daí o ódio de Eisenhower, no qual era evidente o elemento racista.
Na semana que se seguiu à reunião de 18 de agosto”, prossegue o relatório Church, “um conselheiro do presidente frisou ao Grupo Especial – a subcomissão do Conselho responsável por planejar as operações encobertas - ‘a necessidade de ação muito direta’ contra Lumumba e incitou a uma decisão que não descartasse a consideração de ‘qualquer tipo de atividade que possa contribuir para livrar-se de Lumumba’. No dia seguinte, Dulles telegrafou ao Funcionário da Base da CIA em Leopoldville, República do Congo, que ‘nos altos escalões’ a ‘remoção’ de Lumumba era ‘um urgente e prioritário objetivo’. Logo depois, o serviço clandestino da CIA formulou uma trama para assassinar Lumumba” (III. “Assassination Planning and the Plots, A. Congo”, pág. 13). 

DULLES 

O partido de Lumumba, o Movimento Nacional Congolês (MNC), vencera por ampla margem as eleições que precederam a declaração de independência, no dia 30 de junho de 1960.
Logo em seguida, a CIA enviou à sua base no Congo um novo membro, Victor Hedgman. É este que o relatório Church designa como o “Funcionário da Base”. A razão é que ele tinha contato direto com a direção da CIA, sem subordinar-se ao chefe da base, Larry Devlin.
Hedgman, ao depor na comissão Church “disse que o assassinato de Lumumba não foi discutido em seus comunicados à CIA anteriores à sua partida do Congo, nem durante seu breve retorno ao quartel-general em conexão com a visita de Lumumba a Washington em julho”.
Realmente, os telegramas entre a CIA e sua base em Leopoldville (atual Kinshasa) só começaram a se referir diretamente ao assassinato a partir de agosto, ou seja, depois da reunião em que Eisenhower “expressou” sua “forte inquietação”.
Mas a CIA já estava conspirando: um telegrama do mesmo dia da reunião, do Congo para a sede da CIA, depois de mostrar dúvidas sobre se Lumumba era ou não comunista, fala em “ação para evitar outra Cuba” e que “o objetivo operacional da base é substituir Lumumba pelo grupo pró-ocidental”.
No mesmo dia, o chefe da Divisão África da CIA, Bronson Tweedy, respondeu que “estava procurando a aprovação do Departamento de Estado para a operação proposta, baseada na ‘sua e nossa crença de que Lumumba deve ser removido’”.
Logo no dia seguinte, já depois da reunião com Eisenhower, “o diretor do ramo de operações encobertas da CIA, Richard Bissell, assinou um telegrama para Leopoldville, dizendo que ‘você está autorizado a prosseguir com a operação’” (rel. cit. pág. 15).
 Cinco dias depois, em 24 de agosto, Hedgman enviou o seguinte relatório ao diretor da CIA, Allen Dulles, sobre os congoleses que a CIA estava subornando: “abordaram Kasavubu [presidente do Congo] com plano de assassinar Lumumba. Kasavubu recusou concordar, dizendo-se relutante [quanto] ao recurso à violência[por] não existir outro líder com suficiente estatura para substituir Lumumba” (rel. cit. Pág. 15).
No dia posterior, Dulles foi a uma reunião do Grupo Especial. As minutas da reunião descrevem que depois de Dulles expor o “esboço de alguns planos da CIA para ações políticas contra Lumumba, tais como arranjar um voto de não-confiança no parlamento congolês, Gordon Gray, o Assessor Especial do Presidente para Assuntos de Segurança Nacional, relatou que o presidente ‘expressou sentimentos extremamente fortes sobre a necessidade de uma ação sem rodeios’”.
Dulles não tinha escrúpulos quanto a assassinatos. Mas não era um idiota. Evidentemente, ele sabia que os tais “planos de ação política” eram inviáveis, porque o MNC tinha maioria ampla no parlamento. Portanto, seu objetivo ao apresentá-los era obter uma confirmação explícita, por parte de Eisenhower (representado, na reunião, por Gray), da ordem de assassinato. E conseguiu.
No dia seguinte, ele mesmo enviou um telegrama à base da CIA em Leopoldville:
Nos altos escalões aqui é agudamente clara a conclusão de que se Lumumba continua a ocupar alto cargo o inevitável resultado será no melhor dos casos o caos e no pior a pavimentação do caminho para a tomada do Congo pelos comunistas, com desastrosas consequências para o prestígio da ONU e para os interesses do mundo livre. Consequentemente, nós concluímos que sua remoção deve ser um primeiro e urgente objetivo e que sob as condições existentes isso deve ser uma alta prioridade de nossa ação encoberta”.
Sobre a suposta preocupação quanto à ONU, nesse momento ela (e, sobretudo, o seu secretário geral, Dag Hammarskjold) apoiava Lumumba, que exigia a saída das tropas belgas do país, enviando, a pedido do primeiro-ministro, forças de paz para o Congo. Hammarskjold seria morto um ano depois, num suspeito acidente aéreo, quando tentava um acordo na guerra civil que ensanguentou o Congo, após o assassinato de Lumumba.
No mesmo telegrama, Dulles dá à sua base no Congo “irrestrita autoridade (....)incluindo mesmo a mais agressiva ação se ela puder ser mantida encoberta. Nós imaginamos que os alvos de oportunidade devem estar presentes por si próprios a você”. (pág. 16). 

GOLPE 

Se é possível dúvida a respeito do significado desse telegrama, elas foram tiradas pelo depoimento, na Comissão Church, do então diretor de operações encobertas da CIA, Richard Bissell. Segundo Bissell, “o telegrama era um meio de indicar, através de um circunlóquio, que o presidente queria Lumumba assassinado (Nota da Comissão Church: Bissell depôs que Dulles teria usado a frase ‘altos escalões’ para referir-se ao presidente)”.
O mesmo disse Bronson Tweedy, o diretor da Divisão África da CIA. Tweedy – que redigiu a mensagem que Dulles assinou - disse que “o telegrama indicava que Dulles tinha recebido autorização do ‘nível político’”, isto é, Eisenhower.
No dia 5 de setembro de 1960, Kasavubu, a soldo da CIA, demitiu o primeiro-ministro Lumumba, passando por cima do parlamento. No dia 14, Mobutu, o cão de fila, perpetrou um sanguinário golpe de Estado, tramado e apoiado pela CIA.
Lumumba foi detido em sua residência. As tropas da ONU impediram o seu assassinato naquele momento.
No entanto, mostra a Comissão Church, “a evidência indica que o afastamento de Lumumba não aliviou as preocupações a respeito dele no governo dos Estados Unidos. Durante esse período, funcionários da CIA no Congo aconselharam e ajudaram contatos congoleses conhecidos pela intenção de assassinar Lumumba. Os funcionários também instaram alguns desses contatos congoleses ao ‘permanente descarte’ de Lumumba. Além disso, a CIA se opôs à reabertura do parlamento depois do golpe por causa da probabilidade de que o parlamento quisesse Lumumba de volta ao poder” (pág. 16).
Sete dias antes do golpe – e dois dias após a demissão de Lumumba - um telegrama de Leopoldville para Dulles dizia, ao relatar um encontro com “políticos congoleses de alto nível em estreito contato com a base da CIA”:
Lumumba na oposição é quase tão perigoso quanto no cargo [o que] indica e implica a conclusão [que] deve ser eliminado fisicamente”.
No telegrama, a “conclusão” é atribuída aos congoleses. Mas era a CIA que “instava ao permanente descarte” de Lumumba. Na véspera do golpe, o diretor da Divisão África, Bronson Tweedy, telegrafou à sua base: “Talentos e dinamismo de Lumumba aparecem [como] fator esmagador no restabelecimento de sua posição a cada vez que parece meio perdido. Em outras palavras, a cada momento Lumumba tem a oportunidade de ter a última palavra. Ele pode influenciar os acontecimentos em seu proveito”. 

GOTTLIEB 

Transcrevemos um dos parágrafos do Relatório da Comissão Church:
Um dia depois do golpe de Mobutu, o ‘funcionário da base’ [Hedgman] relatou que estava servindo como consultor de um esforço congolês para ‘eliminar’ Lumumba, devido ao seu ‘medo’ de que Lumumba podia, na verdade, ter se fortalecido ao colocar-se sob a custódia da ONU, o que permitia uma base segura de operações. Hedgman concluía: ‘A única solução é removê-lo da cena rapidamente’ (Leopoldville para o Diretor [Dulles], 15/09/60)”.
No entanto, os traidores congoleses não tinham coragem de assassinar Lumumba, o que fez com que a CIA redobrasse a instigação. No dia 17, o “funcionário da base” relatou outro encontro, com um “senador congolês”: “[o senador] relutantemente concordou que Lumumba deve ir permanentemente. Desconfia [de outro líder congolês] mas deseja fazer a paz com ele para os propósitos de eliminação de Lumumba (Leopoldville ao Diretor, 17/09/60)”.
Os traidores tinham medo de Lumumba, ou seja, do povo. A CIA, então, que tinha tramado o golpe de Mobutu, inventou um golpe de Estado... liderado por Lumumba: “o ‘funcionário da base’ advertiu a um líder-chave congolês sobre a trama de golpe articulada por Lumumba e dois correligionários, e ‘instou à prisão ou outro mais permanente descarte de Lumumba, Gizenga e Mulele’ (Leopoldville para o Diretor, 20/09/60).
Gizenga e Mulele eram os principais líderes do MNC, depois de Lumumba.
Nessa situação, Washington mandou um enviado ao Congo: “Bissell pediu a um cientista da CIA, Joseph Scheider, para fazer preparados para assassinar ou incapacitar um ‘líder africano’. De acordo com [o depoimento de] Scheider, Bissell disse que o encargo vinha da ‘mais alta autoridade’. Scheider procurou materiais biológicos tóxicos e recebeu ordem de Tweedy para entregar esses materiais ao funcionário da base em Leopoldville. Em setembro, Scheider entregou as substâncias letais ao funcionário da base em Leopoldville e instruiu-o para assassinar Patrice Lumumba. O funcionário da base testemunhou que foi dito por Scheider que o presidente Eisenhower tinha ordenado o assassinato de Lumumba”.
Joseph Scheider, sabe-se hoje, era um pseudônimo utilizado no relatório da Comissão Church para encobrir Sidney Gottlieb, o chefe do MKultra – o notório departamento de “controle de mentes” da CIA. Mais tarde, o chefe da base da CIA, Larry Devlin, relatou (ver seu depoimento no documentário “Who Killed Lumumba?”, de David Akerman, da BBC) que, quando Lumumba ainda estava sob a proteção da ONU, recebeu ordens para esperar um enviado, e que este era o sinistro Gottlieb, que entregou-lhe um tubo de pasta de dente envenenada, para que a introduzisse no banheiro da residência de Lumumba.
Scheider, aliás, Gottlieb, segundo o seu depoimento e o de Hedgman, partiu do Congo em 30 de outubro. A prisão domiciliar de Lumumba ainda duraria até 27 de novembro.
No entanto, baseado no fracasso das tentativas da CIA, o relatório Church conclui por sua inocência e a do governo americano.
Para chegar a essa conclusão, os membros da comissão ignoraram a ação da CIA na perseguição a Lumumba, quando este tentou chegar a Stanleyville, onde seus partidários se concentraram após o golpe de Estado, a ação americana para impedir que as tropas da ONU o protegessem e evitassem sua prisão e tortura pública e, sobretudo, o incitamento da CIA (documentado, entre outros, por Akerman) para que Mobutu o entregasse ao psicopata Moise Tshombe - e aos mercenários belgas que o sustentavam em Katanga.

Hora do Povo