Além de evitar o financiamento tanto da compra da sua própria indústria pelos EUA como do cerco norte-americano ao globo, a China, a Rússia e outros países gostariam sem dúvida de obter a mesma espécie de “almoço gratuito” que a América tem obtido. Tal como a questão se lhes apresenta, veem os Estados Unidos como um país fora da lei, tanto financeira quanto militarmente. Como caracterizar de outra maneira um país que mantém um conjunto de leis para os outros – sobre guerra, reembolso de dívida e tratamento de prisioneiros – mas ignora-as em relação a si próprio?
MICHAEL HUDSON*
Aquilo que pode vir a demonstrar-se como os ritos finais da hegemonia americana começou em abril na conferência do G-20 e tornou-se ainda mais explícito no Fórum Econômico Internacional de S. Petersburgo, quando o sr. Medvedev apelou à China, Rússia e Índia para “construírem uma ordem mundial cada vez mais multipolar”. O que isto significa em bom inglês é: nós atingimos o nosso limite no subsídio ao cerco militar da Eurásia pelos Estados Unidos, enquanto permitimos também que os EUA se apropriem das nossas exportações, companhias, ações e patrimônio em troca de papel-dinheiro de valor discutível.
“O sistema unipolar mantido artificialmente”, esclareceu o sr. Medvedev, “está baseado sobre um grande centro de consumo, financiado por déficits crescentes, e, portanto, dívidas crescentes, uma moeda de reserva anteriormente forte, e um sistema dominante de avaliação de ativos e riscos”.
O ponto de impasse é a capacidade dos EUA de imprimirem ilimitadas quantidades de dólares. Os super-gastos dos consumidores americanos com importações que excedem as exportações, as compras americanas de companhias e patrimônio estrangeiro, e os dólares que o Pentágono gasta no exterior, acabam todos em bancos centrais estrangeiros. Estas agências enfrentam então uma escolha difícil: ou reciclar estes dólares de volta aos Estados Unidos através da compra de títulos do Tesouro dos EUA, ou deixar a força do “livre mercado” aumentar o valor relativo da sua moeda em relação ao dólar – com isso aumentando o preço de suas exportações, colocando-as fora dos mercados mundiais e, portanto, criando desemprego interno e insolvência nos negócios.
Quando a China e outros países reciclam as suas entradas de dólares comprando títulos do Tesouro dos EUA para “investir” nos Estados Unidos, esta acumulação não é realmente voluntária. Ela não reflete a fé na economia dos EUA, ou o enriquecimento de bancos centrais estrangeiros através das suas poupanças, ou qualquer preferência de investimento calculado, mas simplesmente uma falta de alternativas. “Livres mercados” ao estilo-USA penduram países num sistema que os força a aceitar dólares sem limites. Agora eles querem sair.
Isto significa criar uma nova alternativa. Ao invés de fazer simplesmente “mudanças cosméticas, como alguns países, e talvez como as próprias organizações financeiras internacionais desejam”, concluiu o sr. Medvedev no discurso de S. Petersburgo, “o que precisamos são instituições financeiras de um tipo completamente novo, em que questões e motivos políticos, e países em particular, não dominarão”.
Quando os gastos militares no estrangeiro forçaram a balança de pagamentos dos EUA ao déficit e levaram os Estados Unidos ao abandono do ouro, em 1971, os bancos centrais ficaram sem o ativo tradicional utilizado para regular desequilíbrios de pagamentos. A alternativa, na falta de outra, era investir as suas subsequentes entradas de pagamentos em títulos do Tesouro dos EUA, como se estes ainda fossem “tão bons quanto ouro”. Os bancos centrais agora possuem US$ 4 trilhões desses títulos nas suas reservas internacionais – o aterrissamento desses empréstimos financiou a maior parte dos déficits do orçamento interno do governo dos EUA durante mais de três décadas! Uma vez que cerca da metade dos gastos discricionários do governo dos EUA é com operações militares – incluindo mais de 750 bases militares no estrangeiro e operações cada vez mais dispendiosas nos países produtores de petróleo e nas vias de acesso ao mesmo – o sistema financeiro internacional está organizado de um modo que financia o Pentágono, assim como as compras americanas de ativos estrangeiros, que se espera renderem muito mais do que os títulos do Tesouro possuídos pelos bancos centrais estrangeiros.
A principal questão política enfrentada pelos bancos centrais do mundo é, portanto, como evitar acrescentar ainda mais dólares às suas reservas e, portanto, financiar ainda mais o gasto deficitário dos EUA – incluindo a despesa militar junto às suas fronteiras.
Em primeiro lugar, os seis países da SCO [Organização de Cooperação de Shangai, que reúne Rússia, China, Cazaquistão, Tajiquistão, Quirguistão e Uzbequistão] e os países BRIC [Brasil, Rússia, Índia e China] pretendem usar suas próprias moedas no comércio, de modo a obterem o benefício do crédito mútuo que os Estados Unidos até agora monopolizaram para si próprios. Tendo em vista este objetivo, a China selou acordos bilaterais com a Argentina e o Brasil no sentido de fazer o seu comércio em renminbi ao invés do dólar, da libra esterlina ou dos euros, e duas semanas atrás a China alcançou um acordo com a Malásia no sentido de fazer o comércio entre os dois países em renminbi. O antigo primeiro-ministro, Dr. Mahathir Mohamad, explicou-me em janeiro que, como país muçulmano, a Malásia quer evitar fazer qualquer coisa que facilite a ação militar dos EUA contra países islâmicos, incluindo a Palestina. O país já tem demasiados ativos em dólares, explicaram os seus colegas. O governador do banco central Zhou Xiaochuan, do Banco do Povo da China, redigiu uma declaração oficial no seu site da Internet, segundo a qual o objetivo agora é criar uma moeda de reserva “que seja desconectada de países individuais”. Este é o objetivo das discussões em Yekaterinburg.
Além de evitar o financiamento tanto da compra da sua própria indústria pelos EUA como do cerco norte-americano ao globo, a China, a Rússia e outros países gostariam sem dúvida de obter a mesma espécie de “almoço gratuito” que a América tem obtido. Tal como a questão se lhes apresenta, veem os Estados Unidos como um país fora da lei, tanto financeira quanto militarmente. Como caracterizar de outra maneira um país que mantém um conjunto de leis para os outros – sobre guerra, reembolso de dívida e tratamento de prisioneiros – mas ignora-as em relação a si próprio? Os Estados Unidos são agora o maior devedor do mundo, mas tem evitado o sofrimento dos “ajustes estruturais” impostos a outras economias devedoras. As reduções de taxas de juros e fiscais em face dos déficits comerciais e orçamentários em explosão são vistas como o cúmulo da hipocrisia, considerando os programas de austeridade a que Washington força outros países, através do FMI e outros dos seus veículos.
Os Estados Unidos dizem às economias devedoras para liquidarem as suas empresas públicas e os seus recursos naturais, elevarem as suas taxas de juros e aumentarem os impostos enquanto arruínam as suas redes de segurança social a fim de espremer dinheiro para pagar aos credores. E, internamente, o Congresso proibiu a CNOOK, da China, de comprar a Unocal com o argumento da segurança nacional, assim como proibiu Dubai de comprar portos e outros fundos de riqueza soberana de comprarem infraestruturas chave. Os estrangeiros são convidados a emularem a compra japonesa de troféus tipo elefantes brancos, tal como o Rockefeller Center, no qual os investidores perderam rapidamente um bilhão de dólares e acabaram por se afastar.
Quanto a isto, os EUA não deram realmente à China, e a outros países com excedentes de pagamentos, grande alternativa exceto descobrir um meio de evitar nova acumulação de dólares. Até à data, as tentativas da China de diversificar os seus haveres em dólares para além dos títulos do Tesouro não tiveram muito êxito. Para começar, Hank Paulson, da Goldman Sachs, dirigiu o seu banco central para os títulos de rendimento mais alto da Fannie Mae e do Freddie Mac, explicando-lhes que estes eram de fato obrigações públicas. Ambos entraram em colapso em 2008, mas pelo menos o governo dos EUA tomou posse destas duas agências de empréstimos hipotecários, acrescentando formalmente os seus US$ 5,2 trilhões em obrigações à dívida nacional. De fato, foi em grande parte o investimento oficial estrangeiro que estimulou o salvamento. Impor uma perda a agências oficiais estrangeiras teria rompido de imediato o padrão-título do Tesouro, não só por destruir totalmente a credibilidade dos EUA, como também porque, simplesmente, há muito poucos títulos do governo para absorverem a inundação de dólares na economia mundial devida à elevação dos déficits da balança de pagamentos norte-americana.
Procurando uma posição de equilíbrio para proteger o valor dos seus haveres em dólares quando a bolha do crédito do Federal Reserve levou ao rebaixamento das taxas de juro, os fundos de riqueza soberana da China procuraram diversificar a partir do fim de 2007. A China comprou participações no bem entrelaçado fundo de ações Blackstone e no Morgan Stanley, em Wall Street, no Standard Bank, do Barclays, na África do Sul (antes filiado ao Chase Manhattan, no tempo do apartheid) e no conglomerado financeiro belga Fortis, que entrou logo em colapso. Mas o setor financeiro dos EUA estava entrando em colapso sob o peso da sua dívida piramidal e os preços das ações de bancos e firmas de investimento afundaram em todo o mundo.
Os estrangeiros veem o FMI, o Banco Mundial e a Organização Internacional de Comércio como emanações de Washington num sistema financeiro apoiado em bases militares e porta-aviões americanos que envolvem todo o globo. Mas esta dominação militar é um vestígio de um império americano que já não é mais capaz de dominar pela força econômica. O poder militar norte-americano é músculo em excesso, baseado mais no armamento atômico e ataques aéreos à longa distância do que sobre operações no terreno, as quais politicamente tornaram-se demasiado impopulares para serem montadas em grande escala.
Na frente econômica, não há meio previsível pelo qual os Estados Unidos possam descarregar os US$ 4 trilhões que devem a governos estrangeiros, aos seus bancos centrais e aos fundos de riqueza soberana estabelecidos para dar destino à inundação global de dólares. A América tornou-se uma caloteira – e na verdade, uma caloteira militarmente agressiva, pois procura manter-se como a potência única que, através de meios econômicos, chegou a ser. O problema é como restringir o seu comportamento. Yu Yongding, um antigo conselheiro do banco central chinês, agora na Academia de Ciências da China, sugeriu que o secretário do Tesouro, Tim Geithner, fosse avisado de que os Estados Unidos deveriam “salvar-se” antes e acima de tudo pela redução do seu orçamento militar. “O imposto de renda dos EUA provavelmente não aumentará no curto prazo devido ao baixo crescimento econômico, a despesas inflexíveis e ao custo de ‘combater duas guerras’ “.
Atualmente são as poupanças estrangeiras, não as dos americanos, que estão financiando o déficit orçamentário dos EUA, através da compra da maior parte dos títulos do Tesouro. O efeito é tributação sem representação para os eleitores estrangeiros, pois não podem dizer ao governo dos EUA como utilizar as suas poupanças forçadas. Portanto, é necessário aos diplomatas financeiros que ampliem o âmbito das suas decisões políticas para além do setor do mercado privado. As taxas de câmbio são determinadas por muitos fatores além de “cartões de crédito detidos pelos consumidores”, o eufemismo habitual que a mídia dos EUA menciona para o déficit da balança de pagamentos. Desde o século XIII, a guerra tem sido um fator dominante na balança de pagamentos dos principais países – e de suas dívidas nacionais. O financiamento de governos através de títulos faz-se sobretudo para dívidas de guerra, pois em tempos de paz normais os orçamentos tendem a ser equilibrados. Isto liga o orçamento de guerra diretamente à balança de pagamentos e às taxas de câmbio.
Os países estrangeiros veem-se presos a títulos de dívida impagáveis – sob condições em que, se se movimentassem para travar o almoço gratuito dos EUA, o dólar afundaria e os seus haveres em dólares cairiam de valor em relação às suas próprias moedas internas e outras divisas. Se a moeda da China se elevasse em 10% em relação ao dólar, o seu banco central teria o equivalente a uma perda de US$ 200 milhões nos seus haveres de US$ 2 trilhões, quando convertidos em yuan. Isto explica porque, quando agências de classificação de títulos falam acerca da perda da classificação AAA para os títulos do Tesouro dos EUA, elas não querem dizer que o governo não possa simplesmente imprimir os dólares de papel para “tornar bons” estes títulos. Querem dizer que os dólares se depreciarão em seu valor internacional. E isso é exatamente o que está se verificando agora. Quando o sr. Geithner fez uma cara séria e disse numa sessão na Universidade de Pequim, no princípio de junho, que acreditava num “dólar forte” e que, portanto, os investimentos da China nos EUA eram seguros e saudáveis, a reação foram risadas sarcásticas.
A previsão de uma elevação da taxa de câmbio da China dá um incentivo aos especuladores para procurarem tomar emprestado em dólares a fim de comprar renminbi e se beneficiarem com a valorização. Para a China, o problema é que este influxo especulativo tornar-se-ia uma profecia auto-cumprida ao forçar a alta da sua divisa. Assim, o problema das reservas internacionais está inerentemente ligado ao do controle de capitais. Por que a China deveria ver as suas companhias mais lucrativas serem vendidas por dólares criados livremente, os quais o banco central deve utilizar para comprar títulos do Tesouro dos EUA, de baixo rendimento, ou perder ainda mais dinheiro em Wall Street?
Para evitar esse dilema é necessário inverter a filosofia dos mercados de capital abertos que o mundo tem adotado desde Bretton Woods, em 1944. Por ocasião da visita do sr. Geithner à China, “Zhou Xiaochuan, ministro do Banco Popular da China, o banco central do país, disse enfaticamente que esta era a primeira vez, desde as conversações semestrais principiadas em 2006, que a China precisava aprender tanto com os erros americanos como com os seus êxitos” no que concerne à desregulamentação de mercados de capital e desmantelamento de controles.
Uma era está, portanto, chegando ao fim. Face ao contínuo super gasto dos EUA, a desdolarização ameaça forçar os países a retornarem à espécie de taxas de câmbio duais que eram comuns entre a I e a II Guerras Mundiais: uma taxa de câmbio para o comércio de mercadorias e outra para movimentos de capital e investimentos, pelo menos das economias da área do dólar.
Mesmo sem controles de capital, os países que se reúnem em Yekaterinburg estão dando passos para evitar serem os receptores relutantes de ainda mais dólares. Ao verem que a hegemonia global dos EUA não pode continuar sem os gastos de poder que eles próprios fornecem, os governos estão tentando acelerar o que Chalmers Johnson denominou “as aflições do império” no seu livro com o mesmo nome (“The Sorrows of Empire”). Se a China, a Rússia, e seus aliados não alinhados, prosseguirem o seu caminho, os Estados Unidos já não viverão mais das poupanças dos outros (na forma dos seus próprios dólares reciclados) nem terão o dinheiro para as suas despesas e aventuras militares ilimitadas.
Autoridades americanas quiseram comparecer como observadores à reunião de Yekaterinburg. Disseram-lhes Não. É uma palavra que os americanos ouvirão muito no futuro.
* É ex-economista de Wall Street especializado em balanço de pagamentos e bens imobiliários no Chase Manhattan Bank (agora JPMorgan Chase & Co.), Artur Anderson e, depois, no Hudson Institute. Em 1990 colaborou no estabelecimento do primeiro fundo soberano de dívida do mundo para Scudder Stevens & Clark. Hudson foi assessor econômico chefe de Dennis Kucinich na campanha primária presidencial democrata e assessorou os governos dos EUA, Canadá, México e Letônia, assim como o Instituto das Nações Unidas para Formação e Pesquisa. Destacado professor e pesquisador na Universidade de Missouri, na cidade de Kansas, é autor de numerosos livros, entre eles “Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire”.
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