Apologia ao tráfico e exploração do talento alheio nada tem de cultura popular
O luxo e o lixo da periferia
Em suas “formulações” o antropólogo Hermano Viana desprezou completamente as dezenas de gêneros-expressão da cultura popular brasileira apenas para exaltar as imitações dos estereótipos, das banalidades exportadas pela metrópole. Isso tudo na tentativa de dar tinturas de coisa moderna e avançada à política do Ministério da Cultura de adequar-se aos interesses do monopólio internacional
O antropólogo Hermano Viana escreveu o anúncio do programa “Central da Periferia”, da TV Globo. No texto, Viana anuncia a grande descoberta do povo e da cultura popular. Essa descoberta é a razão e tema do programa e do site Overmundo (organizado por ele próprio), e tem sido assunto de variados textos do antropólogo em veículos como o site Bregapop, e outros mais.
SUB-CULTURA
Mas que povo, que cultura popular, afinal? Que descoberta é essa, que o levou a escrever: “Não tenho dúvida nenhuma: a novidade mais importante da cultura brasileira na última década foi o aparecimento da voz direta da periferia falando alto em todos os lugares do país. Agora ... a favela responde: `Qualé, mané! O que não falta aqui é cultura! Olha só o que o mundo tem a aprender com a gente!`... há milhares de grupos culturais, surgidos na periferia, que em seus trabalhos juntam – de formas totalmente originais e diferentes a cada caso – produção artística e combate à desigualdade”?
Seguramente não é o povo brasileiro, aquele povo melhor porque mestiço, orgulhoso de sua mestiçagem, como ensinou o mestre Darcy Ribeiro, e que burilou compositores como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Cartola, Donga, Candeia, Carlos Cachaça, Nelson Sargento, Ernesto Nazareth, Nei Lopes, Pixinguinha, Gordurinha, Assis Valente, Braguinha, Pena Branca e Xavantinho, Jararaca e Ratinho, Geraldo Filme, Adauto Santos, Noel Rosa, Cartola, Xisto Bahia, Walter Alfaiate, etc.
Ou o antropólogo não sabe que o Repente, o Baião, o Côco, o Maracatu, o Samba, o Choro, a Toada, a Rancheira Gaúcha, o Calango Mineiro, o Frevo, o Lundu, o Maxixe, a Congada, o Jongo, a Modinha de Viola, etc. são resultado de milhares de grupos culturais, surgidos na periferia econômica, que em seus trabalhos juntam – de formas totalmente originais e diferentes a cada caso – produção artística e combate à desigualdade, fazem crítica de costumes, enaltecem a solidariedade, cantam o amor e, acima de tudo, reverenciam a beleza e a graça brasileira e a garra e a abnegação do brasileiro?
Saber, saber mesmo, não sabe. Não é o primeiro, nem será o último intelectual a estranhar e se atrapalhar ao ver, ao vivo, o povo real, muito diferente daquele povo conceito que, durante anos e inesquecíveis tertúlias, se encaixou direitinho em elogiadas teses acadêmicas.
Mas não foi só a ignorância que deixou o antropólogo aparvalhado com o estardalhaço do tecnobrega paraense, do funk carioca, do forró eletrônico cearense, do arrocha baiano, do lambadão cuiabano, da tchê music gaúcha, do hip hop. Hermano Viana selecionou cuidadosamente o que queria ver. Foi ao Norte e descobriu o tecnobrega paraense, mas não percebeu o Carimbó ou o Caiapó; viu a festa das aparelhagens mas desconheceu o Círio de Nazaré. Passou pelo Nordeste e deslumbrou-se com o forró eletrônico cearense, mas não percebeu o Forró de verdade, a Vaquejada, o Frevo, o Repente, o Baião, o Pastoril, a Folia de Reis, o Xote, o Xaxado, o Maracatu, o Boi, a Festa do Divino...
Passou os olhos pela Bahia e contemplou o arrocha baiano, mas não soube do Côco, do Samba, do Candomblé, da Embolada, da Capoeira. Espreitou as favelas do Rio de Janeiro e vislumbrou até uma futura nova indústria fonográfica tributária do funk, mas esqueceu-se das escolas de samba. Elogiou o lambadão cuiabano, mas deve achar que Catira, Cururu, Moda de Viola são nomes de peixes exóticos. Desvaneceu-se pelo hip hop da periferia de São Paulo, mas não deu conta do Jongo, do Caipira, do Samba Paulista, da escola de samba fundada e dirigida por negros no periférico bairro da Vila Matilde. Do Rio Grande do Sul, elogiou a tchê music, mas excluiu a Chula, a Trova, a festa dos CTGs.
LUXO PELO LIXO
Por que será que Hermano Viana desprezou os gêneros-expressão da cultura popular nacional e se deslumbrou com esses estilos? Por que desprezou o luxo pelo lixo da periferia? Por que será que ele desprezou os mesmos gêneros musicais e as mesmas manifestações culturais que as multinacionais do disco e da produção artística e a mídia também desprezam?
O antropólogo reconhece que a “origem mais remota” desses estilos que monopolizaram sua atenção “é a jovem-guarda dos anos 60, rock básico e escandalosamente ingênuo, tocado com uma guitarra ‘chacumdum’, um baixo e bateria”. Ora, a jovem-guarda foi a primeira tentativa da multinacionais do disco de impor ao Brasil uma estética externa, pasteurizada e domada. E o que sobrou da jovem-guarda, com exceção de Roberto Carlos, que sobrevive graças ao talento pessoal e à audiência da Globo? Apesar disso, foi nas derivações/imitações dessa coisa artificial, nas derivações/imitações do estilo nascido nas prisões e guetos norte-americanos, o rap, e na estética do tráfico, o pornô-funk, que Hermano Viana se deteve.
PANEGÍRIO
A razão de tal seleção é, exatamente, o oposto do que simula combater no panegírio: que a periferia se comporte como periferia, se perpetue como periferia, que o povo tenha o “direito” à ilusão da inclusão social pela imitação dos estereótipos, das banalidades exportadas pela metrópole. E, é claro, o faça nos limites do gueto, sem ver além das estreitas fronteiras da alienação.
É que os gêneros musicais nascidos no povo e na cultura nacional foram capazes de tomar o centro, tiveram a capacidade de se transformar no símbolo da cultura nacional, em sinônimo de cultura nacional. Foi sua força que obrigou as gravadoras multinacionais a trabalhar com eles, a difundi-los para poder afirmar-se economicamente (depois que monopolizaram o mercado nacional começaram com a jovem-guarda e não pararam de tentar impor estilos importados padronizados).
Já esses outros estilos, por mais jovens que atraiam, por mais barulho que façam, por mais histriônicos que se apresentem, não ameaçam o cartel. São imitações dos estilos que o cartel impõe. E as imitações não só não ameaçam como legitimam a prática dos monopólios. Aliás, imitadores sempre houve. Os mais velhos lembram-se dos grupos que, não sabendo inglês, mas querendo parecer enturmados, apresentavam-se com play-back e faziam mímica para simular que cantavam rock. Eram quase todos de periferia.
“Assistimos também ao nascimento de indústrias de entretenimento popular... sem mais depender de grandes gravadoras e grandes mídias para construir sua rede de difusão nacional”, elogia o antropólogo, saudando o que chama de “novos modelos de negócios”.
Basta ver com olhos menos alienados quais são os “novos modelos de negócios” que Hermano Viana canta: É a velha e primitiva exploração, com a substituição de compositores e intérpretes de verdade por um lumpesinato sôfrego pelo sucesso, sem qualquer preocupação que não seja virar celebridade, seja do que for e a que preço for, e uma produção medíocre incapaz de sobreviver a uma temporada, em que a cada novidade é maior o apelo ao exibicionismo e em que os “artistas” são descartados e trocados, pelos donos do negócio, numa velocidade alucinante. Muito raramente, um entre milhares consegue libertar-se dessa condição marginal e vira bandido de verdade, como foi o caso do Belo, ou passa a gozar de patrocínio e certa proteção como músico a serviço de uma organização criminosa, como é o caso dos mestres de cerimônia do PCC, os santistas Renatinho e Alemão.
APARELHAGENS
No tecnobrega paraense, como ele também conta, os autores não ganham direitos autorais, as bandas precisam da divulgação nas rádios, nas aparelhagens e no camelô para fazerem sucesso e serem contratadas para shows. “Por isso seus grandes sucessos são metamídia: as músicas elogiam DJs, programas de rádio e de TV, aparelhagens, fã-clubes de aparelhagens”... Mas os empresários dos shows, os donos dos bailes, os donos das aparelhagens, os donos das rádios, os programadores, todos ganham dinheiro. Só os artistas é que se sujeitam a trabalhar de graça até que se realize o raro sonho de conseguir um contrato para um show com cachê.
Em Fortaleza, é famoso Manoel Gurgel, dono de bandas. Ele é o dono do nome da banda, dos instrumentos, exige que as músicas sejam registradas em seu nome, recolhe os direitos autorais como se autor fosse e já montou até um dezena de bandas Mastruz com Leite para vender o mesmo “artista” para shows diferentes, em que o público de cada espetáculo acha que está vendo a única Mastruz com Leite, e em que os músicos vão sendo trocados, sem que a banda mude de nome, conforme suas conveniências financeiras.
Ou o caso do DJ Marlboro, principal produtor do funk carioca, e com quem Hermano Viana teve instrutivas conversas: Quem não fizer contrato com a editora musical de Marlboro, a Afegan - dando-lhe a propriedade de 25% da música -, não toca na rádio. E quem não tocar na rádio não é contratado para tocar nos bailes funk, cuja produção é monopolizada por ele. Ou ainda o caso do João da Condil, que, de dono de rede de lojas de discos, virou produtor e dono de rádios e só produz e toca quem editar as músicas em seu nome, dando-lhe sociedade na arrecadação dos direitos autorais.
CONTRA O JABÁ!
Mas, afinal, para que serve, a quem serve a louvação de deste mangue? A resposta está na recente decisão da Unesco em defesa da diversidade cultural e do clamor crescente contra o jabá!
Em outubro passado, a Unesco aprovou a Convenção Mundial em Defesa da Diversidade Cultural – convenção que o Brasil ainda não ratificou. Essa convenção define que a defesa da diversidade cultural é a defesa das culturas nacionais contra a padronização dos monopólios e a democratização dos instrumentos de difusão e distribuição. Já o ministro Gilberto Gil tem estimulado e patrocinado a “diversidade” de passeatas gays e a pulverização de “campinhos de várzea da cultura”, como definiu o coordenador de políticas digitais do Minc, Cláudio Prado. Tem defendido, estimulado e patrocinado a criação de guetos onde o povo se “satisfaça” e crie a ilusão que o ministério é o campeão da defesa da diversidade cultural.
Sobre a defesa da cultura nacional e a democratização dos instrumentos de difusão e distribuição da cultura, cuja primeira e fundamental medida é o combate ao jabá, Gilberto Gil acha que “é muito complexo”.
No fim, o que Hermano Viana faz é formular uma teoria canhestra, preconceituosa e reacionária - mas bem revestida por um palavrório sedutor - para dar tinturas de coisa moderna e avançada à política de Gilberto Gil de adequar-se aos interesses do monopólio internacional. À Globo, no caso, essa política cai como uma luva. Ela tem a pretensão de ser a provedora de conteúdo nacional. Esse programinha serve-lhe para fingir que está divulgando a cultura nacional.
JOÃO MOREIRÃO
Jornal Hora do Povo
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